ESCRITOS OUTONAIS

1.31.2006

AMOR E FUTEBOL


Ela, chama-se Filipa: Ele, Diogo. Não é que os nomes tenham qualquer importância para a história. Menciono-os apenas para que constem.
Ela, é loura, de olhos azuis, boca bem desenhada, lábios carnudos, busto firme sem ser demasiado grande, cintura fina, pernas longas e bem torneadas, formas sinuosas, enfim um pedaço de mau caminho.

Ele, é enorme, bem talhado, rosto largo, moreno, boca longa, sorriso simpático, ginasticado, musculoso, do género de pôr a cabeça à roda a qualquer mulher.
Conheceram-se no Parque da Nações assistindo no ecrã gigante ao jogo inaugural do Euro/2004 e de imediato se apaixonaram.

Voltaram a encontrar-se mais vezes no mesmo local, assistindo juntos a todos os jogos em que participou a selecção nacional, tão cheio o coração de ardor patriótico pelas proezas dos nossos rapazes como do erotismo que dos seus corpos se desprendia.
Ainda o campeonato não tinha acabado e já a chama que os incendiava os levara à cama de um motel das redondezas. Faziam um par certo em jogos de cama. Encaixavam na perfeição. Ela mostrava-se insaciável e ele nunca se furtava às exigências da sua fogosidade de mulher jovem e saudável.

Casaram no verão seguinte. Ela, é licenciada em Direito e trabalha como estagiária numa importante firma de advogados, Ele, é professor de Educação Física e técnico de um grande clube de futebol.
O seu casamento foi, pois, um evento bastante badalado, com centenas de convidados. Tudo gente famosa. Quer do meio da advocacia quer do desporto.

A sua vida social e profissional vai agora de vento em popa, como usa dizer-se e no que diz respeito à vida amorosa, cada noite é, ainda, como se fosse a primeira noite. As mesmas carícias, as mesmas performances as mesmas ternas palavras “meu torrãozinho de Alicante!”, que ele lhe cicia aos ouvidos na hora da verdade.

Ontem, porém, algo funcionou mal na sua habitualmente escaldante sessão amorosa. Diogo não estava talvez nos seus dias e Filipa, por seu lado, preocupada com qualquer problema de um processo mais complicado no Escritório, também não ajudou muito. Foi um fiasco. Enervaram-se os dois e, por muito que tentassem, a consumação do acto tornou-se de todo impossível.

Hoje, no seu gabinete, Filipa não consegue concentrar-se. Tudo lhe corre mal. Culpa-se de tudo o que aconteceu. Acha que não foi suficientemente terna, que não foi suficientemente sedutora e toma uma decisão. Ele hoje vai estar todo o dia em casa a preparar um trabalho de especialização no âmbito da sua licenciatura. E Filipa pensa. Falo com o chefe, digo que preciso de sair para recolher elementos referentes ao processo que tenho em mãos e vou fazer uma surpresa ao Diogo. O amor, assim, fora do horário normal, sabe sempre melhor e vai ser uma tarde de sonho.

Assim, logo a seguir ao almoço, fechou o gabinete, despediu-se do chefe, passou por uma loja de lingerie na baixa, onde comprou umas calcinhas e uma combinação de um estilo particularmente sexy, de um vermelho quente como ele gosta, meteu-se no carro e aí vai ela, rumo à Lapa, onde se situa a sua residência e ninho de amor.

A viagem é feita em autêntico devaneio, antegozando as cenas que sabe que vão acontecer à chegada. Vê-se nos braços dele, sente-lhe as mãos enormes a acariciá-la, a despir-lhe as calcinhas vermelhas e estremece com as cócegas das sua boca a murmurar-lhe ao ouvidos as costumadas palavras “meu torrãozinho de alicante!”. Sente o coração bater mais forte, um calor a incendiar-lhe as zonas erógenas, vivendo por antecipação as cenas deliciosas dos próximos momentos.

Arruma o carro na garagem. Toma o elevador até ao 2º piso, que é o seu, mete a chave devagarinho para não fazer ruído e a surpresa resultar inteiramente. Diogo não está na sala. Deve estar a repousar, coitado, talvez a dormir uma soneca. Descalça-se e dirige-se para o quarto pé ante pé. Quando se preparava para rodar a maçaneta da porta, ouve lá dentro um arfar ruidoso e a voz do seu Diogo, no tom inconfundível do momento de um orgasmo: “sim, sim, meu amor, meu torraozinho de Alicante!!!!!”Filipa abre a porta de rompante e, deitados na cama, em pelota e apenas com peúgas da cor do clube vê, enroscados, o seu Diogo e o respectivo assistente técnico do clube de que ele é o Técnico principal.
* * *
Pois é, afinal o rapaz gosta mesmo é de torrão de Alicante.

UM DIA NA VIDA DE SUA EXCELÊNCIA

Sua excelência acordou bem disposto esta manhã. Dois comprimidos de serenal tomados antes de deitar asseguraram-lhe um sono tranquilo. Fica escutando as vozes na sala. É Dona Micá, mais madrugadora, dando ordens à criada, para que o senhor encontre tudo como gosta, quando se levantar. Sabendo-se só, Sua excelência alivia-se ruidosamente dos gases acumulados durante a noite, saboreia a cama por mais uns momentos, até que, espreguiçando-se se levanta e se dirige â casa de banho.
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Despe-se e fica-se olhando no grande espelho biselé que lhe devolve a sua rotunda imagem em pelota. Lá estão os pés enormes deformados por joanetes, as pernas cambadas e peludas, ventre saliente que, que de frente o obriga a curvar-se ligeiramente para que possa ver o berloque, o peito semeado de cabelos esbranquiçados, o pescoço atarracado que no Liceu lhe valeu a alcunha de “Berloquinho sem pescoço” pela qual durante muitos anos foi tratado e a cabeça meio careca ladeada de um par de orelhas enormes, vulgarmente conhecidas por orelhas de abano.
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Sua excelência, contudo já se habituou ao corpo que tem e não se mostra desagradado com o que vê.” não está mal, não está mal, para a minha idade não está mal.! Faz meia dúzia de flexões de pernas, levanta e baixa repetidamente os braços, estica-os para os lados, em simultâneo, com gestos vigorosos, numa espécie de ginástica que não dispensa todas as manhãs.Coça demoradamente os testículos – hábito compulsivo que já lhe acarretou alguns dissabores e reprimendas do Partido por diversas vezes as câmaras de televisão o terem captado em frenético coçadouro, mas não consegue controlar o feio vício. Senta-se na sanita e, sem esforço, sua excelência produz uma monumental larada,. daquelas que só se encontram no campo atrás de um muro velho ou num valado atrás de um silvado, deixadas por robustos e saudáveis camponeses – o que só abona a favor dos hábitos alimentares e higiénicos de Sua excelência.
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Toma depois o seu banho, (não sem antes puxar o autoclismo, é evidente). Longo tempo permanece debaixo da água, quentinha, quentinha que até dá gosto. Ensaboa-se com um champô “for men”, caríssimo que trouxe de uma das suas viagens de serviço a Nova York, volta a abrir o duche e só volta a fechar depois de toda a espuma desaparecer do seu corpo e do fundo da banheira. Dantes tinha o hábito de urinar no banho, mas agora que se habituou a ir primeiro à sanita, não sente mais necessidade de o fazer.Depois de seco, vestido e penteado e barbeado, dirige-se à sala onde se encontra já preparado o pequeno almoço. Bebe um sumo de laranja, come uma tigela de cereais com leite, um ovo escalfado. ao qual retira com mestria o pedacinho de casca que lhe permite introduzir a colher a fim de retirar a gema quentinha e remata com um café forte e cremoso. Está pronto o guerreiro para o combate.
Pega na volumosa pasta que sempre o acompanha e que é como que o seu ex-libris, a sua imagem de marca, beija a dona Micá (melhor dito, aflora-lhe com os lábios a face, pois beijar, beijar “y otras cositas màs” são termos e actos que há muito desapareceram do vocabulário íntimo de Sua excelência e dona Micá).
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Dirige-se ao elevador que o leva directamente à garagem, onde com a porta do Audi aberta, o espera já, devidamente uniformizado o seu motorista particular..Ouve de Sua excelência uma espécie de grunhido que interpreta como “bom dia” e sem necessidade de qualquer palavra de ordem põe o carro a trabalhar e sai em direcção à Directoria-geral, que ele sabe ser o destino certo de Sua excelência às 10,30 todas as manhãs.
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Quando Sua excelência entra no seu sumptuoso gabinete, depois de ter sido mimoseado, através de vários corredores por dúzias de reverenciais, “bons dias, Excelência” e de acrobáticos dobras de colunas lombares e cervicais, que ele não dispensa ) “estes filhos de puta, a seguir ao 25 de Abril tornaram-se muito arrogantes, mas agora já voltaram a entrar nos eixos”, resmungava entre dentes sempre que recebia estes mimos. são agora exactamente 11.00 horas, marcadas no vistoso relógio incrustado na parede fronteira à sua enorme secretária, que ele faz questão de designar sempre por mesa de trabalho., provavelmente para não se confundir com a secretária de carne e osso (mais carne que osso, suponho) que lhe presta assistência...
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E aí está ela, a secretária. Vem trazer o correio e os jornais do dia. Não só tem muita carne, como eu adiantei, mas, sobretudo muito bem distribuída. Farto seio, que um decote ousado faz salientar, cintura fina, nádegas roliças e firmes, pernas gordas e bem lançadas. Sua excelência pede lhe para pôr tudo no lado mais à direita e mais ao fundo da mesa, aquele que a obriga a curvar-se, proporcionando-lhe uma melhor visão dos seios que quase saltam de dentro da blusa. Outras vezes, Sua excelência manda-a colocar tudo em cima do sofá ao fundo, em frente da mesa, afim de que, ao curvar-se, lhe possa, encher o olho concupiscente com a visão das suas coxas e da curva empinada da nádegas...
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Despede-a com um sorriso complacente, dá uma vista de olhos pelos jornais e, de entre o correio, começa por abrir o do seu Banco. Sabe que hoje traz o extracto dos seus saques e depósitos. O que vê, ilumina-lhe o rosto: mais 20 mil euros, referentes ao seu vencimento mensal, engrossam a partir de hoje a sua conta. Neste nem sequer toca. fica para juntar à grossa maquia de que já dispõe, bem recatada num Banco estrangeiro. Na verdade a pensão que recebe pelo tempo em que foi deputado e membro do governo, dá-lhe, só por si, para viver à grande...
Pouco depois volta a secretária com a pasta do expediente para assinatura de Sua excelência. Sua excelência nem olha, assina tudo com um displicente e enjoado, que canseira, meu deus!.
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Despacha tudo num quarto de hora e prepara-se para recomeçar a leitura dos jornais, quando a secretária anuncia. Está aqui o Sr. Edmond Smith. V.Excelência que recebe-lo? Que porra! quer uma pessoa trabalhar e estes gajos não me largam, mas de repente Sua Excelência lembra-se do nome e do negócio chorudo que lhe pode proporcionar. Sim, sim, posso dispor de uns minutinhos para receber o Sr. Smith. O Sr. Smith vem recordar o assunto da renovação de todo o material informático (hardware e software, com exlusivo por dez anos, à sua Direcção-Geral e a todas as empresas associadas, que dependem directamente de Sua excelência. Isso já foi tudo combinado, só quer saber se sua Excelência já obteve o parecer favorável dos seus Serviços Técnicos. Sua excelência não tinha ainda (isto é uma vida do catano, sabe?) mas trocou dois ou três telefonemas, chamou dois ou três colaboradores e tudo ficou resolvido num instante.
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Quando saiu o Sr Smith levava um sorriso de orelha a orelha e sua Execlência esfregava as mãos de contente. Mais um reforço para a sua conta. E pronto assim se passa a manhã e está na hora de almoçar. Francamente não deixam uma pessoa trabalhar. Menina, telefone aí para o Grill do Meridien e marque mesa para duas pessoas. Hoje faço questão que vá almoçar comigo. Mas, excelência… não há mas, nem meio mas, você merece e quero que me faça companhia.E lá foram, pouco depois.
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Regressam agora, são quase 15,30. ele meio bebido, de charuto nos lábios e ela corada que nem um pimentão e com o cabelo algo mais desarrumado.Mal se sentou e já a secretária interrompe. Excelência, a dona Mizé ao telefone. Só faltava esta! A Mizé é uma boazoana com quem ele anda envolvido há dois ou três anos e a quem até montou casa ali para o Restelo. Diz querida, que se passa? Tens saudade, também eu minha jóia. Agora? Agora não, querida, tenho aqui muito que fazer Quando sair passo por aí. Sim prometo. Ora, ora, como pode um pobre director geral fazer promessas com uma vida tão atribulada. O telefone toca de novo. O quê? participar no jantar de apoio ao nosso candidato, o professor Silva? Onde? Sei onde é. Claro, às 20 horas, por causa dos noticiários. E um donativo? Tanto? Sim, compreendo a campanha é dispendiosa. Claro que temos de ganhar isto, são os nossos interesses que estão em jogo. Então até logo.
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Lá se vai o encontro com a Mizé. Telefona-lhe a comunicar o inoportuno jantar que o impede de se verem hoje, Oh filha, não chores, fica para amanhã… querias muito que fosse hoje? (esta puta quer-me cravar algum vestido ou alguma jóia). Tá bem filha, são 5 horas, até âs 7 e meia dá muito tempo para a gente se divertir. Eu vou já para aí, quero-te com aquela lingerie cara que te comprei e o perfume que eu gosto. Que vida! Coitado de sua Sua Exelência.
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Passados 15 minutos estava no carro a caminho do Restelo. Vou poupar-vos a mais este sacrifício a que Sua excelência se vê forçado. Tudo se passou como previsto. As delícias que a boazona lhe proporcionou acabaram por lhe custar, como sempre, os olhos da cara, mas Sua excelência encara todas estas contrariedades com espírito de missão.Depois da tarde de sexo, ainda a estopada do jantar, onde teve de apertar a mão a uma data de idiotas, dar e levar umas quantas pancadas nas costas, cumprimentar o Professor, e bater frenéticas palmas durante a sua patriótica intervenção.
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Quando chegou a casa, dona Micá já estava deitada, mas acordada ainda: - Então querido, que tal te correu o dia? - Uma maçada, querida, venho mais morto que vivo! Sua excelência foi ainda à casa de banho, onde se deliciou bom tempo no seu indispensável coçar de tomates, fez mais uma larada em tudo semelhante à da manhã. tomou um duche rápido, deitou-se e adormeceu imediatamente. O caso não é para menos, depois de um dia tão fatigante. Este foi, pois, um dia como tantos outros na vida de Sua Excelência.
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Alguém notou alguma diferença entre sua Excelência e o comum dos mortais? Em minha modesta opinião a única diferença é que, por menos trabalho, ganha muito mais do que a grande maioria dos seus concidadãos, mas sua Excelência, precisa, coitado, não é?...

1.30.2006

EM VIDA, IRMÃO, EM VIDA


Qual de nós não deixou partir um ente querido, a mãe, o pai, a esposa, um irmão um amigo, sem lhe ter dito quanto o amava, sem lhe proporcionar o carinho, a palavra de afecto que adoçaria a sua partida? Qual de nós não tinha coisas para perguntar que nunca perguntou e se lamenta depois, amargamente, por todas as perguntas que não fez e às quais jamais vai poder obter as respostas de que precisava, A mim (e como o lamento!) já aconteceu e estou certo que o mesmo se passa com muitas, muitas outras pessoas.

É Assim, meus amigos. O ser humano tem uma capacidade infinita de amar e também de odiar, mas, enquanto as expressões de ódio se lhe soltam com uma facilidade por vezes inaudita e feroz, tem uma dificuldade tremenda em exprimir, em palavras, os sentimentos de amor de que, porventura, se encontre possuido.

Ora, se isto é assim em relação ao ser humano em geral, tenho para mim que nós, portugueses, somos particularmente canhestros, inábeis, timoratos, na forma de exprimirmos os nossos afectos, de nos abrirmos aos outros, numa palavra. Repare-se como a palavra amor é tão parcamente utililizada no nosso linguajar quotidiano.

Podemos falar desse e de outros grandes sentimentos mas quase sempre com letra maiúscula, como coisas abstractas, sempre precedidas de artigo (o Amor, a Amizade, a Bondade, a Justiça) mas sermos amorosos, amigos, bons e justos, aí a coisa fia mais fina. No que concerne ao amor, podemos até senti-lo, mas exprimi-lo em palavras constitui um embaraço tremendo para a maioria de nós.

Senão, repare-se: tirando o período exaltante do enamoramento, da paixão, da perseguição e da caça, quantos de nós, no dia a dia da nossa vida familiar, se dirigem à companheira (ou companheiro) com expressões como “amo-te”, “meu amor”, “meu bem”, ou mesmo se dirige à mãe com as ternas palavras “amo-te, minha mãe”? Muito poucos, tenho a certeza. É que a palavra amor tem uma densidade, um peso, que o nosso temperamento de portugueses sisudos tem dificuldade de soltar.

Veja-se a facilidade com que os brasileiros dizem “eu amo você, meu amor”, “adoro você, meu irmão”, “adoro vocês, meus amigos". Eles dizem isso a toda a hora, nas calmas, com a maior naturalidade. Do mesmo modo, os povos de língua inglesa, para não falar de outros, empregam no respectivo idioma expressões de amor com uma ligeireza e simplicidade que nós, de todo, não somos ou não queremos ser capazes. “I love you”, “yes, my love”, “sweet love”, e por aí fora.

Nós, só em circunstâncias muito especiais nos permitimos o uso, mas muito moderado, de tais expressões que consideramos, talvez, pouco adequadas ao nosso caracter. E isto não é apenas apanágio do sexo masculino, não senhor. Embora de uma forma talvez mais atenuada, as mulheres sofrem de igual incapacidade em exprimir este tipo de sentimentos.

E depois, depois, quando já não há remédio, vem uma espécie de remorso, uma inexprimível mágoa, por tudo o que se não disse, pelos gestos que não se fizeram, pelos carinhos que se omitiram, pelas perguntas que não se formularam – por falta de geito, por timidez, por preguiça, por orgulho mal entendido, quantas vezes! Só que então é demasiado tarde e não há expiação que possa remediar as oportunidades perdidas.

***
Vem isto a propósito de um lindíssimo poema que nos deixou o nosso Amigo padre José R...

O Padre Zé era amigo da família de minha mulher – da minha família, portanto, que é assim que ambos o entendemos. Filho de camponeses, nasceu na aldeia desses nossos familiares, que é também a de minha mulher, e ali foi criado, porta com porta, e com eles cresceu e se fez homem. E ingressou no seminário, e de lá saiu padre, e veio para Lisboa, onde exerceu os cargos de prior e de professor, na sua condição de clérigo e pedagogo.

Nunca deixou de se relacionar com os vizinhos, alguns dos quais cresceram com ele, bem como com os respectivos filhos, netos e restantes membros do enorme clã que eles constituem. Ele próprio passou a ser considerado como membro da família, especialmente após o falecimento de seus pais. Não havia festa familiar em que ele não participasse, quer como conviva, quer no exercício do seu munus sacerdotal.

Estava agora retirado de todas suas actividades, que a idade não perdoa, e vivia numa moradia que ele próprio mandara construir numa vertente da serra, bem próximo da natureza, da casa onde nascera e das pessoas que estimava.

Várias vezes estive com ele em festas e reuniões familiares, mas nunca tivemos oportunidades de entabular qualquer conversa para além dos cumprimentos e de algumas palavras de circunstância. Pois aqui há uns quatro ou cinco anos (o tempo voa e a gente perde-lhe a conta) numa festa de aniversário de casamento de uns dos nossos primos, aconteceu ficarmos sentados frente a frente. Tivemos, então, ocasião de conversarmos longamente e de perceber que era um homem culto, esclarecido, inteligente e afável. Devo também ter-lhe causado boa impressão, pois me manifestou vivo desejo de que voltássemos a conversar e que sempre que eu fosse à aldeia o procurasse.

No dia sguinte, logo pela manhã, iria a Lisboa, para fazer exames de rotina, dizia, e depois combinaríamos a maneira de voltarmos a encontrar-nos. Não houve nenhum depois. Com quantos dolorosos depois, que nunca aconteceram me vi confrontado ao longo da minha vida! ! E não só a morte, não, é a culpada destes "depois" que nunca se cumpriram. As teias que a vida tece se encarregam também, e quase sempre, de punir a nossa desatenção a sinais que tínhamos o dever de não ter ignorado.

Poucos dia passados, o padre Zé deixou-nos para sempre.

Entre as páginas da sua Bíblia, muito dobradinha, foi encontrada uma folha de papel com o seguinte poema que aqui deponho em sua homenagem:


* * *

Em Vida, Irmão, em Vida

Se queres feliz fazer
Alguém a quem queiras muito...
Diz-lhe, hoje. o teu querer
Fá-lo em Vida, Irmão, em Vida... .

Se desejas dar uma flor,
Não esperes que ela murche
Manda-lha, hoje com amor...
Fá-lo em Vida, irmão, em vida..,

Se desejas dizer" GOSTO DE TI"
Á gente da tua casa, que te é querida,
Ao amigo perto ou longe,
Fá-lo em Vida, Irmão, em Vida...

Não esperes pela sepultura
Das pessoas para as amar
E dar-lhes e sentir a tua ternura
Fá-lo em Vida, Irmão, em vida...

Ser venturoso mereces
Se aprenderes a fazer felizes
A todos os que conheces
Em Vida, Irmão, em vida...

Nunca visites panteões
Nem enchas tumbas de flores
Enche de amor corações
Em Vida, Irmão , em Vida....

(Encontrado na bíblia do Padre Zé)
14/04/2001

* * *
Desconfio bem que, português como nós, também ele nunca tivesse tido a coragem de mostrar aquele poema a alguém a quem amasse.
_____________________________
P.S.
O Padre Zé, soube-o, mais tarde, levou tão a sério a ideia de que é em vida que o amor e a amizade devem ser demonstrados, que deixou expressa a vontade de não querer flores no seu funeral, nem no cemitério, nem nada que lembrasse o seu nome. Assim quem hoje entra no humilde cemitário da terra onde viveu e morreu, encontra, logo à entrada, uma lage de mármore, negra, sem qualquer nome ou referência, que obrigatoriamente tem de pisar. É sob ess lage que repousam os restos mortais do padre Zé.
Nota: Pode ouvir este poema na voz inconfundível de Luís Gaspar, em
Lugar aos outros nº 10

1.28.2006

TO HAVE OR NOT TO HAVE

Ao fundo da Vila Gouveia, a meio caminho entre Moscavide e a estação dos Olivais, ficava a minha escola...
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Muito provavelmente já não existe o velho casarão de cor amarelo-sujo onde, com gosto, aprendi as primeiras letras desta língua em que penso e me exprimo.Há tantos anos foi, mas sinto ainda o cheiro do pó de giz e da ardósia onde essas letras eram desenhadas e apagadas vezes sem conta, até deixarem de ser conjuntos de riscos sem sentido para na minha cabeça se tornarem coisas e sentimentos e abstracções : (a mãe, o pai, a rosa, a menina, a flor, a aula, a amizade, o céu, deus, a eternidade) que aos poucos ia entendendo e assimilando.
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Ouço a voz austera do professor Clarinha, guiando-nos na fascinante descoberta do sentido das palavras tornadas texto, alimentando-nos da riqueza vocabular e estilística dos nossos grandes escritores, incutindo-nos noções de civismo, de respeito pelos outros e pela mãe-natureza (Ah, sim, era assim nesses tempos!) , iniciando-nos na aprendizagem das quatro operações e respectivas provas dos noves, fazendo connosco a viagem ao fundo da história de Portugal, fazendo-nos impar de orgulho com a gesta heróica dos nosso maiores e (que a isso era obrigado) exaltando a figura de Salazar, o Chefe providencial que deus tinha designado para preservar, agora, os destinos da Pátria.
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Ouço ainda a interminável litania da tabuada recitada em grupo pela voz sonora e fresca da criançada que fazia daquilo um divertimento: nove vezes um, nove; nove vezes dois, dezoito; nove vezes três, vinte sete, e por aí fora, até entrar para sempre na receptiva memória que era então a nossa.Ouço a estridência dos nossos gritos e risos correndo e jogando por entre as árvores do pátio de recreio. Lá estou eu, recuado no tempo, de bibe aos quadradinhos azuis e brancos, ruço de má-pelo, suado e vermellho que nem um pimentão, correndo, jogando com eles a “barra-do-lenço”, a “apanhada”, a “rolha”, a “primeira-caganeira”, a “macaca” e todos os inocentes entreténs dos putos de há uns setenta anos atrás.
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Naqueles anos a pobreza era muita e envergonhada. E os alunos da minha escola reflectiam, naturalmente, essa realidade. É certo que, para a escola, as nossas mães tentavam que fôssemos melhor arranjados mas, mesmo assim, o que valia era o tapa-misérias do bibe escolar para ocultar a modéstia das nossas vestes, sobretudo das calças e calções que, tendo mais uso, tinham de ser objecto de frequentes remendos . Lembro-me de ver rapazes cuja roupa tinha mais remendos do que tecido original.
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Parte dos alunos era de Moscavide, mas a maioria era dos Olivais e da Rua Nova –um pequeno lugarejo de pescadores que se situava mais ou menos no local hoje ocupado pela marina do Parque das Nações. Eram conhecidos por estranhas alcunhas como o Raquítico, o Berraria, o Pata-de-lobo, o Micagas, o Cara-cagada, o Águia-negra, o Esfolado e outras várias e inimagináveis designações, que davam bem a ideia do extracto social em que estavam inseridos. Muitos deles, por gosto ou por necessidade, andavam descalços, especialmente os da Rua Nova, que passavam a vida dentro de água com os pés metidos no lodo do cais da moagem à cata de caranguejos e lingueirões e toda a espécie de saborosos bivalves que o Tejo, ainda não poluído, generosamente nos oferecia.
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A princípio - restos do regime escolar da primeira República- os alunos não tinham escola à quinta-feira, dia dedicado a passeios pelo campo e visitas de estudo) mas pouco depois, com a criação da Mocidade Portuguesa inspirada, como se sabe, nas juventudes fascistas de Hitler e Mussolini, o dia sem aulas passou a ser aos sábados. Só que essa folga não dispensava a ida à escola e à participação em exercícios paramilitares da referida”mocidade” – a que mais tarde a malta do ensino secundário haveria de designar, à sucapa claro, de “bófia” e de “bufa”.
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E lá andava o pobre do professor Clarinha, homem de meia idade, pacato, pesadão, sanguíneo (a toda a hora sangrava do nariz) afadigado na inglória tarefa de transformar aquele punhado de garotos mal amanhados em garbosos “lusitos”, prontos, quiçá, a dar a vida pela Pátria, caso o grande Chefe assim o entendesse . Assim se passava toda a manhã (os rapazes tinham aulas apenas das 8.00 às 13.00), o professor a marchar ao lado malta: Sentiup! marche! esquerdo, direito! um, dois! esquerdo direito! braço estendido em saudação e olhar à direita! um dois, alto! Destroçar! Isto mil vezes repetido e a tropa-fandanga sem atinar com o passo e não levando a sério a patriótica missão que a pátria lhes confiava.
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Uma coisa de que nós gostávamos muito, embora parecêssemos uma ninhada de gatos a miar, quando a cantávamos, era do hino da juvenil organização. Era só esperar pela nota certa que professor entoava, após soprar repetidas vezes numa gaitinha que sacava do bolso do colete e lá desatávamos nós a berrar cada um para seu lado, guiados pela ineficaz batuta do mestre Lá vamos cantando e rindo/Levados levados sim/Pela voz do som tremendo/Das tubas - clangor sem fim.
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Que nós estávamos mesmo a ser levados só o vim a descobrir mais tarde; agora, o que me fazia muita confusão e achava mesmo a modos que pornográfica, era aquela do clangor, que eu entendia como que langor, e cujo som associava a uma determinada palavra que considerava relacionada com sexo, embora, valha a verdade, eu não fizesse a mínima ideia do significado exacto da palavra em questão, nem tão pouco sequer o que fosse exactamente essa coisa de sexo de que os mais crescidos tanto falavam.Por mim, a única coisa que sentia e que na minha fraca ideia me parecia que era capaz de ter a ver com sexo, era o calor que me ruborizava as faces, o bater do coração mais apressado e uma estranha ansiedade que por um lado me afligia e por outro me deixava inexplicavelmente feliz, sempre que na rua me cruzava com a Nandinha, uma miúda da minha idade ou quando a entrevia à janela, espreitando por detrás da cortina da casa onde morava, relativamente perto da minha.
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Os Pais dela eram pessoas muito educadas, sempre muito bem vestidas, constando que tinham feito fortuna nas Américas.. Não se davam com os vizinhos e assim era a filha, também.O raio da miúda mexia comigo. Aqueles olhinhos que eu adivinhava da cor do céu, aquelas pequeninas sardas, muito vivas, semeadas na vizinhança do narizito arrebitado, aquelas trancinhas louras com um lacinho nas pontas, davam-lhe um ar que eu só conhecia dos ”santinhos", aquelas pequenas estampas coloridas que nos davam na catequese com a figura de santa Teresinha do menino Jesus ou com lindos anjinhos (que não tendo sexo e vestidos com diáfanas túnicas azuis, eu imaginava sempre serem raparigas) como um esbelto e louro anjo-da-guarda que aparecia num quadro pendurado numa parede de minha casa, protegendo uma linda menina na travessia de uma velha ponte de madeira junto a uma altíssima queda de agua fervente de espuma.
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Deste anjo em carne e osso estava eu enamorado até ao fundo mais fundo do meu coração. Só que eu era um puto matarroano, há pouco chegado das berças, filho de gente modesta, como me atreveria a dirigir-lhe palavra. Tinha a impressão que ela se dava conta do meu interesse, pois às vezes me olhava com um esquivo sorriso e de pronto virava a cara, tornando a olhar-me antes de desaparecer quer pela porta da casa, quer por detrás da já referida cortina, com aquela garridice e sabida manha com que as miúdas já vêm a este mundo…Mas regresso à escola, que com tantas divagações ainda acabo por não passar de classe.
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Certo dia de 1937 ou 1938, teria eu, portanto, oito ou nove anos, chegou à escola uma dezena de fardas da mocidade e a ordem de preparar outros tantos alunos para, devidamente fardados, participarem num patriótico desfile da patriótica organização a realizar dentro de um dia ou dois na Praça dos Restauradores, seguindo depois para a Sociedade Geografia . Aí iria decorrer uma sessão solene para apresentação das novíssimas fardas, a qual se dignariam honrar com a sua presença, entre outros altos dignitários, Sua Excelência o venerando Presidente da República General António Óscar Fragoso Carmona, Sua Excelência o Senhor Presidente do Conselho de Ministros, Professor Doutor António de Oliveira Salazar e, se bem me lembro, Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa, pois sem ele nem a festa se fazia.
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Um grave problema se deparou, porém, ao professor Clarinha: como fardar, com o garbo e o luzimento que a cerimónia requeria e a categoria de tão excelsas figuras impunha, o número dos seus esforçados recrutas correspondente ao número exacto de fardas que o ministério se dignara atribuir à nossa humilde escola, se a maioria deles não tinha sapatos, pelo menos em condições de condizer com a nobreza das vestimentas novinhas, novinhas em folha.Feito o complicado e moroso inventário, apurou-se que só sete rapazes dispunham de calcantes sofrivelmente compatíveis com a belezura e a dignidade da fardeta. Um dos sete felizardos era eu.
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Dali a uns dias lá estávamos nós desfilando em volta do monumento aos heróis da restauração, metidos no meio de uma quantidade imensa de galfarros, que nunca tínhamos visto mais gordos e que nos olhavam de soslaio: esquerdo direito, esquerdo direito, e vá de encavalitar dois passinhos mais rápidos, em atabalhoada tentativa acertar o passo com os demais; e vá de estender o braço na saudação nazi (sabia lá eu, então, o que era isso!) e um gajo, que me pareceu meio amalucado, a berrar de cima de um palanque: Portugueses, quem vive? E a malta toda, estendendo e encolhendo o braço e a retorquir Portugal! Portugal! Portugal!, e o gajo a insistir: Portugueses, quem manda? e a malta, num frenesim: Salazar! Salazar! Salazar! (e nós, os da nossa escola, muito aparvalhados interrogando-nos que raio de merda seria aquela, pois o professor deve ter-se esquecido de nos instruir a tal respeito. E bandeiras e pendões a tremular ao vento! E clarins a clarinar, e tambores a tamborilar e lá vamos cantando e rindo, tudo isto numa chinfrineira, num que langor dos trinta diabos, em direcção ào imponente edifício da sociedade de Geografia.
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Depois de nos arrumarem nas cadeiras, cá bem atrás, que as filas da frente estofadas em veludo vemelho, se destinavam aos senhores importantes. Antes que chegassem o Salazar e o Carmona (a fome aqui era tanta que até me esqueci lhe colocar “excelência” a anteceder os nomes) vieram umas matulonas e uns putos mais crescidos do que nós, cheios de atavios e cordões, chefes de quina ou lá que raio eles eram, distribuir a cada um meio casqueiro com uma grande tora de marmelada, daquela rija e meio seca como eu gosto e um pirololito - aquelas garrafinhas com um berlinde lá dentro (lembram-se?) e que faziam comichão no nariz e umas cócegas danadas na garganta.
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Deglutida a bucha e como os grandes figurões nunca mais chegassem (é de bom tom as pessoas importantes chegam sempre uma hora depois da hora marcada) a malta miúda começou a agitar-se, a levantar-se, a pedir para fazer chichi … o costume. E também as meninas da mocidade, porque também as havia, começaram a mover-se em direcção à casa de banho ou a comprar rebuçados no bar. Lá vinha um grupo delas avançado a custo através da fila de cadeiras onde eu me encontrava. Ao passar por mim, uma delas tropeçou, desequilibrou-se e caiu no meu colo. Levantou os olhos para se desculpar e oh céus! Oh poderosos deuses e deusas protectores dos amorosos tímidos! Era ela, era a minha amada Nandinha que eles generosamente tinham enviado para mim e depositado no meu colo! Eu não sabia, mas as meninas (que não andavam na escola ao mesmo tempo que os rapazes) também tinham sido recrutadas para a festança e a Nandinha – ao que eu sabia - jamais seria excluída por falta de sapatos.
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E ali estava ela, ao meu colo, atarantada que nem um passarinho tonto e eu, meio esparvoado, sem saber o que fazer com tão generosa dádiva. Pareceu-me que ia desmaiar. O coração bateu-me forte no peito, o sangue subiu-me às faces, as pernas tornaram-se tão trémulas que julgo que cairia se não estivesse sentado. A atrapalhação da miúda, então, era indescritível. Corou, balbuciou qualquer coisa que eu entendi como um pedido de desculpa (eu já não via nem ouvia direito) e, por entre risinhos e cochichos das companheiras, lá seguiu o seu rumo em direcção aos lavabos das senhoras.Pouco depois, por entre palmas e fanfarras chegaram, finalmente, os gloriosos liders.
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Seria uma honra, a poucos concedida, ver de perto aquelas figuras tão famosas (tanto assim que nunca mais isso voltou a acontecer-me) mas os meus olhos, desde que descobri o lugar exacto onde a minha diva se sentava, não mais encontraram outro pouso. De vez em quando também ela furtivamente me olhava, para de imediato voltar a cabeça, mas não tardava que os seus olhos voltassem a procurar os meus. Acho que naquele dia ela me terá achado mais atraente do que quando me encontrava na rua e o caso não era para menos, dentro da minha camisa verde, novíssima, calções e meias cor de canela, sapatos a reluzir e a trunfa excepcionalmente penteada a preceito e lustrosa de brilhantina.
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Dali em diante, sempre que nós encontrávamos na rua, passámos a dizer Olá! E este olá, da forma como era dito, naquela idade e naquele tempo, constituía uma genuína declaração de amor.Não tardou, porém, que o namoro fosse oficializado por escrito. Com a razoável facilidade de escrevinhar com que, modéstia à parte, a natureza (parca noutros dons) me concedeu, garatujei numa folha de papel quadriculado que arranquei do meu caderno de contas, uma patética missiva, na qual em matreiro aproveitamento da sua queda no meu colo, invocava a inevitabilidade de fuga ao amor que o destino nos traçara e concluía com a inevitável e decisiva questão: queres namorar comigo?
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Só uma semana depois a apanhei a jeito na padaria onde ambos tínhamos ido comprar (ela os papo-secos e eu o pão de mistura) que as nossas mães nos haviam encomendado. Depois do derretido olá, saquei do bolso dos calções o já amarrotado papelinho e rapidamente lho enfiei no cesto do pão. Corámos os dois e rapidamente nos esgueirámos a correr cada um para seu lado, Tão excitado que, pasme-se, até me esqueci de comer o contrapeso pelo caminho -tarefa a que só um caso de força maior, como este, me impediria de cumprir religiosamente.Poucos dias depois, noutra loja, já me aventurei a perguntar de viva voz: então, queres? Disse que sim e foi de mãos dadas que, sem falar (éramos e namorados e pronto) a acompanhei até junto da porta da sua casa.
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Nessa noite em todas as noites seguintes a Nandinha passou a habitar todos os meus sonhos. Nunca a minha mãe lhe passou pela cabeça que, dum momento para o outro este seu filho, passasse a ser tão solícito voluntário para ir à rua fazer-lhe todos os recados. Da mesma maneira ela inventava toda a espécie de pretextos que sabiamente aproveitávamos, para sair de casa.Os nossos recados incluíam sempre uma volta muito maior do que o percurso necessário para os fazer. No regresso a sua casa, por vezes dávamos furtivos e fugidios e castos beijinhos. Era um deslumbramento! Eram as clássicas imagens de um amor infantil. Único e irrepetívelOs outros putos da rua, se bem que morressem de inveja, mostrava-se bastante solidários e avisavam-me sempre que, distraído com as brincadeiras e correrias, não me apercebia da sua presença. Ò Toino, ò Toino, eh pá vai ali a tua namorada. Durou pouco porém o enlevo desses felizes dias.
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Foi à porta de um lugar de frutas e hortaliças , enquanto a mãe lá dentro fazia as suas compras que ela, com grossas lágrimas as bailarem nos tais olhinhos da cor do céu, que faziam o meu encanto, me meu a súbita, a inesperada, a terrível notícia de que provavelmente não nos tornaríamos a ver, pois os pais tinham subitamente decidido mudarem-se para Viana do Castelo, de onde eram naturais. Entretanto chegou a mãe com as compras. A Nandinha disfarçou, tentou recompor-se. Eu disfarcei também, fingi que ia a passar e que nada tinha a ver com ela. E com os olhos vermelhos, o estômago doendo e o coração destroçado segui o meu caminho, sem sequer olhar para trás.
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Só voltei a vê-la mais uma vez, à janela. Um breve aceno, um beijo com os dedos… e a cortina corrida. Para sempre. Nunca mais a vi, nem nunca mais notícias tive, sequer, a seu respeito. Assim acabou o primeiro dos meus amores eternos.
Outros se seguiriam. Todos mais eternos uns do que os outros. E dizer que tudo o que relato aconteceu apenas porque ela tinha sapatos e porque eu, por acaso, também tinha. Aprendi mais tarde que este princípio, de ter ou não ter, vai muito para além de sapatos ou de amor. Quase tudo na vida depende disso
Ter ou não ter é, pois, a questão
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PS: No caso vertente é motivo para dizer: ainda bem que o meu pai era sapateiro!

1.27.2006

HISTÓRIA DE UM LIVRO

A propósito de Ilse Losa, recentemente falecida, ocorreu-me um episódio curioso ocorrido há muitos anos com uma das suas obras, "Rio sem Ponte".
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Trabalhando na Baixa, durante muitos anos o meu passatempo predilecto à hora do almoço (para além de, como já referi noutra crónica, visitar de parceria com o meu Amigo Artur Vaz, as melhores pastelarias da zona e, quais petits Gavrocheses fora de tempo, esborrachar o nariz e os lábios contra os vidros das respectivas montras para apreciar o que os ricos comem e irritar os ditos ricos com a zombaria das nossas caretas e motetes) era percorrer os vários alfarrabistas que circundam a zona do Chiado, à cata de um livrito em segunda mão, que o meu parco vencimento ou distracção aquando da sua publicação, não me tivessem permitido adquirir em tempo oportuno. Assim fui enriquecendo a minha biblioteca. E tanto, que hoje não sei o que fazer com tantos livros. Ainda acabo por morrer afogado neles.
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Lembro-me que o meu sogro - homem bondoso como poucos, mas algo simplório - abria a boca de admiração sempre que contemplava a minha biblioteca (e nessa altura ela era metade do que é hoje) e dizia com ar muito embevecido: Eh rapazes, com o dinheiro que aqui está empatado comprava-se um belo olival! Claro que o bom do ti João não lhe passava pela cabeça que o meu olival estivesse ali, naquelas estantes e nas páginas poeirentas dos volumes nelas alinhados...
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Mas voltando ao romance da Ilse Losa:
Um dia, espreitando as prateleiras de um alfarrabista que havia (e há apesar de se terem passado mais de quarenta anos) na Calçada do Duque, descubro, entre a enorme fila de outros, um livro que, mesmo de longe, me chamou a atenção pelo desenho da etiqueta dourada da lombada e pelo verde granitado da mesma, que me pareceu algo familiar. Aproximo-me, vejo o título e o autor, vi que era o "Rio sem Ponte" e, mesmo sem o abrir, soube que era meu. Abri-o, e lá estavam , sem tirar nem pôr, os gatafunhos da minha desajeitada rubrica.
Não fazia a mínima ideia de como fora ali parar um livro que eu juraria permanecer arrumadinho e estático numa das minhas estantes, mas ali estava ele - prova muda e concludente de que nada se deve tomar como adquirido e que juras são sempre inúteis e às vezes perigosas.
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Brinquei com o alfarrabista, que me conhecia muito bem, perguntando por quanto me vendia aquele livro que era meu, conforme lhe provei. O homem, coitado, que tinha pago a alguém para o adquirir, muito provavelmente por uns míseros escudos, acabou por mo vender com o lucro que achou razoável - que ele não estava ali para perder dinheiro.
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Á noite, em casa contei a história do livro a minha mulher que me ajudou a resolver o enigma. Tinha sido ela que o emprestara a uma jovem vizinha, havia tanto tempo que até já se esquecera do facto. A moça provavelmete tê-lo-á perdido mas, talvez por vergonha, "nunca deu cavaco" (eu disse Cavaco? lagarto, lagarto, lagarto!) e nós, também por vergonha de que ela sentisse vergonha, também não nos demos por achados.
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O certo é que o livro que comprei duas vezes, cá está, junto aos seus irmãos de raça, muito arrumadinho, na sua encadernação de verde granitado, podendo ler-se na lombada, entre duas vinhetas douradas, o título "Rio sem Ponte" e o nome do autor "Ilse Losa".

PROMESSAS GORDAS E AMBIÇOES MAGRAS

Certa tarde de um fim de verão de 1958, encontrava-me sentado com um amigo de infância, empregado bancário, à mesa de um de um dos muitos cafés da baixa lisboeta. Falávamos das condições de vida e de emprego de cada um e concluí que as minhas, como funcionário da CP eram deploráveis em comparação com as dos bancários, nessa altura uma profissão considerada muito bem remunerada.Tão revoltado estava com o ninharia que auferia na CP e sobretudo com a falta de perspectivas de ascensão na carreira, que a minha voz saiu mais empolgada e mais audível quando desabafei com o meu amigo: Eh pá dava tudo para sair da merda deste emprego. E lá continuámos em amena cavaqueira por mais algum tempo, o meu amigo a encorajar-me, que fazia muito bem em tentar sair pois conhecia muito bem as minhas qualidades e competência e merecia, em seu entender, uma melhor situação.Até que , finalmente, se despediu e foi â vida dele.
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Imediatamente, um fulano que estava sentado numa mesa mesmo ao lado, se levantou, e pediu licença para se sentar na minha mesa. O pedido e o acto foram simultâneos. Ainda eu, meio aparvalhado não sabia o que responder já ele se encontrava sentado na minha frente. Era um tipo alto magro, elegante, muitíssimo bem vestido, fato de excelente corte e uma longa gabardina preta sobre os ombros, lacinho vermelho a sobressair de uma colarinho engomado e de uma camisa branca, finíssima. Cabelos negros, muito bem penteados, orelhas algo pontiagudas, sobrancelhas espessas, olhos penetrantes, lábios finos e boca que se serrava num rictus que me pareceu poder ser, por vezes, muito cruel.
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Durante momentos que me pareceram intermináveis, limitou-se a encontrar uma posição confortável na cadeira, abrir com as mãos enluvadas uma belíssima cigarreira de prata, oferecer-me um cigarro, que recusei, acender o seu, puxar umas fumaças, enquanto me envolvia em silêncio num olhar penetrante que me confundia. Finalmente falou:- Desculpe, meu caro Senhor, mas ouvi-o dizer que dava tudo para sair do emprego que tem (não sei porquê, mas a palavra “tudo” foi pronunciada com um tom de voz e uma firmeza que me pareceu adquirir um valor absoluto na sua boca, muito para além do “tudo” que eu tinha mencionado e que na maior parte das vezes significa apenas “muita coisa”) Isso significa, continuou ele que está interessado em arranjar um emprego que lhe traga mais vantagens.-Assim é, respondi.- Pois, meu caro amigo, permita que o trate assim, eu estou em condições de lhe proporcionar um emprego que vai exceder todas as suas perspectivas- Como assim?- Trabalho com uma multinacional do ramo dos petróleos que vai abrir uma grande dependência em Paris e estou incumbido de recrutar pessoal para lugares administrativos, quiçá de direcção – gente que seja ambiciosa, como vejo que é o seu caso, e com qualidades que julgo também terá, pela conversa que ouvi há pouco e pelos elogios que lhe fez o seu amigo. E, acto contínuo, puxou de uma caneta que era um luxo, de uns papeis que sacou do bolso e rematou:
- Basta que me dê os seus elementos identificativos, me assine esta declaração e dentro de poucos dias o senhor está em Paris, com um ordenado chorudo e um carro às ordens.
- Chorudo, quer dizer quanto? Perguntei.
- Entre 20 a 25 mil escudos mensais.
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Arregalei os olhos de espanto pois nessa altura ganhava eu a ridícula importância de 1.700, mas como o dinheiro felizmente nunca me cegou, logo refreei o meu entusiasmo e o bom senso falou mais alto.
- E é a mim, que o senhor não conhece de lado nenhum, que vem oferecer esse emprego milionário?! Porquê
- Ora, porquê? porque ouvi-o dizer com tanta veemência que daria tudo para deixar o emprego que tem, que achei ser uma pessoa com determinação suficiente para aceitar todo e tudo merecer.
- Alto aí, esse tudo não significa, por exemplo, vender a minha alma ao diabo.
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Aí o homem deitou-me um olhar que me deixou gelado. Seguiu-se um grande silêncio entre nós e ele voltou às suas ofertas não já como a pessoa importante que tem sumptuosos empregos para oferecer, mas com ar quase paternal e blandiciosas palavras, “que era uma oportunidade única, que eu era um jovem dinâmico, que fazia muito mal se deixasse fugir uma ocasião que podia não mais vir encontrar” e patati patatá, por ali fora.
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Confesso que comecei a ficar baralhado, envolvido na teia das suas palavras, mas tentei reagir, “que não, que estava casado há pouco mais de um ano, estava esperando o primeiro filho e não ia ausentar-me por nenhum dinheiro do mundo”. E o homem a insistir, isso não seria problema, que mais tarde poderia vir buscá-los. A proposta era tão aliciante, tão fantástica que já não sabia que argumentos mais poderia inventar para a recusar. No entanto, subitamente, uma razão me ocorreu para o fazer. Acabadas as eleições presidenciais em que o concorrente General Humberto Delgado fora miseravelmente espoliado da sua condição de vencedor, vivia-se no país um ambiente pré-insurreccional que galvanizava toda a sociedade portuguesa. Havia greves em vários pontos do país que tinha levado à prisão dezenas de trabalhadores. Esperavam-se movimentos de massas e mesmo de militares susceptíveis de mudar a situação política no nosso país. Na própria CP se vivia um inusitado movimento reivindicativo. Apesar da conhecidas dificuldades em conseguir que as pessoas assinassem moções de protesto e de carácter político, uma exposição redigida por mim, na qual eram exigidas melhores condições de trabalho e salariais na Empresa recolheu a assinatura de cerca de 15 mil ferroviários ao longo de toda a rede. Pois foram estas razões, mais ainda do que o facto de me afastar da família, que foram determinantes na recusa em aceitar a mirabolante proposta que estava sendo feita. É que eu não queria, por nada deste mundo deixar de estar presente quando esses esperados acontecimentos viessem a ocorrer.
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Infelizmente o que se passou foram episódios isolados, como o caso de Beja, o assalto ao paquete Santa Maria e pouco mais e eu próprio fui parar à cadeia pouco tempo depois. E contudo, por muito estranho que isto possa parecer a muita gente foi a consideração desta hipótese de mudanças e do meu desejo de nelas participar que decididamente me levaram a recusar a aliciante proposta. É que há prazeres que não há dinheiro no mundo que os pague!Uma vez tomada esta decisão não demorei a anuncia-la. Foi num tom ríspido e definitivo que o fiz: “meu caro senhor não estou interessado no seu emprego. Entregue-o a outro que o queira e passe muito bem”.
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O homem levantou-se furibundo e com uma agilidade surpreendente saiu porta fora. Ainda o vi por um momento, através da montra, mas curiosamente desapareceu, de súbito, no meio da multidão como se se tivesse evaporado. Entretanto o empregado de mesa chegou-se ao pé de mim com uma estranha pergunta: “o senhor reparou que o sujeito que acaba de sair cheira a enxofre que se farta?” Não eu não tinha dado por isso, pois estava muito constipado nesse dia.Vim a saber posteriormente que um indivíduo com iguais características tinham abordado outros colegas meus com ofertas semelhantes e que dos dois que as tinham aceite e abandonado a CP, nunca mais ninguém voltara a ter notícias.Ninguém me tira da cabeça, sobretudo hoje, retido em casa, com gripe, ardendo em febre, que foi com diabo que eu falei naquele fim de tarde daquele fim de verão do longínquo ano de 1958.
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PS: - O prazer que não obtive em 1958 vim a saborea-la, com juros de acréscimo, dezasseis anos mais tarde, com o 25 de Abril de 1974. Quanto ao meu emprego na CP, as mudanças sociais entretanto ocorridas, e o meu esforço de valorização académica e profissional levaram-me a concluir que não teria valido a pena procurar longe, o que encontrei aqui.

1.25.2006

O MEU AMIGO ARTUR


Artur José da Silva Vaz era o seu nome completo.
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Filho de pai e mãe ferroviários, ele do Retaxo (terra de bom azeite) na Beira Baixa e ela de Lisboa. o Artur - como acontecia com os filhos de muitos ferroviários, dada a mobilidade que, ao longo da vasta rede do caminho de ferro, o exercício das sua funções exigia - acabou por nascer acidentalmente em Setúbal.
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Apesar de morarmos bem perto, eu em Moscavide e ele na estação de Braço de Prata, numa casa da Companhia, junto dos pais e de duas irmãs que adorava, contactei com ele pela primeira vez em 20 de Setembro de 1948, data em que ambos ingressámos, como praticantes de escritório nos serviços centrais da CP, em Santa Apolónia. Eu que, detesto números, fui colocado numa repartição ligada à contabilidade, a ele, mais dado a contas, coube-lhe a repartição de recrutamento de pessoal. A vida prega-nos cada partida!Logo ficámos amigos – uma amizade que iria durar toda a vida.
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Éramos tão parecidos fisicamente, que muita gente nos julgava irmãos: mesma estatura, o mesmo tom de pele, o mesmo ar corado, o mesmo nariz aquilino. E, contudo, éramos diametralmente opostos no que toca a gostos e conceitos de vida. Eu, era relativamente organizado e metódico; ele, um nossa-senhora-não-te-rales. Eu, era bastante cuidadoso com a forma de vestir; para ele, bastava andar vestido. Eu, era virado para as letras; ele, cultivava o gosto pelas coisas técnicas. Eu, deleitava-me com a leitura de um poema; ele extasiava-se com o funcionamento e a minúcia de um qualquer mecanismo. Eu, lia a Vértice; ele, adorava embrenhar-se na Science et Vie. Ele, admirava o american way of life; eu abominava (e abomino) o modus vivendi dos “camones”. Eu, apreciava a argúcia bonacheirona do comissário Maigret; Ele, delirava com a cínica violência dos personagens de Mickey Spillane.Duas características haviam, no entanto que nos irmanavam. Uma, era a paixão pelo cinema - da parte dele em doses industriais, papava tudo quanto houvesse e era capaz de ir assistir apenas à segunda parte do 2º filme de um dos muitos cinemas de reprise que então havia em Lisboa; da minha parte, essa paixão exercia-se de uma forma mais selectiva – a outra, era a incontida aversão ao regime salazarista.
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Passámos a andar sempre juntos. Um, falava de alhos e o outro, de bugalhos. Falávamos, falávamos,mas nenhum de nós escutava o que o outro dizia. Isso não era importante e não impedia o estabelecimento de uma forte amizade. Ás vezes tínhamos acaloradas discussões mas no fim já nem sabíamos porquê, e acabávamos rindo de nós mesmos. Nunca nos zangámos.Era um moço afável, generoso, leal, e extremamente prestativo.
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Quando me casei ele foi incansável nos pequenos trabalhos, adaptações e arrumações que uma casa nova sempre necessita. Fez questão em me fazer uma mesa com o tampo de abater quando não em serviço, fixa numa das paredes da cozinha.Foi objecto de tantos estudos, tão elaborados cálculos e pesquisa de materiais que, proporcionalmente me deve ter custado quase tanto como a ponte sobre o Tejo em Alcântara. Mas resultou funcional e de tal modo firme, que teria de deitar a parede a baixo, se a quizesse levar, quando mais tarde mudei de residência. Possivelmente, e já lá vai quase meio século, ainda lá estará, firme, como testemunha do primeiro café da manhã que eu e a Adelina ali tomámos a seguir à noite de núpcias.
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No nosspo casamento era previsto participarem exclusivamente pessoas de família, mas depois de tanto trabalho do Artur, depois de tanto empenho para que a casa dos noivos ficasse nos trinques, era inimaginável que o meu Amigo ficasse fora da festa. Ele foi a única excepção à regra. Mas ele era um verdadeiro irmão.
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Um dos nossos passatempos de praticantes de escritório sem cheta no bolso era, de brincadeira, comprimir a cara e os lábios contra a montra das pastelarias finas (Benard, Império e outras) para, de olhos arregalados, ver, como dizíamos, “aquilo que os ricos comem”. Algumas vezes os empregados nos escorraçaram a pedido das respeitáveis madamas, naturalmente incomodadas com a fixidez do nosso olhar acompanhando cada garfada que, com gestos requintados introduziam nas boquinhas delicadas, evitando esborratar a linha do carmesim dos lábios. De quando em vez, contados ostensivamente os tostões que vasculhávamos nos bolsos, entrávamos também e com exagerados motetes, lambidelas de exagerada volúpia e olhos em alvo, deglutiámos encostados ao balcão, virados para as senhoras, uma pirâmide de chocolate granitado recheada de licor, muito em voga na época e de que nós éramos fanáticos apreciadores. Era uma festa, nesses dias!
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Juntos mergulhámos na acção política de oposição ao regime. Eu, por ideologia, ele por solidariedade e confessado espírito de aventura. Juntos distribuímos panfletos, juntos pintámos palavras de ordem em velhos muros. Algumas delas ficaram incompletas com a aparição de algum intruso que nos fez largar os pincéis e a lata e dar à sola enquanto era tempo. Ainda não há muitos anos tive ocasião de ver uma dessas inacabadas inscrições (às armas contra o fasc…) inscrita numa parede, ali para os lados de Cabo Ruivo, muito debotada, mas ainda resistente ao tempo (pudera! a formula da tinta era invenção do Artur). Mais resistente foi a iscrição do que o dito fascismo que acabou (acabou?) por se desmoronar, não muitos anos depois. Este tipo de palavras de ordem eram de verdadeiros franco-atiradores, o palavreado era da nossa lavra e não obedeciam a instruções organizadas de ninguém.
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Alguns dos panfletos eram redigidos por mim mas ele nem se dava ao trabalho de os ler. A ele importava, sim, a maneira de os distribuir. Chegou a imaginar (e fez experiências nesse sentido) uma espécie de foguetão que fizesse cair uma chuva deles num campo de futebol numa tarde de domingo (sim, nesse tempo os jogos realizavam-se nas tardes de domingo, juntando ao fulgor do desporto e ao entusiamo dos adeptos a alacridade do sol daquelas saudosas tardes de bola.
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Junto nos envolvemos na campanha eleitoral para a Presidência da República no verão de 1958. Primeiro pelo candidato Arlindo Vicente e depois por Humberto Delgado. Na sequência destas houve uma enorme vaga de prisões e nós estávamos na mira da PIDE.
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Com efeito, na manhã do dia 13 de Janeiro de 1959, acompanhados do nosso Chefe de Serviço, dois agentes da PIDE irromperam pela repartição, situada na Calçada do Duque onde na altura, trabalhávamos os dois. Era uma sala enorme com umas duas ou três dezenas de secretárias onde funcionavam algumas secções que nada tinham a ver umas com as outras. Vinham para prender o Artur.
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Uma vez identificado, começaram a vasculhar-lhe a secretária. A dada altura, o Artur deu um encontrão num dos pides e desatou a correr pelo mei0 das secretárias, saindo porta fora, perseguido de pistola em punho pelos dois agentes.Atrás da porta e do guarda vento por onde ele desapareceu, veloz que nem láparo perseguido por caçadores, havia três saídas: a da frente dava acesso ao gabinete do Chefe de Serviço, a da direita, por onde os pides tinham entrado, dava para o pátio interior, e a da esquerda, através de uma escada de caracol, um estreito corredor e outra escada de caracol, que só poucos conheciam, levava direitinha à gare de embarque da estação do Rossio.Os pides viraram à direita enquanto o Artur, conhecedor dos cantos da casa, virou à esquerda, esgueirando-se pela escada de caracol. Chegar à gare desaparecer entre os passageiros aglomerados na plataforma, foi obra de um momento.
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Entretanto, logo que eu ouvira os Pides darem ordem de prisão ao Artur, tinha saído imediatamente para o pátio e ido por todos os escritórios circundantes a dar o alarme de que o estavam prender e a exortar os colegas a virem manifestar-se contra tal acção (acudam que prendem o mestre, diria o velho Fernão Lopes). E lá veio tudo para o patio: escriturários, contínuos, cozinheiras e todo o pessoal da cantina, situada mesmo de fronte. Assim, quando os pides saíram, cabisbaixos, depararam com um numeroso grupo de pessoas que os interpelavam e lhes chamavam todos aqueles nomes feios que os meninos só dizem quando a mãezinha não está presente e foi sob uma chusma de insultos que abandonaram as instalações da CP.
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Quando tudo sossegou dirigi-me à minha secretária para retomar o meu trabalho. ali encontrei, porém, o meu Chefe de Serviço, pálido como a cera, e mostrando-se surpreso com a minha presença, pois concluíra, apressadamente como se provava, que eu me tivesse igualmente escapulido. Informou-me então, algo embaraçado, que os pides, face à fuga do Artur, tinham manifestado a intenção de me levar a mim e que, sendo assim, não podia permitir que eu continuasse ao serviço.
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Aí, casadinho de fresco e aguardando o nascimento de um filho (que viria a ser uma menina) ao contrário do Artur que era solteiro, não estando preparado (nem tendo motivos) para fugir e impedido de trabalhar, resolvi, depois de almoçar, não digo nas calmas porque mentiria, dirigir-me à sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso de má memória para perguntar (demais o sabia eu) o que pretendiam de mim. Só voltei à liberdade (vigiada, que era a de todos os portugueses) 94 dias depois. O “tratamento” que tive enquanto lá estive foi o esperado. Paguei pelos dois.
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Entretanto o Artur conseguiu quem o acolhesse e desapareceu da circulação durante uns tempos, vivendo obviamente uma situação difícil. Ora,uns meses antes antes da minha prisão, eu tinha montado com a colaboração de vários amigos um esquema que nos permitia, através de uma subscrição em todos os Escritórios, quer da Calçada do Duque quer de Santa Aplónia, perfazer o vencimento dos nossos colegas presos, Homem de Figueiredo e Manuel Cabanas. Claro que, quando chegou a minha vez, o esquema passou também a funcionar, abrangendo-me igualmente. Só que minha mulher, tendo o seu vencimento assegurado e sabendo como encontrar o Artur, fazia-lhe chegar, direitinha, a parte que me cabia.
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Passado um ano ou dois apareceu nos jornais, com grande destaque, a notícia do naufrágio nas costas de Marrocos de uma pequena embarcação com matrícula portuguesa e o nome de Santa Margarida tendo sido salvos e entregues às autoridades os dois tripulantes, portugueses também.Não sei porque carga de água, tive um pressentimento e comentei com minha mulher: “não me admirava nada que o Artur estivesse metido nisto”. É que uma das suas engenhoca em que ele se entretinha, já havia tempos, era a construção de um barco na doca do Poço do Bispo. Então e não é que era mesmo coisa dele. Soube-o dias depois, quando foram identificados em Lisboa e entregues à PIDE. Esta coisa de pressentimentos tem que lhe diga!.
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Como entretanto eu já fora libertado fazia algum tempo e o caso não lhes deve ter parecido de gravidade, o Artur, contrariamente ao que seria de supor, saiu em liberdade poucos dias depois.Claro que nunca mais pode voltar à CP. Fazia uns trabalhos como desenhador, para os quais tinha muito mais vocação do que o trabalho de escriturário (duvido que alguma vez tenha havido na CP um tão mau empregado de escritório) e entretinha-se com as suas engenhocas, aparecendo de longe em longe, até que em fins de 1960, trabalhando então como desenhador de móveis na oficina do meu irmão Diamantino, me procurou com um ar muito misterioso para me confidenciar que, dentro de algum tempo iria participar numa acção armada levada a efeito por civis e alguns militares, destinada a criar condições para um levantamento popular visando o derrube do regime. Queria que eu o ficasse sabendo, para a hipótese do pior lhe vir a acontecer. Confesso que não fiquei grandemente entusiasmado. Tentativas dessas já houvera outras e sempre falhadas, Fiquei sim, muito preocupado com o que pudesse acontecer ao meu amigo.
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Alguns dia depois os jornais de 1 Janeiro de 1961 noticiavam em grandes parangonas que o quartel de Beja tinha sido assaltado durante a passagem de ano por um grupo de pessoas armadas, tinha havido tiroteio, no qual tinha perdido a vida um secretario de estado, a grande maioria dos assaltantes tinha sido detida e se aguardava a captura iminente dos que haviam logrado escapar. Um desses fugitivos, soube-o depois, era o Artur.
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Curiosamente o primeiro detido relacionado com esta aventura, não foi nenhum dos intervenientes. Foi o meu Irmão Diamantino. A PIDE, sempre muito bem informada através da sua extensa rede de bufos, sabia que algo se preparava, vigiava o Artur, sabia onde ele trabalhava (e julgo mesmo que dormia) e logo às primeiras notícias do golpe se dirigiu à oficina e posteriormente à residência de meu irmão. Este, porém, com a força moral de que dá uma consciência tranquila, recusou-se a franquear-lhes a entrada. Não abria a porta, dizia, a um grupo de meliantes, às tantas da madrugada. Eles insistiram, tentando forçar a entrada e ele então barricou-se, resistindo a todas as intimações e ameaças para que abrisse a porta. Entretanto nasceu o dia e como ele se mantivesse irredutível chamaram reforços: várias carrinhas da PSP. Munidos de um poderoso altifalante, que atroava toda a rua voltaram, voltaram a intima-lo. Moita-carrasco. Mandaram evacuar o prédio. Apenas o segundo piso direito continuou ocupado. Lá dentro, o Diamantino, a mulher e o filho (um menino de dois ou três nos) nem uma nem duas. Só com disparos de bombas lacrimogéneas, a partir da rua e através das janelas conseguiram faze-los sair. Procuravam armas, diziam. Meu irmão mostrou-lhes a pistola de brincar do filho, que outras não havia.Levaram-no preso, claro. A ele e à mulher. O filho ficou entregue aos cuidados da porteira. A mulher saiu poucos dias depois, enquanto ele permaneceu preso durante dois meses sem nunca lhe ter sido permitido receber visitas, nem da própria mãe a quem ameaçaram de prender também caso não deixasse de exigir que lhe mostrassem o filho. Quando saiu perguntei-lhe se lhe tinham batido. Nas primeiras horas não houve quem chegasse ao pé dele (e foram muitos) que não lhe batesse.
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Voltando ao Artur. Foi preso no dia seguinte, em Tavira. No meio do azar teve tanta sorte que uma bala lhe roçou as costelas, furou a samarra que levava vestida mas desabotoada e saiu sem lhe ter provocado o menor ferimento. Três anos e meio durou a sua prisão.Casou pouco depois do seu regresso à liberdade, abriu uma loja de móveis, mas a coisa correu mal. Ele era um criador, não um negociante. Viu-se forçado a emigrar para França (arredores de Paris), nos finais da década de 60.
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Após vários empregos, chegou a ter uma situação muito estável numa empresa de fabrico
e montagem de perfis de alumínio, Desenhava, e criava alguns desses perfis e era chefe de secção, muito cotado e respeitado pela sua competência, até que descobriram, por mero acaso, que o Messieur Vace (é assim que eles pronunciam Vaz) não era um emigrante do centro da Europa, como a sua preparação, aspecto e brancura de pele faziam supor, mas um mero portuga – tipo de emigrantes muito desdenhados na época, só utilizados nos trabalhos pesados da construção.
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A partir de então, chauvinistas como se sabe serem os franceses, passaram a desrespeitá-lo e a fazer-lhe a vida negra.Não esteve para os aturar e resolveu mudar de emprego. Começou por trabalhar como taxista. Primeiro para um patrão e depois com carro próprio. Algumas vezes viajei com ele, como amigo, claro) Estava sempre a enganar-se no traçado uniforme do quadriculado das ruas de Paris: Oh, merde ! estas ruas são todas iguais. Aliás ele preferia aguardar nos aeroportos a chegada de passageiros dos voos internacionais. Fugia do bulício do centro e as corridas eram mais proveitosas.Finalmente tinha uma vida estabilizada. Ele com o seu táxi e a mulher com um emprego nos serviços sociais da mairie do seu bairro. Tudo sobre rodas, como sói dizer-se.
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Além do seu trabalho com o táxi ocupava-se com os seus desenhos, com as suas engenhocas, tendo mesmo, julgo, registado alguns dos seus inventos no organismo internacional que disso se ocupa. A mulher e o filho, que entretanto nascera em França e é agora um homem poderão confirmá-lo e, quem sabe se não poderão um dia vir a tirar daí algum proveito, caso algum fabricante neles se mostre interessado. Bom seria que o seu valor fosse reconhecido, ao menos à posteriori, já que a sorte não o bafejou em vida.Certa vez, estava eu e minha mulher em casa de uma amiga que se encontrava em Paris, preparando-se para fazer um doutoramento na Sorbonne e disse-lhe que me havia de vir buscar um amigo português que era taxista, para irmos dar um passeio pela cidade.
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Quando o Artur chegou, bem falante, muito aprumado e acompanhado do filho, um menino muito bonito de uns 12 anos, que era nessa altura o Arturinho, em vez de um qualquer rotundo e boçal motorista, a nossa amiga não pode conter o seu espanto: mas é um gentleman, este vosso amigo!Era assim o Artur. E de repente, uma doença degenerativa começou a tomar conta dele, apoucando-o nas suas capacidades motoras, e aos poços, embotando o seu discernimento e noção das realidades. O mais difícil para ele para ele e para os amigos e familiares passou a ser a comunicação verbal, pois lhe faltavam as palavras para se exprimir e o tom de voz se apagava quase tornando, por vezes inaudível – o que muito o exasperava e nós afligia.Foram muito dolorosos para ele e para a família e para os amigos os últimos anos da sua existência.
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Faleceu no dia 30 de Setembro de 2005 . A minha filha casava-se no dia do seu funeral e a própria família do Artur achou que eu não deixar de acompanhar a minha filha nesse dia. Não pude, assim, acompanha-lo à sua última morada. Mas isso também não era muito importante. A minha despedida do Artur já tinha acontecido sete ou oito anos antes quando ele - chegado de França para me visitar, em vez da exuberante e ruidosa manifestação que costumam constituir os reencontros de quem está longe e raramente se vê - chegou junto de mim, me abraçou forte, me beijou e, trémulo, sem uma única palavra, seguiu em frente até ao fundo do quintal, onde desabou num choro convulsivo e prolongado.Outras vezes ainda voltámos a encontrar-nos. Quer na minha casa, quer na casa de uma das suas irmãs, quer, uma vez, na sua casa nos arredores de Paris, mas a verdadeira despedida do Artur – do Artur que eu conheci, aconteceu naquele dia e naquele abraço.
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O que dele resta jaz agora no cemitério de Almada. A mulher e o filho continuam em Paris. Ela, aguardando o dia em possa reformar-se e poder, eventualmente regressar a Portugal. O filho, é cidadão francês, Portugal já pouco lhe deve dizer e muito provavelmente por lá ficará.Se é certo que uma pessoa só morre inteiramente quando se extingue na memória dos que cá ficam, entendi reduzir a escrito as recordações que conservo do meu amigo Artur. Assim, ele viverá, pelo menos enquanto este texto subsistir e haja alguém que tenha a curiosidade e a paciência de o ler. De qualquer forma é também um acto de justiça, pois nos muitos relatos que tenho lido sobre o Assalto ao quartel de Beja, nunca ninguém se lembrou de mencionar o nome do Artur Vaz.
Pois aqui fica o meu testemunho.
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5-12-2005

1.24.2006

A DONA EFIGÉNIA

A Dona Efigénia
Lembram-se certamente da D. Efigénia. Era uma senhora muito velhinha, muito temente a Deus, muito serena, muito bondosa, muito caritativa, muito boa de contas, muito sábia no equilíbrio do deve e haver das suas economias. Muito casta, sobretudo. Nunca casou, nunca pecou, nem em obras nem em palavras nem em pensamentos sequer. Todo o objectivo da sua vida era a o merecimento de um lugarzinho no céu. Quando, em odor de santidade, expirou o último suspiro, logo o departamento de relações públicas do Paraíso se preparou para lhe fazer a jubilosa recepção que tão meritório comportamento justificava.Lá estava o S. Pedro na plataforma de aterragem, cercado de anjinhos e querubins, debruçado a perscrutar o horizonte (é suposto, mas não provado que o Paraíso se situe num plano superior ao deste planeta que habitamos) quando um dos querubins, com a vista naturalmente mais apurada do que o multicentenário Pedro, gritou excitado: já ai vem, já vejo a Senhora Dona Efigénia emergindo de uma nuvem, lá em baixo, ena pá que mecha que ela traz. Quando o bom do S. Pedro, compreensivelmente mais lento de reacções, conseguiu finalmente lobrigar o vulto da virtuosa senhora, já ela estava quase, quase ?? beira da plataforma. A velocidade porém era tanta, tanta a força da virtude que a impulsionava, que o brioso porteiro do céu, exasperado, mas com a mesma presteza com que, por três vezes, negou o Mestre no Monte das Oliveiras, lhe gritou: Porra, D. Efigénia, por favor, faça qualquer coisa, diga um palavrão, diga merda ao menos, senão entra em órbita! Ora esta estória faz-me lembrar um certo cavalheiro, que também há uns anos (pelo menos há dez) anda congeminando a melhor forma de organizar a vidinha com o objectivo único e obcecante de conquistar um lugarzinho num certo palácio que há para os lados de Belém (até o nome tem conotações bíblicas, estão ver), para o qual se acha preferencialmente predestinado. Tal como a dona Efigénia, ele é poupadinho, ele equilibra muito bem o deve e haver dos proventos obtidos na recolha das presumíveis farrobas e figues que terá no seu quintal de Boliqueime, ele não responde a provocações dos seus adversários, ele nunca se engana nem nunca tem dúvidas e no entanto mantém um ar modesto como se fora o mais ignaro, o mais indeciso, dos seus concidadãos, ele não lê os jornais (certamente para não ser contaminado pela deletéria influência da informação que eles veiculam) ele não conhece bem a história de Portugal nem a literatura portuguesa, ele não conhece os Lusíadas, porque deve considerar coisa inútil e quiçá perniciosa, ele só muito tarde, quando isso deixou de ser perigoso e passou a ser uma actividade lucrativa, começou a interessar-se por política, ele passou a sua a sua juventude como menino muito bem comportado, estudando para obter um "canudinho" (os outros que se lixassem e que lutassem e sofressem para criar as condições que lhe permitissem a ele gozar, mais tarde, já em democracia, das benesses que o bendito canudo lhe viria a proporcionar).. enfim, como dizem os franceses,il est un bon garçon, il aime beaucoup sa mère ...Enfim tal como a D.Efigénia, ele é tão perfeito, tão virtuoso, tão sem pecado que, a menos que caia na tentação de proferir um qualquer palavrão, bem cabeludo, acaba por entrar em órbita, vendo passar ao lado a cadeira de Belém que tanto ambicionaEu, pela minha parte, vou-me pegar com todos os santinhos da minha devoção, a quem rezarei todos os dias, de manhã e na hora de deitar, para que o gajo solte cá para fora o palavrão redentor.Amen
Nov/2005