ESCRITOS OUTONAIS

2.25.2006

CANTiGA DE EsCÁRNiO E MALdIZER

Estes versos foram feitos para (mais)
um jantar anual com colegas da CP
Para assinalar 17º ano da minha reforma

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Qué mala suerte

Oh povo mais desgraçado!
Que triste é nosso fadário
Todos adoram Jesus
Mas só a nós cabe a cruz
Que levamos ao calvário

Se há guerra,. “toca a lutar!”,
Gritam os chefes, à uma,
Mas não são os generais
Nem outros tantos que tais
Que lutam, porra nenhuma!

Mandam apertar o cinto
Quando a crise se acentua
Mas nos cintos dos patrões,
Ministros e outros vilões.
O furo nunca recua

O manda-chuva actual
Tanta coisa prometeu
Antes de ir p’rò poleiro
E afinal só nos f….
Que grande pantomineiro!

Mas ò que sorte malvada
Depois de um mal, outro vem
E se é mau o de São Bento
Já aí vem tomar assento
Um seu clone, em Belém

Eles são Dupond & Dupont
Se um diz mata, outro diz esfola
Unidos pela mesquinhez,
Vão pôr o povo, de vez,
Na rua, a pedir esmola

P’ra tão sinistras figuras
Só espero que o povo, aflito
Perante tal ameaça
Dê um ar da sua graça
E faça aos dois um manguito

E se alguém não se lembrar
De como se faz o dito,
Faço questão de ensinar
É assim, reparem nisto:
Mão esquerda em braço direito,
Erguido, bem a preceito,:
E dizer, tomem lá disto!
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Restaurante “O POTE”, 24-2-2006

2.17.2006

A VELHA SENHORA


O relato que a seguir vos apresento é a versão, num português que a minha lamentável falta de humildade me leva a dizer razoavelmente correcto, ou pelo menos entendível, de uma história sem pés nem cabeça que um velhote chanfrado me contou. Era um fulano esquisito. De vez em quando aparecia no café que frequento, sentava-se à minha mesa, cravava-me uma bica, entrava a desfiar uma conversa sem nexo e desaparecia. No dia em que me contou esta história,
pareceu-me mais chanfrado que nunca. Já se passaram dois anos e nunca mais se deixou ver.

A Velha Senhora, a quem coração secou

A sua infância foi doce e serena, a adolescência inquieta e ansiosa, a juventude louca e excitante, os primeiros tempos de casada apaixonados e ternos, os seguintes, melancólicos e infindáveis. Nascida no seio de uma família tradicional de abastados grossistas de secos e molhados – espécie de aristocratas entre os comerciantes da cidade – pode frequentar um colégio particular desde o jardim escola até ao fim do curso liceal. Aprendeu francês e piano com uma velha professora da nacionalidade que lhe ministrava conhecimentos razoáveis em ambas as matérias, aprendeu a bordar e fazer renda – habilidades que nenhuma menina da época se podia dar ao luxo de dispensar, e estava pronta para entrar no mercado matrimonial, relevesse-me a crueza da expressão..
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Aos 18 anos foi apresentada à sociedade num esplendoroso baile de debutantes em que participou a fina flor da juventude radiosa da burguesia local e a partir daí foi um desfilar de festas, tardes dançantes, idas ao animatógrafo divertir-se com as loucas peripécias dos filmes de Charlot, Pamplinas ou Mack Sennet, corsos de Carnaval, temporadas de praia na figueira da foz, namoricos de verão, até que conheceu aquele com que viria a casar, um garboso tenente de cavalaria, bonito como um deus, mas pobre como Job. O primeiro predicado estava à vista e foi do seu instantâneo conhecimento; o segundo só o veio a saber, quando já não tinha importância nenhuma. Foi num baile de máscaras que se conheceram. . Dançaram várias vezes seguidas e se ela ao cabo de uns momentos já se sentia atraída por ele, essa atracção transformou-se em paixão logo que ele tirou a mascarilha para a acompanhar ao bufete.
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Casaram pouco depois, apesar da oposição dos pais que sonhavam para a filha um homem negócios, com teres e haveres, à altura da sua fortuna e nível social. Receando que o rapaz se viesse a revelar um caça-dotes, uma coisa lhe exigiram no entanto, que o contrato nupcial contemplasse apenas a partilha de bens adquiridos após o casamento.
E assim aconteceu, com grande desgosto da moça que preferia ter dado ao noivo uma prova ilimitada de confiança. Foi um casamento de pompa e circunstância, seguido de lua de mel em Paris e instalação do casal numa espécie de palacete oitocentista no bairro da Lapa, uma das várias casas da família espalhadas pela cidade
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Claro que, apesar do fraco vencimento do tenente, o dinheiro nunca faltava em casa do casal uma vez que o pai, às claras mas mais comedido e mãe às escondidas mas mais generosos, como fazem todas as mães, não deixavam que à filhinha faltasse nada daquilo a que estava acostumada, quer em bens materiais quer em diversão. Foram, pois, de grande felicidade e divertimentos sem conta aqueles primeiros três ou quatro anos de casamento. Depois, depois começaram a vir os filhos. O tenente, que era esquentado, fez-lhe quatro - três rapazes e uma rapariga - ao longo dos seis anos seguintes.
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Maria da Glória (é este o nome da moça e peço perdão pela indelicadeza de tão tardiamente o mencionar) recebeu cada um deles como se uma dádiva do céu se tratasse, um presente que os deuses lhe tivessem enviado. A todos tratou com maior desvelo como se cada um fosse o primeiro e a eles dedicou toda a atenção e tanta que o nosso tenente (não vale a pena dizer-lhe o nome porque vai em breve desaparecer da história) sentindo-se um tanto excluído do círculo de afectos maternais passou a pular a cerca (expressão que reputo pouco elegante, mas que emprego à falta de melhor) e com a ligeireza com que saltava para cima do seu fogoso cavalo, passou a saltar de cama em cama de quanta mulher bonita estivesse disposta a ceder ao seu encanto.
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Quando Maria da Glória se apercebeu de que o entusiasmo do marido não era o mesmo, melhor dizendo, quando ela, finalmente, com os garotos já grandinhos e a precisarem de menos exclusivos cuidados, se ia dedicar mais à vida conjugal, o casamento já era. E foi então que o intenso, o cego amor maternal que devotara aos filhos (vá lá perceber-se que estranhos e contraditórios fenómenos se passam na mente humana) transformou-se num ressentimento que com o decorrer dos anos se foi tornando numa espécie de ódio…
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Tinha à volta de 45 anos o tenente quando lhe foi diagnosticada uma gravíssima e adiantada tuberculose pulmonar, doença praticamente incurável naquele tempo e menos de uma ano depois, a tísica o levou desta para melhor, como paradoxalmente se diz de quem dá o pio, ata as botas ou, mais conforme à nossa civilização cristã, entrega a alma ao criador. Por essa altura já os filhos tinham idades que oscilavam entre os 13 e os 18 anos, estudavam todos em colégios internos e o contacto com os pais era muito reduzido, limitando-se quase exclusivamente ao tempo de duração das férias..
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Não tardou muito que, primeiro pai e pouco depois a mãe de Maria da Glória, seguissem o destino que todos temos marcado mas que naqueles tempo em que o nível médio de duração de vida era bastante mais reduzido, fazia com que as pessoas defuntassem mais cedo do que agora acontece.
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Maria da Gloria tomou conta dos negócios do pai, aumentou mais a sua riqueza, adquiriu mais um poucos de imóveis e a fortuna ia crescendo na razão directa em que alma se lhe secava.
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E o tempo, voraz, foi comendo anos, os filhos formaram-se, e arranjaram bons empregos. Um fez-se diplomata, outro engenheiro numa empresa metalo-mecânica, outro cirurgião de sucesso, e a rapariga estilista de renome. E todos casaram e cada um deles teve dois ou três filhos e esses filhos casaram e dos novos casais nasceram novos filhos.
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Várias vezes os filhos reclamaram da mãe que fizesse partilhas, mas ela, cada dia mais amarga, mais empedernida, custeava-lhes as despesas, mas argumentava que ainda estava viva e o pai não lhes tinha deixado nada pois nada tinha sido adquirido durante tempo de validade do casamento, não tendo nada, portanto que fazer partilhas.
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As sua relações azedaram-se cada vez mais, os anos passaram, os filhos que sempre pouco a visitavam, foram espaçando as visitas até praticamente ninguém a vinha visitar, nem filhos nem nora, nem genro, nem netos. Acabou por se retirar da direcção dos negócios do pai, deixando tudo entregue a um gerente de confiança que também acabou por falecer, sucedendo-lhe o filho e era ele e um jovem advogado de um conhecido escritório com quem a família sempre trabalhara que assiduamente a vinham visitar para lhe prestar contas em receber instruções.
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Por fim, já muito avançada em idade começou a sentir necessidade de laços que tinha perdido, mas era demasiado tarde. Passava os dias esperando que algum aparecesse, chegou a pedir-lho expressamente, mas nunca eles tinham tempo ou disposição para a visitar. Desistiu definitivamente deles e voltou a ficar de novo mais amarga, mais ressabiada.
Estava agora com 87 anos, chamou o advogado, o encarregado da loja com quem teve por varias vezes largos conciliábulos, passou horas e horas a rasgar papeis, até que pareceu desinteressar-se de tudo.
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Chegou um dia em que, contra os seus hábitos, não passou tempo nenhum a ler depois do jantar e mal acabado este, recolheu-se ao seu quarto, para se deitar. À criada que a acompanhou para lhe ajeitar a roupa da cama e correr as cortinas como fazia todas as noites, pareceu-lhe ouvir dizer (isso contou ela mais tarde): já chega, chegou a hora. Na manhã seguinte, quando entrou no quarto para lhe levar um copo de leite morno como era de uso, encontrou-a morta, já fria, mas muito composta, expressão serena, de deitada de costas e com as mãos cruzadas no peito, como ficam geralmente os defuntos depois de convenientemente preparados por um funcionário de agência funerária ou por algum membro da família.
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Posta a notícia a circular e depois do arranjo do corpo e da colocação na urna funerária, desta vez sim por um funcionário especializado, vieram os amigos, vieram os filhos e as caras metades, vieram todos os que durante anos nunca arranjaram tempo para a visitar. Durante o velório quando alguns já cabeceavam nas cadeiras encostada em filas junto das paredes do salão transformado em câmara mortuária, com dois círios enormes arder num pequeno altar improvisado e dúzias de ramos e palmas amontoados em torno da urna, os filhos, aproximaram-se do caixão, sobre ele se debruçaram e, como era costume na época, começaram a prantear a defunta, com os lenços a limpar os olhos de lágrimas que não tinham, como todos sabemos ser representação hipocrita muito frequente. E eis senão quando, pasmem, senhores, a defunta se ergue do seu leito de morte, se senta no caixão de olhos arregalados, grita com uma voz de fazer gelar o sangue: Queriam mama, hein? Tomem, tomem e tomem!, Sendo este tomem, três vezes repetidos, acompanhado de três realíssimos manguitos, de fazer inveja ao do Zé Povinho criado por Bordalo Pinheiro, com um vigor tal, que já seria de espantar numa octogenária viva, quanto mais numa defunta com certidão de óbito passada e autenticada com selo branco e tudo.
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Isto contam os familiares que, estavam debruçados sobre o caixão e que aliás fugiram espavoridos só voltando no dia seguinte, quando se asseguraram que o caixão estava fechado e lacrado, pronto para seguir, na carruagem fúnebre, puxada por uma vistosa parelha de cavalos pretos, ajaezados com longos atafais negros e bordaduras de prata, para o antigo jazigo de família no Alto de São João. Todos os outros circunstantes, aliás na sua maioria a passar pelas brasas, como já tive ocasião de referir, negam ter visto ou ouvido qualquer coisa, apenas se espantaram com a súbita e inexplicável debandada dos filhos e netos da falecida. E mais, contam essas pessoas que, tendo-se aproximado do caixão, após a estranha fuga dos familiares, não viram nada que justificasse tanto alarido. A morta continuava mortinha da silva, serena, composta, só que, afirmam alguns, dava a impressão que a boca tinha uns trejeitos que se assemelhavam a um riso trocista. Seria?
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Após o enterro, aí sim, a família, já sem a incómoda presença de estranhos, voltou à casa da defunta para vasculhar tudo de alto a baixo, esventrar gavetas, desfazer camas, revirar colchões na mira de encontrar dinheiro, valores, títulos, algo de valioso que a senhora não podia deixar de possuir. Baldado esforço. Nada que lhes pudesse interessar foi encontrado. Nem sequer a mais pequena moeda esquecida no fundo de uma gaveta.
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Dois ou três dias volvidos receberam uma notificação da firma de advogados Martinez &Martinez, com sede na Calçada dos Cavaleiros, para se proceder à leitura das disposições testamentárias da falecida Senhora Dona Maria da Glória Gonçalves de Albuquerque. E estando a família toda reunida no vasto salão da firma, um dos advogados que não era outro senão o que nos últimos tempos vinha frequentado a casa da velha senhora, lhe leu o longo testamento em que aos filhos deixava apenas o mínimo que, por lei lhes era devido e que era muito pouco, pois que da maioria dos títulos e do dinheiro dos vários prédios e propriedades que entretanto tinham sido todos vendidos, se constituíra a Fundação Dona Maria da Glória, destinada a acolher crianças órfãs e desvalidas, sendo que a gestão de fundos ficaria a cargo de Escritório de advogados Martinez&Martinez, que a sede administrativa da fundação funcionaría na casa da falecida e que o Director seria o Dr. Carlos da Silva Meneses - o gestor da firma de D. Maria da Glória de que atrás falei, e que também assiduamente visitara a senhora nos últimos tempos.
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Esta á a história que o velhote chanfrado me contou e que vos vendo pelo preço que a comprei, com escrupuloso rigor e perfeita isenção, tendo-me limitado apenas a encorpá-la numa linguagem que pretendi literária, para que assim lograsse pode obter o favor de um pouco mais de atenção da vossa parte. Só espero que não haja quem, com a falta de humor de quem ouve uma anedota da qual espera o contador uma estrondosa gargalhada, tenha o desplante de perguntar: e depois o que é aconteceu?
A história termina aqui e pronto
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P.S. Só mais um pormenor que o velho me contou e que, imperdoavelmente, por pouco não me esquecia:
Durante anos e anos, por detrás do imponente cadeirão do Senhor Director da Fundação, esteve pendurado um quadro que o dito director, em homenagem à generosa filantropa, encomendara a um famoso pintor da época, no qual que se via, em cores deslumbrantes, uma idosa senhora soerguida de um lindo caixão e que, com o ar mais feliz e menos adequado ao seu estado presumidamente cadaveroso, exibia um manguito de todo o tamanho. Só foi retirado, desconhecendo-se, infelizmente, que destino terá levado, devido à desconfortável impressão por parte de cada um dos visitantes que entrava na sala, de que o manguito em questão lhe era especialmente dedicado.

2.12.2006

O PADRE HONORATO


Agora, que a seara está madura e a hora da ceifa presumidamente se avizinha, além do apego que ultimamente me tomou por este melancólico desfiar de recordações, gosto de me entreter a vasculhar gavetas, compulsar velhos papeis e amarelecidas fotos… rasgar a maior parte, catalogar alguns, desenterrar memórias e avivar afectos esquecidos em alguns outros.
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Tenho agora entre mãos seis páginas de papel de 35 linhas amontoadas de meio sumidas garatujas. Reconheço a minha desajeitada caligrafia de adolescente. Trata-se de uma prova escrita de filosofia datado de 25 de Outubro do longínquo ano de 1946. Como o tempo passa, meu deus!
A vermelho, uma anotação do respectivo professor: Gostei muito da exposição. Clara, simples e até por vezes elegante. Cultiva a tua inteligência e põe-a inteira ao serviço do Mestre.
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O Padre Honorato! Consigo vê-lo a esta distância. Com que nitidez ele me surge de um qualquer ficheiro que a memória manteve arquivada ao longo de todos estes anos. Aí está ele: rosto meio amulatado, carapinha bem aparada, rentinha ao crânio, modos vivos, olhos irrequietos por detrás de uns óculos de forte graduação que os ampliam. Desprende-se dele, a um tempo, a impressão de uma inteligência altiva e uma bondade modesta e serena. Reveste-o a incontornável batina de merino lustroso que o distinguia dos outros padres/professores que usavam batinas de fazenda, sem brilho portanto. Só o volumoso padre Nobre Infante, o professor de Matemática (a quem, em surdina, eu chamava sempre padre Nobre Infame) usava uma batina semelhante. Mas a esse prefiro esquecê-lo.
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Nunca vi ninguém transmitir o que sabia com tanto empenho, tanto entusiasmo, tanta persuasão. Todo ele se transformava no endosso do prazer que ele próprio conseguia descobrir na beleza de um soneto, como na lógica fria de um silogismo. Estamos a ver, hein, estamos a ver isto? E o brilho dos olhos muito abertos e a vivacidade expressiva dos gestos, que cada um dos alunos interpretava como sendo-lhes pessoalmente dirigidos, só se apaziguavam, só diminuíam de intensidade quando, nos olhos de cada um, visse a certeza de que o aluno estava, de facto, a ver aquilo que, pedagogicamente, ele queria que fosse visto e assimilado
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Sabendo que eu gostava muito de ler, deixava-me escolher na sua estante os livros a que o meu apetite de leitor compulsivo me induzia e que ele achasse adequado à minha idade e ao meu tipo de formação. Certa vez foi ele próprio que me aconselhou uma obra acabadinha de ser publicada, As Mais belas Líricas Portuguesas, da Portugália Editora, tendo apenas o cuidado, pasme-se, de assinalar cinco ou seis poemas com a indicação a lápis, não ler. Quanta pureza de alma a deste homem!
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Escusado será dizer que foram esses os primeiros que corri a ler, traindo miseravelmente a sua confiança. Este meu procedimento faz-me lembrar uma história que se conta de São Tomás de Aquino, quando jovem frade, muito antes, pois, de se tornar o grande pensador que viria a ser. Era o frei Tomás um moço gordo e bonacheirão, tipo peidagadocha, como agora se diria, confiado, ingénuo e fácil de enganar pelos outros frades que a toda a hora lhe pregavam partidas. Pois certo dia, esta ele debruçado sobre os seus livros de estudo, quando um colega o chama: Tomás, corre, anda depressa para veres um boi a voar. Veio o bom do Tomás, não viu boi nenhum no céu que perscrutou durante alguns instantes e ouviu em contrapartida a caçoada dos colegas: Ó Tomás, pois acreditaste mesmo que um boi podia voar? E o Tomás, com a proverbial placidez dos gordos, respondeu: Sim, julguei que era mais difícil ver um frade a mentir do que um boi a voar. Na história dos poemas desaconselhados e lidos apesar disso, eu fui o irresponsável frade que abusou da confiança de um homem bom e confiado, sendo ele, naturalmente, o Tomás da história dos frades, só que bem mais actual e de aspecto exterior bem menos volumoso...
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Aliás não foi só em relação aos tais poemas que eu terei defraudado as suas esperançosas expectativas. Poucos meses depois das suas palavras de incentivo na tal prova escrita de filosofia, eu abandonava o seminário. E, pela vida fora, tive ocasião de constatar que a minha inteligência não era tanta como a que ele generosamente me atribuiu; não cuidei de cultivar a que tinha, como ele me exortou; e o Mestre a que ele se referia, aos poucos, deixou de ter qualquer significado para mim.
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Também ele, pouco depois, reconhecidas as suas qualidades pedagógicas pelas estruturas da igreja, trocou o seu magistério no seminário pela Universidade, onde passou a leccionar, julgo que na Faculdade de Letras que era a mais adequada à sua formação e ouvi falar dele, em certos meios cultos, como um professor de elevada craveira profissional.
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Diziam os antigos que os deuses levavam cedo para junto de si aqueles que mais amavam. Assim se compreende que tenha morrido tão novo o padre Honorato, a quem nunca mais voltei a ver desde que, em Fevereiro de 1947, deixei o Seminário de Almada.
Um dia encontrei num alfarrabista um livro com a sua biografia. Não tinha dinheiro para o adquirir e lá o deixei - o que muito lamentei mais tarde.
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Não há rapaz do meu tempo que não se lembre de uma rubrica que durante muitos anos figurava em cada número das Selecções da Reader’s Digest, intitulada “Meu tipo inesquecível”, onde sempre alguém recordava uma figura humana que lhe tivesse ficado na memória ou no coração por determinadas características físicas ou morais. Também eu encontrei na vida algumas figuras inesquecíveis. O Padre Honorato foi uma delas.
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Natural de Óbidos – Sobral da Lagoa - existe hoje ali hoje uma rua com o seu nome: Padre José Honorato Gomes Rosa. Quanto a mim, tantos anos volvidos (e já o tenho confessado várias vezes em conversas com amigos) de entre algumas picardias que cometi ao longo da vida, uma das que mais me arrependo é não ter correspondido à prova de confiança com que aquele homem bom fez o favor de me distinguir, lendo os poemas que ele me pedia que não lesse. Julgo, no entanto, que ele sempre soube que eu o iria fazer e lá onde está, de certo já me perdoou.

2.06.2006

PALAVRA DE ESCUTA

Nasceram e cresceram no mesmo bairro, juntos frequentaram a primária, juntos foram escuteiros no mesmo grupo. Um chama-se Pedro e o outro Ricardo. Muita gente não saberá mas há em Portugal duas associações de escuteiros - A Associação de Escuteiros de Portugal (AEP) e o Corpo Nacional de Escutas (CNE) - A primeira, tem reduzida implantação e é laica, enquanto a segunda conta muitos milhares de membros e é de inspiração católica. Os fins que se propõem são, no entanto, os mesmos: proporcionar aos jovens uma vida sadia, em contacto com a natureza, em espírito de equipa, de fraternidade, de entreajuda e com actividades lúdicas que os ajudem a atravessar a difícil fase da adolescência e a formar o carácter.

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Ora, os jovens de que falo pertenciam a um grupo de escuteiros integrado no Corpo Nacional de Escutas, sendo “escutas”, portanto, o vocábulo que os designa e que passarei a utilizar.

Um dos aspectos mais notáveis da formação escutista é o respeito pela palavra dada. Quando um escuta diz a outro, ou ao Chefe de grupo, “palavra de escuta”, há que acreditar. Assim acontecia entre o Pedro e o Ricardo Cada um deles podia inventar as suas farroncas para impressionar o amigo ou para esconder qualquer disparate que houvesse praticado, mas se o outro lhe pedia que confirmasse a veracidade do que dizia através da palavra de escuta, aí logo o embuste desmoronava e a verdade era imediatamente resposta. Quem, como eu, foi escuteiro (escuta, neste caso) sabe bem que é assim que as coisas se passam.

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Curioso era o facto de o Ricardo, que era mais mal formado, mais doidivanas, mais dado a invencionices do que o Pedro – rapaz, sensato, recto, certinho de procedimentos – revelar, mais do que este ou de qualquer outro membro do grupo um apego quase fanático ao valor da “palavra de escuta”. Ele jamais vacilava, por muito que isso o prejudicasse, em revelar a verdade sempre que alguém, sobretudo o Pedro lhe exigia a confirmação do que dizia através da sua “palavra de escuta”. Para ele era uma questão de honra...

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Feita a instrução primária, o Pedro escolheu a área industrial e foi para a escola AfonsoDomingues enquanto Ricardo optou pela curso comercial, ingressando na escola Veiga Beirão. Acabados os respectivos cursos, o primeiro empregou-se numa oficina de reparação de automóveis e o segundo num escritório de uma firma de importações. Entretanto casaram, curiosamente teve cada um dois filhos, passaram ver-se mais raramente até que durante anos se perderam de vista.

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O Pedro muito rapidamente passou a chefe da oficina, ganhou reputação como um barra na sua profissão, dez anos depois montou o seu próprio estabelecimento e, cinco anos após, inaugurou uma Oficina de reparação de carros e estação de serviço do melhor apetrechado que há na cidade, com cerca de duas dezenas de empregados. Tem agora uma vida estável, próspera e tranquila.

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Ricardo, pelo contrário, sempre estoira-vergas e algo conflituoso, pouco tempo parou no emprego; arranjou outro dentro do mesmo ramo, de onde também foi despedido, por má prestação de contas; trabalhou como delegado de propaganda médica mas também não aqueceu o lugar meteu-se nos copos, enredou-se em histórias de mulheres, enveredou por caminhos sinuosos com pequenos golpes, até que a mulher se fartou e se foi embora com os dois filhos.

Está agora desempregado há meses, vivendo em casa dos pais. Desesperado por não encontrar trabalho que lhe agradasse lembrou-se procurar o amigo dos seus tempos de escuteiro e de escola.

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Pedro, que tinha conhecimento através de outros antigos companheiros, das “proezas” e algumas malfeitoras do amigo mas, generoso e, como todos os seres bem formados defensor da ideia de que ninguém é irrecuperável e a um amigo não se deve negar uma oportunidade de o provar, resolveu ajudá-lo.

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Depois de lhe passar um sermão e missa cantada pelos erros cometidos e advertindo-o que lhe daria uma única chance, e depois de Ricardo lhe ter jurado que ficasse descansado, que bem sabia quanto os erros lhe tinham custado caro e de forma alguma trairia a confiança do amigo, resolveu admiti-lo par o lugar de ajudante de guarda-livros – lugar que por sorte vagara dias antes. E aí estavam eles, juntos de novo, trinta anos depois. Mais dois se passaram, sem problemas, e sem que o procedimento de Ricardo desse azo a qualquer reparo menos abonatório.

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Certo dia, próximo do fim de semana, um cliente, por quem Pedro tinha grande consideração, apresentou-se com um bruto jaguar, gama alta, de um vermelho reluzente. Erra um carro do ano, mas notando-lhe uns pequenos ruídos e não precisando dele durante os três ou quatro dias que iria passar em Paris, numa viagem de negócios aproveitava para deixar o carro que viria buscar nos primeiros dias da semana seguinte, devidamente afinadinho. Não era problema de monta e quando na Sexta-feira à tarde, a oficina encerrou, todos se foram embora e Pedro e Ricardo se desejaram à saída um recíproco bom-fim-de-semana, o carro lá ficou, pronto, esperando apenas o regresso do dono.

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Quando, na segunda-feira. Seguinte Pedro chegou à oficina foi encontrar todo o pessoal em alvoroço, especialmente o encarregado: - Patrão, patrão, foi você que levou jaguar ?- Que pergunta essa ?- O carro desapareceu, pensei que o patrão…- Não levei coisa nenhuma, que brincadeira é essa. Que é do Sr. Ricardo? - Ainda não chegou, patrão.

- Assim que chegar, vão ambos imediatamente ter comigo ao escritório.

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Pouco depois, pálido, coxeando ligeiramente mas descontraído, a assobiar, chegou o Ricardo. Posto ao corrente do sucedido pelo encarregado, subiram juntos para o escritório onde Pedro os aguardava, deitando fogo pelas ventas, como é uso dizer-se.

- Ouve lá, saíste com o Jaguar?.

- Eu? Que ideia!, retorquiu Ricardo com o ar mais admirado deste mundo.

- Meus amigos, além de mim, só vocês os dois têm chave da oficina, não há sinais de arrombamento, eu não fui, logo um de vocês levou o carro e eu quero tudo esclarecido imediatamente.

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Entretanto tocou o telefone. Era alguém que tinha descoberto o carro meio desfeito numa ravina lá para os lados da Malveira da Serra. No porta-luvas estava a nota da reparação, datada da véspera, onde constava o nome da Firma e o respectivo número de telefone, tendo a pessoa que o descobriu prefrido telefonar para a Oficina em vez de avisar a polícia

Pedro empalideceu com a notícia, mas como pessoa calma e ponderada que sempre fora, limitou-se a contar o que ouvira e dizer serenamente: - Meus caros amigos, um de vocês está metido num grande sarilho. Trata-se de um carro caríssimo, um de vocês armou-se em janota, saiu com ele e vai ter de o pagar até ao último tostão. Comecem a falar antes que chame a polícia. - Eu não fui, patrão, já trabalho aqui há alguns anos e o senhor sabe que eu não faria uma coisa dessas. - Eu muito menos, disse tranquilo o Ricardo, fui na sexta-feira para o Algarve com uma garina e venho directamente de lá. O outro voltou a a negar, Ricardo jurou por deus, pela saúde dos filhos, pela saúde da mãezinha que ele tanto adorava, como o Pedro sabia, e estava-se naquele impasse enervante.

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O dono do jaguar podia vir buscar o carro a qualquer hora e Pedro queria ter a certeza de que, com a comunicação do problema, pudesse apresentar de imediato e respectiva solução que, não podia ser outra senão a identificação do culpado e o seu compromisso de reposição do prejuízo, ainda que, de momento fosse ele a responsabilizar-se, como lhe competia, pela disponibilização da verba correspondente. E os dois únicos possíveis autores ali estavam, à sua frente, mudos e quedos, sem que nenhum deles assumisse a culpa da malfeitoria.

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Subitamente Pedro tomado de súbita inspiração, levanta-se num ímpeto, com uma mão forte agarra Ricardo pelo colarinho, encosta-o à parede, e com a outra mão segura-lhe firmemente o queixo, de forma a poder olhá-lo nos olhos: Ricardo, dá-me a tua palavra de escuta que não foste tu que saíste com o carro. Aí Ricardo mudou de cor, primeiro vermelho que nem pimentão e de seguida branco como a cal da parede, as pernas vacilaram-lhe e caiu de joelhos aos pés do Pedro murmurando entre dentes: a palavra de escuta, não. A palavra de escuta não! E ali ficou, longamente, por terra, pronunciando frases quase ininteligíveis, entre as quais se destacavam palavras e expressões como piso molhado, só por milagre, garinas, falta de sorte, cabrão do álcool, falta de juízo, puta da vida, no meio de um choro convulsivo e interminável...

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Ricardo tinha perdido muita coisa na vida. Estranhamente, porém, nunca perdeu o respeito pelo valor da palavra de escuta.

2.01.2006

FUTEBÓIS E CLUBITES


Desde garoto que sou sportinguista. Era esse o clube favorito de meu irmão José – o irmão/herói dos meus verdes anos – e, obviamente não, podia ser senão essa a minha opção em matéria de clubes. No entanto, minha relação futebolística fica-se por aí, por uma espécie de engajamento afectivo, tribal, à estirpe leonina de tal modalidade. Digo leonina, porque detesto a designação de “lagartos” que os adversários nos atribuem e mesmo alguns adeptos, estranhamente, aceitam sem grandes reservas.

Costuma-se dizer que um homem pode mudar de partido, de religião, de mulher, mas jamais de clube e estou inclinado a pensar que é muito verdadeiro este aforismo Na verdade, exceptuando os primeiros anos da infância, em que se é do clube que ganha nesse dia, não conheço ninguém que, no decorrer da sua vida, tenha alterado as suas preferências clubistas, ganhe ou perca o clube da sua afeição. Pode quando muito, por ter mudado de residência ou por influência de um familiar ou amigo, acrescentar à lista das suas afeições um segundo clube, sem nunca renegar o primeiro.

Devo confessar que, fora dessa ligação afectiva ao mundo do futebol através do Sporting, nunca tive o mínimo jeito para a prática de tal desporto. Eu bem tentava, mas para além de correr que nem um desalmado, e nisso ninguém me batia, a baliza nunca estava no local para onde eu chutava e ainda por cima, na ânsia de a encontrar, tinha a mania de não passar de me agarrar à bola e não a passar a ninguém, para grande irritação dos meus desesperados companheiros de equipa e sarrafada que fervia nas canelas dos adversários. Isso nos jogos entre escuteiros no campo de futebol da Quinta do Cabeço – o que quer dizer do Seminário dos Olivais, que por sinal ficava em Moscavide. Aí, bem ou mal, eu jogava sempre que queria.

O pior era com a malta da minha rua. Conhecedor das minhas desastradas performances no domínio da chincha, o Zé-Carapau, o mais mau lá do sítio e ainda por cima o único que tinha uma bola de catechu, adquirida com o dinheiro que fanava da gaveta da mãe, a volumosa, a imensa Silvina Peixeira, raramente me escolhia para os desafios que organizava em plena rua e quando o fazia era sempre e só para alinhar como guarda-redes (keeper, assim se dizia então).

Aí, ao menos, não havia perigo de perder a baliza. O problema, neste caso, era não lhe avaliar bem as dimensões, tanto mais que me faltava a ajuda dos benditos postes salvadores, aqui substituidos por um calhau de cada lado, em pleno eixo da estrada, cuja distância relativa dependia, aliás, dos avinagrados humores do tal Zé-Carapau . Quando consentia um golo – o que (ai de mim!) era mais que frequente – apesar dos meu heróicos mergulhos, quase sempre para o lado oposto à direcção da bola, o Zé-Carapau, que tinha maus fígados e mau perder, sem contemplação alguma pelos meus joelhos esfolados nos desastrados mergulhos, ainda me ameaçava de porrada e não poucas vezes tive de recorrer à minha inegável ligeireza de gâmbias para chegar são e salvo a minha casa, logo na rua seguinte, ao virar da esquina.

Mais tarde, na juventude ia muitas vezes assistir a jogos do campeonato e a alguns internacionais mas só àqueles em que o Sporting intervinha. Normalmente ia como pendura na mota do meu amigo Nelson, sportinguista ferrenho, que chegou mesmo a praticar futebol no Clube, mas apesar de muito habilidoso do que eu, nunca fez grande coisa, mais por falta de força de vontade, julgo, de por falta de mestria.

Depois que casei, não tanto por esse facto, mas porque a as minhas preocupações passaram a orientarem-se mais para a política e para cumprimento do meu grande e único desígnio que era ver acabado o sufocante regime fascista, nunca mais voltei a entrar num campo de futebol. No entanto a minha simpatia pelo Sporting passiva e distante, é certo, nunca me abandonou.

Aqui há anos, durante o longo jejum do Sporting como vencedor de campeonatos, estava num café próximo da minha residência, aqui em Almada, lendo tranquilamente, como é meu hábito. Um grupo de pessoas numa mesa próximo da minha discutia acaloradamente os jogos e os resultados da última jornada do campeonato. Um dos intervenientes apercebendo-se do meu mutismo e indiferença pelos magnos problemas que tanto os empolgava, interpela-me:
- Então e você? Não diz nada?. Qual é o seu Clube?
- Bom, não ligo muito a isso, mas em garoto era do Sporting e ainda hoje me entristeço quando o Sporting perde.
Aí o indivíduo teve uma saída genial:
- Ò homem, nesse caso você ainda se arrisca a morrer de melancolia.
Foi uma gargalhada geral e a minha não foi a menos ruidosa. Foi uma graça muito oportuna, de facto, e o humor não é coisa que se desperdice.

Nos últimos anos voltei a prestar um pouco mais de atenção ao futebol, mas são sempre, e só, os jogos do Sporting e os da selecção que despertam o meu entusiasmo. E porquê este súbito e renovado apego? Ora, porque o meu neto, de dezasseis anos é um entusiástico adepto deste clube. A história volta assim ao princípio. Primeiro o irmão mais velho e agora o neto mais novo (e único). Tenho porém o cuidado de o avisar: Olha, João é bom que tu vibres com o desporto (como praticante ele está mais virado para o bodyboard) e com as proezas do clube de que gostas, mas não dês importância demasiada a essa estória.do futebol. Há muito obscuros interesses, (que não os nossos, obviamente) à volta de toda essa engrenagem,
Felizmente ele sabe isso. Fico bem mais descansado.


A razão porque me lembrei de falar hoje de futebol
foi um artigo de José Manuel Barroso, no DN de 31-1-2006
intitulado “Meu querido Futebol.”
Fala das manigâncias e trapaças
que estão por detrás da orgânica dos clubes
e que explica a ascensão e domínio dos clubes do norte,
a partir de determinada altura.
Vale a pena ler, apesar de geralmente
não apreciar muito os escritos deste jornalista.