1.27.2006

HISTÓRIA DE UM LIVRO

A propósito de Ilse Losa, recentemente falecida, ocorreu-me um episódio curioso ocorrido há muitos anos com uma das suas obras, "Rio sem Ponte".
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Trabalhando na Baixa, durante muitos anos o meu passatempo predilecto à hora do almoço (para além de, como já referi noutra crónica, visitar de parceria com o meu Amigo Artur Vaz, as melhores pastelarias da zona e, quais petits Gavrocheses fora de tempo, esborrachar o nariz e os lábios contra os vidros das respectivas montras para apreciar o que os ricos comem e irritar os ditos ricos com a zombaria das nossas caretas e motetes) era percorrer os vários alfarrabistas que circundam a zona do Chiado, à cata de um livrito em segunda mão, que o meu parco vencimento ou distracção aquando da sua publicação, não me tivessem permitido adquirir em tempo oportuno. Assim fui enriquecendo a minha biblioteca. E tanto, que hoje não sei o que fazer com tantos livros. Ainda acabo por morrer afogado neles.
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Lembro-me que o meu sogro - homem bondoso como poucos, mas algo simplório - abria a boca de admiração sempre que contemplava a minha biblioteca (e nessa altura ela era metade do que é hoje) e dizia com ar muito embevecido: Eh rapazes, com o dinheiro que aqui está empatado comprava-se um belo olival! Claro que o bom do ti João não lhe passava pela cabeça que o meu olival estivesse ali, naquelas estantes e nas páginas poeirentas dos volumes nelas alinhados...
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Mas voltando ao romance da Ilse Losa:
Um dia, espreitando as prateleiras de um alfarrabista que havia (e há apesar de se terem passado mais de quarenta anos) na Calçada do Duque, descubro, entre a enorme fila de outros, um livro que, mesmo de longe, me chamou a atenção pelo desenho da etiqueta dourada da lombada e pelo verde granitado da mesma, que me pareceu algo familiar. Aproximo-me, vejo o título e o autor, vi que era o "Rio sem Ponte" e, mesmo sem o abrir, soube que era meu. Abri-o, e lá estavam , sem tirar nem pôr, os gatafunhos da minha desajeitada rubrica.
Não fazia a mínima ideia de como fora ali parar um livro que eu juraria permanecer arrumadinho e estático numa das minhas estantes, mas ali estava ele - prova muda e concludente de que nada se deve tomar como adquirido e que juras são sempre inúteis e às vezes perigosas.
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Brinquei com o alfarrabista, que me conhecia muito bem, perguntando por quanto me vendia aquele livro que era meu, conforme lhe provei. O homem, coitado, que tinha pago a alguém para o adquirir, muito provavelmente por uns míseros escudos, acabou por mo vender com o lucro que achou razoável - que ele não estava ali para perder dinheiro.
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Á noite, em casa contei a história do livro a minha mulher que me ajudou a resolver o enigma. Tinha sido ela que o emprestara a uma jovem vizinha, havia tanto tempo que até já se esquecera do facto. A moça provavelmete tê-lo-á perdido mas, talvez por vergonha, "nunca deu cavaco" (eu disse Cavaco? lagarto, lagarto, lagarto!) e nós, também por vergonha de que ela sentisse vergonha, também não nos demos por achados.
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O certo é que o livro que comprei duas vezes, cá está, junto aos seus irmãos de raça, muito arrumadinho, na sua encadernação de verde granitado, podendo ler-se na lombada, entre duas vinhetas douradas, o título "Rio sem Ponte" e o nome do autor "Ilse Losa".