1.27.2006

PROMESSAS GORDAS E AMBIÇOES MAGRAS

Certa tarde de um fim de verão de 1958, encontrava-me sentado com um amigo de infância, empregado bancário, à mesa de um de um dos muitos cafés da baixa lisboeta. Falávamos das condições de vida e de emprego de cada um e concluí que as minhas, como funcionário da CP eram deploráveis em comparação com as dos bancários, nessa altura uma profissão considerada muito bem remunerada.Tão revoltado estava com o ninharia que auferia na CP e sobretudo com a falta de perspectivas de ascensão na carreira, que a minha voz saiu mais empolgada e mais audível quando desabafei com o meu amigo: Eh pá dava tudo para sair da merda deste emprego. E lá continuámos em amena cavaqueira por mais algum tempo, o meu amigo a encorajar-me, que fazia muito bem em tentar sair pois conhecia muito bem as minhas qualidades e competência e merecia, em seu entender, uma melhor situação.Até que , finalmente, se despediu e foi â vida dele.
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Imediatamente, um fulano que estava sentado numa mesa mesmo ao lado, se levantou, e pediu licença para se sentar na minha mesa. O pedido e o acto foram simultâneos. Ainda eu, meio aparvalhado não sabia o que responder já ele se encontrava sentado na minha frente. Era um tipo alto magro, elegante, muitíssimo bem vestido, fato de excelente corte e uma longa gabardina preta sobre os ombros, lacinho vermelho a sobressair de uma colarinho engomado e de uma camisa branca, finíssima. Cabelos negros, muito bem penteados, orelhas algo pontiagudas, sobrancelhas espessas, olhos penetrantes, lábios finos e boca que se serrava num rictus que me pareceu poder ser, por vezes, muito cruel.
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Durante momentos que me pareceram intermináveis, limitou-se a encontrar uma posição confortável na cadeira, abrir com as mãos enluvadas uma belíssima cigarreira de prata, oferecer-me um cigarro, que recusei, acender o seu, puxar umas fumaças, enquanto me envolvia em silêncio num olhar penetrante que me confundia. Finalmente falou:- Desculpe, meu caro Senhor, mas ouvi-o dizer que dava tudo para sair do emprego que tem (não sei porquê, mas a palavra “tudo” foi pronunciada com um tom de voz e uma firmeza que me pareceu adquirir um valor absoluto na sua boca, muito para além do “tudo” que eu tinha mencionado e que na maior parte das vezes significa apenas “muita coisa”) Isso significa, continuou ele que está interessado em arranjar um emprego que lhe traga mais vantagens.-Assim é, respondi.- Pois, meu caro amigo, permita que o trate assim, eu estou em condições de lhe proporcionar um emprego que vai exceder todas as suas perspectivas- Como assim?- Trabalho com uma multinacional do ramo dos petróleos que vai abrir uma grande dependência em Paris e estou incumbido de recrutar pessoal para lugares administrativos, quiçá de direcção – gente que seja ambiciosa, como vejo que é o seu caso, e com qualidades que julgo também terá, pela conversa que ouvi há pouco e pelos elogios que lhe fez o seu amigo. E, acto contínuo, puxou de uma caneta que era um luxo, de uns papeis que sacou do bolso e rematou:
- Basta que me dê os seus elementos identificativos, me assine esta declaração e dentro de poucos dias o senhor está em Paris, com um ordenado chorudo e um carro às ordens.
- Chorudo, quer dizer quanto? Perguntei.
- Entre 20 a 25 mil escudos mensais.
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Arregalei os olhos de espanto pois nessa altura ganhava eu a ridícula importância de 1.700, mas como o dinheiro felizmente nunca me cegou, logo refreei o meu entusiasmo e o bom senso falou mais alto.
- E é a mim, que o senhor não conhece de lado nenhum, que vem oferecer esse emprego milionário?! Porquê
- Ora, porquê? porque ouvi-o dizer com tanta veemência que daria tudo para deixar o emprego que tem, que achei ser uma pessoa com determinação suficiente para aceitar todo e tudo merecer.
- Alto aí, esse tudo não significa, por exemplo, vender a minha alma ao diabo.
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Aí o homem deitou-me um olhar que me deixou gelado. Seguiu-se um grande silêncio entre nós e ele voltou às suas ofertas não já como a pessoa importante que tem sumptuosos empregos para oferecer, mas com ar quase paternal e blandiciosas palavras, “que era uma oportunidade única, que eu era um jovem dinâmico, que fazia muito mal se deixasse fugir uma ocasião que podia não mais vir encontrar” e patati patatá, por ali fora.
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Confesso que comecei a ficar baralhado, envolvido na teia das suas palavras, mas tentei reagir, “que não, que estava casado há pouco mais de um ano, estava esperando o primeiro filho e não ia ausentar-me por nenhum dinheiro do mundo”. E o homem a insistir, isso não seria problema, que mais tarde poderia vir buscá-los. A proposta era tão aliciante, tão fantástica que já não sabia que argumentos mais poderia inventar para a recusar. No entanto, subitamente, uma razão me ocorreu para o fazer. Acabadas as eleições presidenciais em que o concorrente General Humberto Delgado fora miseravelmente espoliado da sua condição de vencedor, vivia-se no país um ambiente pré-insurreccional que galvanizava toda a sociedade portuguesa. Havia greves em vários pontos do país que tinha levado à prisão dezenas de trabalhadores. Esperavam-se movimentos de massas e mesmo de militares susceptíveis de mudar a situação política no nosso país. Na própria CP se vivia um inusitado movimento reivindicativo. Apesar da conhecidas dificuldades em conseguir que as pessoas assinassem moções de protesto e de carácter político, uma exposição redigida por mim, na qual eram exigidas melhores condições de trabalho e salariais na Empresa recolheu a assinatura de cerca de 15 mil ferroviários ao longo de toda a rede. Pois foram estas razões, mais ainda do que o facto de me afastar da família, que foram determinantes na recusa em aceitar a mirabolante proposta que estava sendo feita. É que eu não queria, por nada deste mundo deixar de estar presente quando esses esperados acontecimentos viessem a ocorrer.
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Infelizmente o que se passou foram episódios isolados, como o caso de Beja, o assalto ao paquete Santa Maria e pouco mais e eu próprio fui parar à cadeia pouco tempo depois. E contudo, por muito estranho que isto possa parecer a muita gente foi a consideração desta hipótese de mudanças e do meu desejo de nelas participar que decididamente me levaram a recusar a aliciante proposta. É que há prazeres que não há dinheiro no mundo que os pague!Uma vez tomada esta decisão não demorei a anuncia-la. Foi num tom ríspido e definitivo que o fiz: “meu caro senhor não estou interessado no seu emprego. Entregue-o a outro que o queira e passe muito bem”.
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O homem levantou-se furibundo e com uma agilidade surpreendente saiu porta fora. Ainda o vi por um momento, através da montra, mas curiosamente desapareceu, de súbito, no meio da multidão como se se tivesse evaporado. Entretanto o empregado de mesa chegou-se ao pé de mim com uma estranha pergunta: “o senhor reparou que o sujeito que acaba de sair cheira a enxofre que se farta?” Não eu não tinha dado por isso, pois estava muito constipado nesse dia.Vim a saber posteriormente que um indivíduo com iguais características tinham abordado outros colegas meus com ofertas semelhantes e que dos dois que as tinham aceite e abandonado a CP, nunca mais ninguém voltara a ter notícias.Ninguém me tira da cabeça, sobretudo hoje, retido em casa, com gripe, ardendo em febre, que foi com diabo que eu falei naquele fim de tarde daquele fim de verão do longínquo ano de 1958.
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PS: - O prazer que não obtive em 1958 vim a saborea-la, com juros de acréscimo, dezasseis anos mais tarde, com o 25 de Abril de 1974. Quanto ao meu emprego na CP, as mudanças sociais entretanto ocorridas, e o meu esforço de valorização académica e profissional levaram-me a concluir que não teria valido a pena procurar longe, o que encontrei aqui.

1 Comments:

Blogger MEHC said...

Mais uma história do seu percurso que, já estou a ver, é rico em experiências interessantissimas.Fez muito bem não ter cedido à tentação daquele diabo! Mas não sei como teve tanta ponderação e bom senso na altura...

07 janeiro, 2007 22:58  

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