ESCRITOS OUTONAIS

5.02.2008

Novas Publicações...

Dada crescente ânsia por novas publicações de mais textos de António Melenas, justifico a demora pelo facto de estar neste momento a rever a globalidade do texto "A Minha Prisão", para uma republicação integral no blogue. O meu horário de trabalho não permite passar muito tempo a tratar de textos que não incluam pentagramas com notas musicais, pelo que apenas esporadicamente tenho oportunidade de pegar em todo este espólio do meu avô.
No entanto, prometo para breve essa tão esperada publicação póstuma do que resta d' "O Tempo das Hienas".

Estejam atentos, já falta pouco...

Beijos e Abraços,
João Gouveia

3.24.2008

Do Fundo da Arca

Vejam também este site, publicado recentemente pelo António, que contém uma extensa antologia de poesia e prosa escrita por ele:

http://guardadonaarca.no.sapo.pt



Beijos e Abraços,
João Gouveia

3.18.2008

Morreu António Melenas



Foi no passado dia 16 de Março, pelas 22 horas, que faleceu António Joaquim Gouveia, vítima de Macroglobulinemia de Waldenström (no sangue). Decorreu hoje - dia 18 - o funeral, no cemitério do Feijó, concelho de Almada, com a presença dos familiares e amigos mais chegados.

Passo por este meio a mensagem a todos os cibernautas que com ele contactaram nos últimos anos, partilhando duas das suas grandes paixões: a escrita e os computadores. Para todos vós que visitam este blogue o nome era António Melenas, pseudónimo baseado no apelido da sua mãe, e durante dois anos foi este tal Melenas que deliciou inúmeros curiosos da blogosfera que por cá passaram, com estórias e relatos de uma vida fascinante.

Já está online a homenagem realizada pelo seu grande amigo Luís Gaspar, no site de podcast "Estúdio Raposa":

http://www.estudioraposa.com/index.php/18/03/2008/lugar-086-antonio-melenas/

Em breve publicarei neste blogue a edição póstuma das restantes partes de "O Tempo das Hienas", texto sobre a experiência do meu avô na prisão que já há muito ele havia escrito e guardado para que eu só o lesse na idade adulta.
Poderão enviar mensagens para os blogues "Enquanto e Não" e "Escritos Outonais", que eu estarei por cá para receber, responder e recordar o meu avô e meu amigo, que muitas histórias partilhou comigo.

Beijos e Abraços do neto,
João Gouveia

2.24.2008

O TEMPO DAS HIENAS (2ª parte)

Sede da PIDE na Rua António Maria Cardoso
No antro das feras


Foi nessa noite que me vieram buscar...

Devia ser perto da meia noite, precisamente quando exausto da vigílias das noites anteriores, conseguira adormecer. Abertas as portas com o habitual estrondo e rangido de chaves, surgiu um dos guardas, recortado na pálida luz do corredor:
“Sr. Gouveia, prepare-se para ir à polícia”. Era a frase sacramental. Levantei-me assarapantado, enfiei os sapatos nos pés e lá me levaram para a António Maria Cardoso numa carrinha igual à que me tinha trazido, para uma luta desigual para a qual partia já fragilizado por duas noite de insónia, de ansiedade e de sofrimento.
Não era por acaso que não me tinham interrogado à chegada, quando eu vinha fresco e pimpão. Eles sabiam o que faziam.


Lá estava a mesma sala quadrada, a mesma secretária e a mesma máquina de escrever já com uma folha de papel presa nos carretos, um agente sentado em frente e desta vez acompanhado de um inspector, de nome R..., como vim depois a saber. Em frente da secretária, a meio da sala, outra cadeira onde me mandaram sentar.

Julgava eu que após a identificação, que aliás já constava na folha metida na máquina e que me foi lida para confirmação, eles entrassem directamente no assunto e me formulassem uma qualquer acusação que me caberia a mim tentar refutar. Mas não foi assim. O agente ajustou o carreto, poisou os dedos no teclado., ajeitou os óculos e o Inspector disparou:
“Pode começar, senhor Gouveia”
“Mas começar o quê? Qual é a acusação que têm contra mim?”
, retorqui genuinamente surpreso, pois não fazia ideia nenhuma de que era assim que as coisas se passavam.
“Não o acusamos de nada, senhor Gouveia, você é que deve saber as actividades em que tem andado metido e vai-nos contar tudo desde o princípio, Nós apreciaremos depois se o que nos conta coincide com o que nós já sabemos a seu respeito.
Armei-me em forte, com uma fortaleza que em nada correspondia aos meus receios interiores:
“Não tenho nada a contar. Se quiserem formulem-me uma acusação concreta e eu decidirei se tenho alguma coisa a dizer-vos.”
O inspector riu-se na minha cara. Uma gargalhada sonora, insolente, depreciativa e acrescentou:
Olhe, eu nem vou perder tempo consigo. Só lhe digo que o que está acima de si e o que está acima desse, já falaram. Agora é consigo. Deixo-o entregue aos meus rapazes. Temos todo o tempo do mundo para ouvir a sua história”.
E saiu com expressão trocista e o ar gingão que fazia gala em exibir.

O agente, do outro lado da secretária, depois de insistir, comigo para começar a “contar a minha história, que era melhor para mim e patati-patatá” e de posteriormente ter enveredado por outro tipo de conversas que nada tinham a ver com o motivo da minha prisão, face ao meu obstinado e absoluto silêncio, puxou de um livrito de banda desenhada e passou a ignorar-me por completo, instalando-se na sala um silêncio que me dava descanso por um lado, mas que acabava por se tornar enervante. De vez em quando levantava-se, ia até à janela, voltava a sentar-se, tamborilava com os dedos na secretária, bocejava e só de longe em longe voltava a insistir: “Então, Sr. Gouveia, comece lá. Só está a perder tempo!

Assim se passaram quatro horas que me pareceram ter a duração de quatrocentas. Só que muitas mais se haveriam de passar e cada vez mais custosas de suportar.

Por volta das quatro da manhã, entrou outro agente a substituir o primeiro. Era um homem de meia idade, mais velho do que os outros pides com quem tinha contactado, corado, ar de seminarista e também de óculos. Disse chamar-se não-sei-quantos Sardinha, sentou-se, insistiu várias vezes para que eu “contasse a minha história”(parecia um disco falhado), e perante o meu silêncio deixou-me em paz durante algum tempo.
A dada altura saiu da sala e pouco depois voltou acompanhado de outro. Este vinha armado em arruaceiro. Aliás era essa uma das tácticas usadas pela PIDE. Vinha um com falinhas mansas, tipo “bom rapaz”, “que estava naquela profissão porque não tinha arranjado outra melhor”, “que em todo o lado havia bom e mau”, “que ele compreendia que as pessoas não fossem afectas à “situação”. etc. e tal e logo de seguida entrava outro, com ar de ferrabrás, mata e esfola, tentando aterrorizar o preso. Vim a saber depois que eles alternam frequentemente os papéis: o que faz de bonzinho com um preso faz de vilão com outro e vice-versa. Este - combinada certamente a estratégia, cá fora - entrou logo à bruta e com grande estrondo: “Então este é que é o gajo que não quer falar”?

Quando o vi entrar, de rompante e com ar ameaçador, julguei que me ia agredir e levantei-me de um salto, numa posição instintiva de defesa. Limitou-se a dar um pontapé na cadeira, que caiu por terra com um barulho dos diabos, fazendo acorrer outros pides à porta. Levantou-a, agitou-a ameaçadoramente diante dos meus olhos e saiu vociferando perante o riso alvar dos comparsas” “Este cabrão não torna a sentar-se, enquanto não vomitar tudo cá para fora”. Tudo não passara de uma encenação para me retirarem a cadeira.

Às oito da manhã entrou um novo pide, ao meio-dia outro, outro às 16 horas, outro às 20, outro às 24 e era assim de quatro em quatro horas, cada um deles insistindo para que eu falasse - uns de mansinho, outros ameaçadores, e eu roído por dentro, no mais absoluto silêncio, andando de um lado para o outro como um tontinho, sem nunca mais me ter sentado desde as quatro horas da manhã.

Nessa segunda noite, a minha asma agravou-se de tal forma, que julguei morrer de asfixia e mesmo ali, naquela sala, me foi aplicada uma injecção. Confesso que tive receio que fosse para me liquidarem ou pelo menos para me doparem.. Sentia-me imensamente cansado. Esta era a minha quarta noite sem dormir, uma vez que nas duas noites passadas no Aljube, além do sofrimento provocado pela asma, não tinha igualmente pregado olho.
Passou-se essa infindável noite. Passou-se outro inenarrável dia. Alguns dos agentes começaram a repetir-se nos turnos e ao entrar mostrava-se surpreendidos:
O quê, você ainda aqui está? Você é que sabe. Olhe, como já reparou, nós mudamos de quatro em quatro horas. Você é sempre o mesmo. Você ainda acaba por endoidecer”.
E a verdade é que eu comecei mesmo a recear isso.
A uma dada altura, porém, eles abriram um pouco o jogo: “Diga quem o aliciou para o Partido, que actividades desenvolvia, com quem reunia, onde tinha essa reuniões...enfim, o senhor sabe e nós também sabemos, pois o seu controleiro já cantou. Só que contado por si tem outra graça”.

Na verdade eu já sabia que alguém tinha falado em mim, pois já fora avisado por um amigo e colega da CP - o senhor Homem de Figueiredo, velho socialista e homem de uma finura rara, que há dois meses se encontrava detido no Forte de Caxias. Só que eu não tinha feito grande caso do aviso. A minha actividade política era tão insignificante. Limitava-me, às vezes, a redigir e distribuir exposições ou abaixo assinados reivindicando melhores condições de vida e melhores salários na minha empresa, assinava outros, de interesse para a população em geral, participara activamente em várias campanhas eleitorais, designadamente nas do General Delgado para a Presidência da República, tudo isto de uma forma quase esporádica, e era tudo. Nada que pudesse ser considerado ilegal Só que, quando o fazia, o fazia de forma organizada e em conjunto com outras pessoas. Ora isso é que Salazar e todo o seu aparelho repressivo não toleravam

E voltou a cair a noite. A terceira naquela sala e a quinta sem dormir. O não dormir, apesar de mau, ainda não é o pior. O pior é a ansiedade, a angústia. “O que é que, exactamente, estes gajos saberão?”, “Como é que isto vai acabar?”, “Como é que me vou livrar disto sem comprometer ninguém?”. Este é que é o maior sofrimento. E a PIDE sabia-o e explorava esse sentimento com requintes de sadismo. “Ah se eles me fizessem uma acusação concreta que eu pudesse refutar ou aceitar, desde que isso me comprometesse só a mim!

Embora naquela situação não houvesse diferença entre ser dia ou ser noite, porque nunca se dormia, a verdade é que encarava com verdadeiro terror a chegada da noite. À noite os silêncios e os ruídos assumem significados que se podem tornar insuportáveis, sobretudo quando se está cansado, sobre pressão, só, fraco, e totalmente à mercê de um poder tenebroso que se sabe não recuar perante qualquer crime.

Entretanto, a falta de dormir, as horas consecutivas passadas de pé, a asma, o medo e toda a carga nervosa de que estava possuído, começavam a produzir os seus efeitos. Comecei a ter picadas nos olhos, a ver uma espécie de pirilampos imaginários que bailavam no ar, à minha frente, enquanto no chão, os inúmeros nós das tábuas do soalho se transformavam em baratas que corriam em todas as direcções, inclusivamente parecendo que começavam a trepar-me pelas pernas acima, enquanto a cabeça me estoirava, como se apertada por um capacete de aço.

Um dos pides de turno nessa noite era um tipo alto, magro, bastante novo, com um ar de malandro da noite, constantemente mascando pastilha elástica e apertando na mão uma pequena bola de borracha esponjosa, destinada a dar força na mão e ganhar músculo no braço. Aliás, gabava-se: “Como vê, não sou grande atleta, mas gajo a que eu dê um murro, vai ao chão de certeza”, e mirava-me como quem diz “Vê lá, se queres provar”.
Tendo-se cansado das suas exibições de boxeur malandro, começou a atazanar-me com a eterna lengalenga: “Então Sr. Gouveia”, “Quando é que se decide, Sr. Gouveia”. Os meus nervos estavam em franja. Não me contive e gritei-lhe: “Vá chatear a sua prima, seu pide de merda”. Veio direito a mim, numa fúria. Rezei para que ele me batesse. Isso enrijar-me ia. Encostei-me à parede, tendo apenas o cuidado de me afastar da janela, por onde já outros presos tinham “caído” e aguardei expectante. Não devia ter ordens para o fazer, pois se limitou a abanar-me com violência, ameaçando que me dava um enxugo de porrada, se voltasse a insultá-lo.
Voltou a sentar-se e sentenciou:
“Faça como entender, mas aviso-o de uma coisa. Você, daqui, só tem três saídas: Tribunal Plenário, Júlio de Matos ou Alto de São João”. E não voltou a dirigir-me palavra até ao resto do turno. Estas três únicas e sinistras saídas eram, aliás, constantemente repetidas por cada pide de turno: Tribunal plenário, Júlio de Matos ou Alto de São João... Tribunal plenário, Júlio de Matos ou Alto de São João, até a cabeça me estoirar...

À medida que a noite progredia o meu estado físico e psicológico ia-se deteriorando. Eu pressentia que qualquer coisa se estava passando que trazia os pides muito agitados. Havia vozes exaltadas e por vezes correrias nos corredores. Parecia-me ouvir gemidos e gritos e tudo isto tomava significados inquietantes e proporções desmesuradas no meu atormentado cérebro. Cá fora, depois das eleições roubadas ao General Delgado reinava grande agitação política, falava-se em golpes contra o regime. Em Cuba tinham começado por aqueles dias as execuções dos torcionários e esbirros da ditadura de Fulgêncio de Baptista, derrotado por Fidel na noite de Ano Novo, o que muito assustava a PIDE de cá e as várias PIDES por esse mundo fora. E eu sabia que, se algo fosse tentado contra eles, eles não iriam perder tempo com os presos que tivessem a pouca sorte de estar ali, no seu antro, naquela altura. Eles seriam pura e simplesmente abatidos.

A agitação que notava da parte deles, transferia-se para mim e provocava no meu cérebro cansado visões macabras e assustadoras. Tive medo. Muito medo. Como iria acabar aquele pesadelo? Vim a saber depois que nesse mesmo dia, 17 de Janeiro, o Capitão Henrique Galvão tinha fugido do hospital onde se encontrava há largo tempo sob prisão, refugiando-se na embaixada da Argentina. Era um grande revés para o regime, a juntar a outro bem próximo, ocorrido no dia 12, na véspera da minha detenção: o pedido de asilo político na Embaixada do Brasil, por parte de Humberto Delgado. Natural era, pois, que também os pides andassem desvairados e amedrontados mesmo. Tanto como eu, provavelmente.

Alta madrugada, aparece-me o inspector R... que nunca mais vira desde a primeira noite. Vinha bêbedo. Ficou especado no meio da sala mirando-me de alto a baixo, como que avaliar o estado da presa, e só depois avançou lentamente para o sítio onde eu estava, de pé, encostado à parede. Pôs-me a mão no ombro e abanou-me. Cheirava a vinho que tresandava. O cheiro a álcool exacerbava a minha asma. Fixou-me com olhos vermelhos e injectados de ébrio. encostou o rosto encarniçado ao meu - parecia que me ia beijar - e sussurrou-me ao ouvido: “Você, vê-se mesmo que está de peito feito para levar um ensaio de porrada. Não lhe damos esse prazer, ouviu? Não lhe damos esse prazer, sr. Gouveia” E não deram mesmo, tal como entrara, saiu porta fora sem mais uma palavra. Ficou por ali o seu pequeno e avinhado show.

Para cada preso eles tinham um tratamento adequado. Eles bem sabiam que, para quem está mais virado para actividades do espírito, a pressão psicológica, o esgotamento desse mesmo espírito que é afinal a sua ferramenta de trabalho, causa mais danos do que a pancada. Lembro-me de um generoso moço algarvio, o Manuel Lagos, latagão capaz de varrer meia dúzia de pides numa luta aberta, ter chegado à camarata do Aljube, para onde depois vim a ser transferido, chorando como uma criança e a dizer entre soluços de revolta: ”sacanas! Bateram-me! Bateram-me! Sacanas!. Bateram-me na cara! Na cara, sacanas!”. E não era o corpo que lhe doía, não. Era o amor próprio ultrajado. Tanto assim, que dias depois e sempre que se lembrava disso, as lágrimas corriam-lhe e repetia as mesmas magoadas palavras.

Lembro-me de outro, o João Borges, astuto camponês de Bencatel, que tendo chegado “da tortura do sono”, depois de não sei quantas noites, ele não dizia “Passei tantas noites sem dormir”. Ele exprimia assim sua revolta “Eh, camaradas! as noites que eu passei lá além, sem descalçar as botas.! “
É isso. A PIDE tinha tido bons mestres nos émulos de Hitler, primeiro, mais tarde da CIA e de outros que tais. E sabia bem onde as coisas doem, como doem e a quem doem.

Foi uma noite terrível aquela. As falsas baratas e os imaginários pirilampos eram cada vez mais numerosos e mais rápidos nos seus saltos e fantásticas acrobacias. Os pés inchavam-me, as pernas não as sentia. As dores nos rins eram atrozes. Não será por acaso que hoje tenho tantos problemas nas pernas e na coluna. Por incrível que pareça, não tinha sono. Os olhos esbugalhavam-se, ardiam-me, picavam-me, viam os tais pirilampos, mas nada de sono. E principalmente a asma, que não me dava tréguas

Não sei se haveria ali perto algum bar ou sociedade de recreio (nunca averiguei isso) mas durante boa parte da noite (era Sábado) ouvia música de um baile qualquer ao longe. O carnaval devia estar próximo e havia alguém que cantava uma canção brasileira, então muito em voga: “Ai morena, seria o meu maior prazer dançar no carnaval contigo, beijar a tua boca e depois morrer”. E depois morrer! Era o que me apetecia nessa hora, com a suavidade da cantiga. E não há contradição nenhuma - ao contrário do que possa parecer - entre o receio de ser morto e a vontade de suavemente se deixar morrer. E eu pensava na minha morena - a minha doce companheira, grávida de quatro meses - da qual nem sequer me fora permitido dar um beijo de despedida. Como ansiei beijá-la, naquela hora!

E assim continuou a noite e se fez dia. E eu ali. Eu e os meus algozes. Eles, sempre renovados e frescos e eu sempre o mesmo. E cada vez mais falto de forças. Era um jogo do gato e do rato em que este uma vez apanhado sabe que o seu destino é inexorável, Tenho assistido inúmeras vezes a esse prolongado jogo. O gato que filou um rato não o papa logo. Brinca com ele, atira-o ao ar, deixa o fugir, para logo de seguida o apanhar de novo, joga com ele de uma pata para a outra, como um jogador de hóquei, avançando com a bola, driblando o adversário em direcção à baliza, abocanha-o como se o fosse tragar, deixa-o fugir de novo e de novo se precipita sobre ele. E nestas sádicas manigâncias se diverte, tempos infindos, até que lhe dá o súbito golpe de misericórdia e regaladamente o papa. Eu era o rato. Como poderia esquivar-me ao golpe de misericórdia?

E o dia se passou, longo, sofrido, interminável. E voltou a noite. Sentia que era humanamente impossível aguentar muito mais, mas fiz um esforço para esticar as minhas resistências. No fundo era mais uma questão de amor próprio, de dignidade, de respeito por mim mesmo. Sentia que o momento de tomar uma decisão estava chegando. No meu cérebro cruzavam-se mil esquemas com vista a uma saída do labirinto infernal em que me encontrava metido. Só que uns anulavam os outros, opunham-se, cavalgavam-se, contradiziam-se. Nada fazia sentido.

Cansado do prolongado tumultuar de ideias, mergulhei, durante horas, na mais profunda apatia. O olhar ausente, o crânio uma caixa oca que parecia não fazer parte do meu corpo. Chegou a meia noite e tive consciência de ter chegado ao limite das minhas capacidades. Já que a única saída era, como se me exigia, “contar a minha história”, resolvi contá-la, à minha maneira, se fosse possível. Dependia do que eles soubessem.

Uma das suas exigências era saber quem me tinha aliciado para o Partido, como e quando. Ora, quem me tinha metido em tais andanças fora um colega e querido amigo, o Raul Reis, que trabalhava em Santa Apolónia, e eu por nada deste mundo queria incriminá-lo (mal sabia eu que ele fora preso precisamente no mesmo dia que eu, bem como outros dois colegas de Santa Apolónia, o António Reis, velho activista dos Centros Republicanos e o Mário Ribeiro Sanches, prestigiado árbitro de futebol).

Assim, já a manhã se aproximava, inventei um fulano que pretensamente tinha conhecido num piquenique de jovens do Movimento Nacional Democrático, o qual me tinha marcado um encontro num determinado sítio, e ali me propusera que eu me encarregasse de determinadas tarefas de agitação e propaganda dentro da CP e arranjasse outros colegas para comigo colaborarem em tais tarefas. Disse que sim e esporadicamente passara a fazer alguns desses trabalhos. Tudo isso era verdade, só que quem me levou até esse indivíduo, para mim completamente desconhecido foi, como atrás referi o meu colega Raul Reis - que eu deixei fora da história e que, entretanto, já faleceu há muitos anos.

Queriam saber o nome do indivíduo em questão. Aí foi fácil para mim esquivar-me. Pura e simplesmente não sabia. “Diga o pseudónimo”. Também não havia, da sua parte, qualquer pseudónimo. Referia-me a ele como “João”, mas era uma iniciativa minha. Mais tarde esse “João” afastou-se e apresentou-nos um substituto a quem eu e os meus amigos nos referíamos como “João II”. Posteriormente veio outro a quem chamámos “João III” e finalmente um último (julgo que tenha sido este que falou em nós à polícia), a quem apelidámos de “João IV”. Comentário de um dos pides presente: “Porra! Por pouco não chegavam ao João XXIII” - alusão óbvia ao simpático e carismático Papa, que então ocupava a cátedra de São Pedro.

Era tão pequeno, afinal, o “crime” que eu tinha praticado. Aliás a sucessão de “Joões” era reflexo da pouca e desligada actividade que eu e os meus colegas desenvolvíamos. Era muito maior a minha actividade cívica como cidadão não organizado (campanhas eleitorais, por exemplo) do que, organizadamente, a nível de célula de Empresa. Aliás - o que é um defeito - nunca me senti grandemente vocacionado para trabalhar em grupo.

A parte mais custosa da “minha história” - a que me fizera suportar todos aqueles dias de autêntica tortura - era revelar o nome dos colegas que faziam parte do grupo que comigo executava algumas dessas tarefas (distribuir uns panfletos, recolher assinaturas a favor de qualquer movimento de intervenção cívica, exigir a libertação dos presos políticos, ou a reposição de direitos fundamentais da constituição, constantemente violados, ... coisas desse género, naturais em qualquer regime minimamente democrático).

Mas essa era precisamente a que eles estavam, porventura mais interessados em conhecer. Aí houve um novo impasse, porque eu não queria continuar. Mas quando se começa.... Face à minha resistência ensaiaram uma falsa condescendência: “Diga ao menos os pseudónimos”. Fui tão ingénuo que caí na esparrela: Só que, tirando eu (que para os “Joões “ era André e o Artur, que para eles era Paulo, ninguém mais tinha pseudónimos. Assim, tanto me moeram o juízo que acabei por inventar mais quatro pseudónimos, acreditando, isto é, querendo acreditar - como se isso fosse possível - que tudo ficaria por ali. Como seria de esperar, depois dos pseudónimos voltaram a exigir os nomes. Era pior a emenda que o soneto, pois a existência de pseudónimos, que nem era verdadeira, poderia fazer pressupor um grau de organização que na realidade não existia. Embezerrei durante mais um par de horas, recusando-me a juntar os nomes aos pseudónimos, mas já não era possível voltar atrás.

Mesmo assim, voltaram à carga: “Só estes? Então e os de Santa Apolónia?” Neguei que tivesse algo a ver com Santa Apolónia, que o Rossio era outra organização (o que não era verdade). Insistiram, insistiram, mas acabaram por desistir, Não deviam ter a certeza, Foi um pequeno alívio para as minhas amarguras.

Já era dia claro quando me largaram, feito um farrapo. E foi só depois de todo este “tratamento” que, antes de me levaram de volta para o Aljube, me tiraram as clássicas fotos para figurar nos seus arquivos com as caras patibulares que faziam questão fosse a imagem dos opositores ao regime. O normal é um preso ser identificado e fotografado logo à chegada, porém, quanto a fotos, a pide só as tirava após a tortura do sono ou outras malfeitorias com o detido de barba por fazer e aspecto taciturno. Ciente das suas perversas intenções tentei contrariar tais desígnios esboçando um sorriso para a câmara. Mas deve ter sido um sorriso muito amarelo - o sorriso de quem trazia a morte na alma.

* * *

Mal entrei na cela, a primeira coisa em que reparei, em cima da tarimba, foi o saco, que imediatamente reconheci, que minha mulher, entretanto me tinha enviado com roupa e artigos de toilette. Ali estavam, sobre a sórdida manta de sorrobeco, o meu pijama muito bem dobradinho, roupa interior, uma camisa, tudo com o cheiro familiar e bom da minha casa, escova de dentes, pasta, pincel da barba, lâminas e sabão, caneta e papel de carta. Com que carinho e apreensão não preparara a Adelina aquela trouxinha com os meus pertences! Pensando nisso os olhos encheram-se-me de lágrimas. Foi dos momentos mais emocionantes de toda a minha vida. Lá estava também a bomba para os ataques de asma guardada em casa dos meus pais, desde que lá saira para a minha própria casa, da qual não voltara a precisar e que agora me enviavam.

Julguei que quando chegasse ao Aljube iria cair na tarimba e dormir como uma pedra, mas para grande surpresa minha e maior desespero, assim não aconteceu. Não só permaneci acordado durante o dia, como não dormi durante toda a noite, nem na seguinte. Receei ter perdido o sono para sempre. Ali estava enrodilhado na tarimba, de olhos abertos, pensando em tudo o que me estava acontecendo, extenuado, mas nada de dormir. Pedi para ir ao médico. Mandou que me dessem uns comprimidos tranquilizantes e só assim, na terceira noite, consegui dormir. Ao fim de nove dias era a minha primeira noite de um relativo e precário repouso, entrecortado o sono de terríficos e infindáveis pesadelos.
_____________
Continua

2.07.2008

O TEMPO DAS HIENAS - 1



Aquele dia 13 de Janeiro de 1959


De acordo com ancestrais crendices populares, há dias azarentos em que nem sequer se deveria sair de casa (já os romanos tinham os seus dias fastos e nefastos). Um dos mais pretensamente enguiçados da nossa cultura é o dia 13 de cada mês. No que me toca, não sou particularmente ligado a esse tipo de superstições, mas a verdade (“yo no credo en brujas, pero que las hay”, hay, como dizem “nuestros hermanos”) aquele dia 13 de Janeiro de 1959 foi, de facto, um dia de muito azar para mim. E não só, já que o meu azar se reflectiu, como é de ver, na minha própria família.

Em boa verdade, o azar que tive neste dia era o mesmo a que estavam sujeitos todos os portugueses que pensavam pela sua cabeça e que, como cidadãos de direito, por palavras e actos, não perdiam ocasião de expressar as suas opiniões e de participar em todas as actividades cívicas que a Lei autorizava e a polícia reprimia.


Pouco passava das 9 horas da manhã. Ainda mal nos tínhamos sentado à secretária para mais um dos rotineiros e enfadonhos dias de trabalho nos escritórios da CP, na Calçada do Duque, quando irrompe na sala o Chefe de Serviço acompanhado de dois indivíduos, de gabardine, tão parecidos entre si no seu aspecto geral, como a famosa parelha Dupont & Dupond das aventuras de Tin-tin. Só que com uma expressão patibular que nada tinha de comum com o ar bonacheirão dos detectives saídos do lápis mágico do Hergé de saudosa memória.

Era o meu amigo e quase irmão, o Artur Vaz, quem eles procuravam. “Polícia Internacional e de Defesa do Estado”, disseram. “Considere-se preso”, acrescentaram logo de seguida. E vá de o encostar à parede e começar a revistar-lhe a secretária. Algumas das gavetas estavam fechadas e o Artur, possivelmente para lhes dificultar a tarefa, teimava que não sabia das chaves. Logo houve um colega muito colaborante (aparece sempre um simpático filho de puta muito zeloso em colaborar com as autoridades) que arranjou uma chave que servia.

Toca a esvaziar as gavetas e passar tudo a pente fino. Enquanto isso, logo que me dei conta do que estava acontecendo, corri para o pátio adjacente aos escritórios e fui de repartição em repartição dar o alarme, informando que estava ali a PIDE para prender o Artur e exortando os colegas a abandonarem os seus lugares e virem manifestar-se cá fora, o que muitos fizeram, juntando-se no pátio com grande clamor, aos gritos de “fora, fora, assassinos!”

Dali a pouco, carrancudos, saíam os dois agentes recebidos com apupos e vaias dos trabalhadores aglomerados no pátio, tendo-se rapidamente afastado, com ar rancoroso e a mão ostensivamente pousada no coldre. Para nosso espanto, porém, vinham sozinhos. O Artur não estava com eles. Teriam desistido de o prender?

Depressa soubemos o que se passara. Achando os pides entretidos a vasculhar os papéis, o Artur, aventureiro como era, meteu-se-lhe na mona que não se iria deixar prender. Dá um encontrão num dos pides que lhe obstruía o caminho, atravessa a correr a comprida sala, pelo meio das secretárias e, perante a muda estupefacção dos colegas que ali permaneciam, sai porta fora.
Os pides sacam das pistolas, lançam-se em sua perseguição. Só que eles não conheciam os cantos à casa e enquanto se dirigiam para a porta que dava para o pátio e pela qual tinham entrado, o Artur descia rapidamente uma série de escadas de caracol que, em sentido oposto, vinham dar à gare da estação do Rossio, desaparecendo no meio dos passageiros.
Nunca mais o viram. Isto é, viram-no três anos depois, quando o prenderam na noite de fim de ano de 1961, na sequência do famoso assalto ao quartel de Beja em que ele era um dos participantes.

Quanto a mim, depois de tudo acalmado, dirigi-me à minha secretária para retomar o trabalho. Qual o quê! Fui imediatamente chamado ao Chefe de Serviço que me informou terem os pides perguntado por mim logo que se lhes escapou o inicial objecto da sua caçada. Não tendo sido encontrado no meu local habitual de trabalho, uma vez que me encontrava cá fora no grupo de manifestantes, concluiu o chefe e concluíram os bófias que eu tinha aproveitado a confusão para me pirar também, pelo que desistiram de me procurar.

Ora, como a sua conclusão fora precipitada, dado que nunca me ausentei das instalações da Companhia, achei que podia continuar com o meu trabalho e os pides, se quisessem que voltassem a procurar-me, ali ou na minha residência. Aliás era isso que aconteceria se, tendo-me procurado na minha casa não me tivessem ali encontrado. Nesse caso, obviamente que eu continuaria a fazer a minha vida normal, apresentar-me-ia ao serviço, como de costume e aguardaria calmamente (para não dizer angustiadamente) o posterior e duvidoso desenrolar dos acontecimentos.

O Chefe de Serviço, porém, não era da mesma opinião. Entendia que, face ao sucedido, eu não podia continuar a trabalhar. Invectivei-o indignadamente, acusando-o de estar, objectivamente, a ser mais Pide que os pides, pois estava, no fundo, a fazer o serviço deles, sem que isso lhe tivesse sido sequer encomendado.

O homem - que até nem era má pessoa - estava tão ou mais enervado do que eu. Pálido e trémulo, hesitava entre a razão dos meus argumentos e o medo pavoroso que a PIDE lhe inspirava. Era esse medo, aliás, essa colaboração passiva, embora nem sempre consciente, que alimentava a manutenção do regime. Face à minha resistência, consultou o Director de Pessoal - esse sim, incondicional afecto ao regime - que, tal como ele, se limitou a lavar as mãos: para eles eu estava à disposição da polícia e não podia continuar ao serviço.

Que fazer? Entregar-me à bófia? Fugir, como o Artur? Só que o Artur não tinha compromissos familiares e eu era casado (recém-casado, aliás) e a minha jovem mulher, grávida, aguardava um filho. E depois, que tinha eu feito que merecesse ser encarcerado? Durante todo o resto da manhã me debati com este dilema.

Depois do almoço tomei a decisão que a situação em que fora colocado tornava inevitável. Após ter escrito um protesto que deixei nas mãos do Chefe de Serviço, contra o seu procedimento absurdo e servilmente colaboracionista, telefonei à Adelina, minha mulher, comunicando-lhe a minha intenção, despedi-me dos colegas, na sua maioria calorosamente solidários e, caminhando lentamente (a pressa não era nenhuma, está bem de ver), saí da Calçada do Duque, atravessei a Rua da Condessa - onde me apercebi, pelos olhares compungidos, que muitos dos moradores que me conheciam já estavam ao corrente do sucedido, passei rente ao Quartel do Carmo, desci a Calçada do Sacramento e subi a rua Garrett, olhando demoradamente as montras.

Demorei-me junto à vitrina da pastelaria Marques, recordando o hábito de, precisamente com o Artur, esborratarmos o nariz e a boca nas montras das pastelarias da zona, com um ar premeditada e exageradamente “gavroche”, para contemplar - como dizíamos em voz alta, de forma a sermos ouvidos pelos escandalizados frequentadores - “aquilo que os sacanas dos ricos comem”.

Saboreei, como se fosse o último da minha vida, um negro, espumante e vagaroso café na Brasileira; acenei ao meu amigo Chiado, sentado no seu eterno banquinho, indiferente, no seu ar chocarreiro, às cagadelas dos pombos que teimosamente o assediam (ainda vinha longe o tempo em que à mesa do café vizinho, mais snob, mais bem comportado, se viria eternizar em bronze o seu confrade Fernando Pessoa); entrei na Livraria Diário de Notícias, ali mesmo à esquina, onde folheei dois ou três livros; detive-me a olhar os cartazes dos filmes em exibição no Chiado Terrase, sendo o principal, julgo, referente ao “Stalag 17”, filme de resistência ao nazismo interpretado por William Holden (belos tempos em que por meia dúzia de escudos se papavam ali duas fitas na mesma sessão e ainda um desenho animado ou o jornal de actualidades): desci a Rua António Maria Cardoso, mirei ainda os cartazes do São Luís e com o coração apertado, mas já mais calmo, entrei no sinistro casarão da famigerada polícia política de Salazar.

Mal sonhava, quando saí de casa naquela manhã fria de Janeiro, beijei a minha mulher e, como sempre, lhe disse “até logo”, que aquele “até logo” iria durar exactamente noventa e cinco dias e, sobretudo, noventa e cinco intermináveis noites.

* * * *

Não era a primeira vez que entrava no antro da PIDE. Já ali tinha estado, alguns anos antes, na sequência de uma contra-fé intimando-me a comparecer para prestar declarações sobre não me lembro o quê (talvez a assinatura de um abaixo assinado contestando o aumento das rendas de casa, vituperando a carestia de vida, exigindo a libertação dos presos políticos). Tudo era proibido nesses tempos!
Nessa altura ia receoso mas calmo. A idade e as responsabilidades também eram outras. Reconheci como minha a assinatura do abaixo-assinado, justifiquei com alguma petulância, diga-se, as razões que me tinham levado a fazê-lo, e assinei tranquilamente o auto de declarações. Rosnaram-me uma série de ameaças que na altura não me deixaram muito preocupado e saí todo “inchado” por ter enfrentado a poderosa polícia política de Salazar. Já tinha que contar aos meus amigos.

Agora as coisas eram diferentes. Mal a porta se fechou atrás de mim fui tomado de grande angústia, uma espécie de claustrofobia. Parecia que o tecto me esmagava. Apeteceu-me gritar, recuar, fugir dali para fora, mas era tarde demais. “Que deseja?” perguntou-me o porteiro (julgo que policial também), com ar razoavelmente cortês. Disse ao que vinha, relatando os episódios daquela manhã. O ar amável desapareceu como por encanto. “Sente-se e espere”.

Passou-se uma boa meia hora que me pareceu uma eternidade. Entravam e saíam pides, galhofando, mas nenhum deles pertencia à brigada que me tinha procurado. Por fim lá aparecerem: “Com que então ganhou juízo e arrependeu-se de ter dado à sola! Foi o melhor que fez”. Neguei que tivesse fugido, mas isso pareceu ser-lhes indiferente. O importante, para eles, é que eu estava ali e a sua folha de serviço não ia ser afectada pelo fracasso da operação de que tinham sido incumbidos.

Fizeram-me subir, um à minha frente, outro atrás, até ao último piso do edifício, por uma íngreme escada de degraus encerados, de madeira escura, ladeada por um corrimão que me pareceu colocado a um nível mais baixo do que é usual. Conhecendo os antecedentes de outros presos que se tinham “descuidado” e precipitado daquelas escadas, subi rentinho à parede, afastado o mais possível do corrimão.

Chegados ao cimo, encafuaram-me numa pequena sala rectangular, com uma secretária, uma máquina de escrever, uma cadeira atrás e outra à frente, mais afastada, colocada ao meio da sala. Fecharam a porta e saíram sem dizer uma palavra. Tudo estudado para me provocar ansiedade. Montes de tempo se passaram. Ouvia passos nos corredores, vozes cochichando, ordens gritadas de vez em quando, passos que pareciam aproximar-se para logo diminuírem de intensidade, mas a porta permanecia fechada.

Por fim apareceram outros dois agentes. Com ar agressivo e provocador: “Então este é que é o tal? O gajo tem ar de intelectual. São os piores!” Não sei onde é que eles foram desencantar o ar de intelectual que me atribuíam. Talvez por vir razoavelmente bem vestido. Trazia um bonito sobretudo, recém estreado (ainda hoje o tenho), no qual eu tinha uma certa vaidade por ter sido eu próprio a desenhá-lo e mandado fazer, à medida, por um alfaiate amigo, uma camisa de flanela verde e preta, aos quadradinhos e um belo dum cachecol, verde também, enrolado com ar fadista à volta do pescoço. Talvez por usar óculos (nesse tempo havia muito menos gente que os usasse). Talvez pelo ar de poeta que lhes sugerisse o cabelo comprido e revolto que sempre usei.


Além da provocação - esta e outras bem piores - pouco mais adiantaram: “Sente-se. Nome, morada, profissão, estado civil, filiação, porque é que fugiu”, “não fugi, já lhes disse”, e foi tudo.

Toca a descer a mesma escada, com os mesmos calafrios e as mesmas cautelas da minha parte. Enfiaram-me numa carrinha azul escura ( marcas de carro nunca foram ciência que eu cultivasse) de caixa fechada, com uma pequena janela gradeada e revestida de rede, de cada lado, e ala não me disseram para onde.

Por uma das janelinhas, ia espreitando o caminho. Rua António Maria Cardoso abaixo, Rua Victor Cordon (lá estava o edifício da FNAT - que serve hoje de sede da CGTP), rua da Conceição, Rua de Santo António da Sé... Era para o Aljube que me levavam. Cá fora era o bulício dos fins de tarde da baixa lisboeta. Ruas cheias de transeuntes indiferentes à passagem da viatura, que só os mais atentos ou mais politizados sabiam destinar-se ao transporte de presos. E eu lá dentro, com o coração apertado, sorvendo com sofreguidão o fervilhar da vida na cidade, o cheiro das castanhas assadas dos vendedores ambulantes, e as últimas réstias de luz daquele dia soalheiro e frio, prestes a chegar ao fim.

* * * *

Aljube é uma palavra de origem árabe, que significa prisão, cárcere escuro, caverna, poço. Na verdade as antigas cadeias mouras eram subterrâneas, sem janelas para a rua - autênticos poços.

Pois o Aljube, o edifício prisional para onde me levaram, se exteriormente em nada se parece com um poço ou caverna (é um edifício rectangular - parece que antigo paço episcopal e posteriormente prisão de mulheres - com cinco pisos, sendo o último mais recuado e de construção recente). O seu segundo piso, para onde me conduziram, ocupado pelas celas, que na gíria dos seus forçados ocupantes, são conhecidas por “curros” ou “gavetas”, não teria mais conforto, nem mais luz, nem menos humidade que os poços-prisão da antiga moirama.

Entrava-se num corredor estreito, cuja pesada porta se fechava imediatamente atrás de nós. À esquerda, e a todo o comprimento, a espessa parede da frontaria do prédio com janelas de larguíssimo peitoril, protegidas por grossas grades de ferro e revestidas por uma rede de malha miúda, para reforçar a segurança e dificultar a visão; à direita, a sucessão dos pequenos cubículos - os tais “curros”, interrompida a meio por uma reentrância onde se situam os sanitários - uma pia no chão, sem qualquer resguardo e um pequeno e encardido lavatório - sem qualquer porta a separá-lo do corredor, de forma a que os presos pudessem sempre ser vigiados, mesmo no acto de satisfazer as suas mais elementares necessidades fisiológicas.

A escassa luz do corredor, que a rede e as grades filtravam, não chegava aos cubículos, pois estes não davam directamente para o corredor. Primeiro, havia uma porta com uma janeleca do tamanho de um livro vulgar; em seguida, à distância de um metro, uma outra porta com outro janelo com as mesmas reduzidas dimensões; e era atrás dessa segunda porta, fechada à chave, tal como a primeira, que ficava o cubículo onde os presos passavam os seus dias. Isto é, um tempo de lusco-fusco, onde o dia e a noite se confundiam, onde se dormitava de dia e se velava de noite, na sobressaltada expectativa de ser levado para os perigosos e temidos interrogatórios, pois era sempre a meio da noite que eles, intencionalmente, vinham buscar os presos

O cubículo tinha exactamente o comprimento de duas estreitas tarimbas, colocadas uma a seguir à outra e a largura não devia exceder em 30 ou 40 centímetros a largura das ditas tarimbas. Digamos que cerca de dois metros de comprimento, por pouco mais de um metro de largura. É claro que são valores aproximados e a partir de recordações a uma distância de 50 anos.

É fácil deduzir que era quase impossível duas pessoas mexerem-se, e muito menos circularem num espaço tão reduzido, sobretudo quando as tarimbas ou bailiques, como lhe chamavam, estivessem descidas. Assim, quando se queria desentorpecer um pouco as pernas, dobrava-se a tarimba que enganchava numa tábua com uns 20 cms de larga, colocada a meio da parede, a qual servia de base para, de pé, se engolirem, quando o estômago o permitia as mal amanhadas refeições que à hora aprazada nos traziam, em encardidos pratos de alumínio ou estanho ou coisa que o valha.

Quando entrei sentei-me acabrunhado no primeiro bailique e ali fiquei durante muito tempo virado para o pequeno janelo, de forma a ter sempre diante dos olhos um pouco de claridade, para que a sensação de me encontrar num sítio sem ar nem luz não se transformasse em pânico.
Finalmente apercebi-me que no bailique do fundo, havia alguém deitado, que até então não tinha tugido nem mugido e que só agora denunciava a sua presença através de uma estrondosa escarradela. Fui eu que tive de meter conversa. Só que o indivíduo em questão não era ou não estava nada conversador. Pouco troco me deu. Vim a perceber mais tarde: ele estava na retranca, pensando que eu fosse algum provocador posto ali pela PIDE para obter informações. Tal procedimento era, aliás, muito frequente por parte daquela polícia.

* * * *


Por volta das 19 horas um burburinho no corredor, e um abrir e fechar sucessivo de portas vieram quebrar o silêncio quase sepulcral que reinava no nosso tugúrio e nos adjacentes. Até que chegou a nossa vez. Chave a girar na fechadura, primeira porta aberta, chave a girar na segunda porta e um servente, gorducho, de fato macaco de caqui amarelo, surgiu acompanhado de um guarda. Era o nosso jantar: sopa e dois pequenos cachuchos fritos com arroz. A sopa era uma aguada desenxabida e os cachuchos vinham completamente frios. Como a apresentação era pouco convidativa e o apetite era nulo, mal toquei na comida. Foi o meu sorumbático companheiro que, mesmo sem dizer palavra, se abarbatou com o excedente, que deglutiu num fechar de olhos.

Um pouco antes das 21 horas assomou o guarda à janelinha da porta exterior, a perguntar se alguém queria ir à casa de banho. Foi um de cada vez, como era regulamentar. Pouco depois tudo se aquietou no corredor. Era tempo de dormir. Sobre o catre de madeira havia uma estreita e magra enxerga, cheia de palha moída e revestido de uma espécie de serapilheira. O mesmo tecido, aliás, que revestia a almofada encardida, cheia igualmente de palha miudinha, a desfazer-se em pó. Para me cobrir dispunha apenas de uma manta de sorrobeco, de um castanho ruço, suja das botas de anteriores ocupantes que nelas se tinham embrulhado calçados, com inequívocos vestígios de ejaculações nocturnas, cheirando a suor, a pó e a medo.


Ora, sendo eu alérgico precisamente ao cheiro da palha e ao pó, que durante toda a minha adolescência me provocavam frequentes e dramáticas crises de asma, comecei desde logo a antever o pior para aquela primeira noite de clausura. Sem pijama, sem lençóis, sem fronha na almofada, descalcei-me apenas e deitei-me vestido com a repelente manta por cima, à qual acrescentei o meu sobretudo de estimação. Para obviar um pouco a repugnância do contacto da manta, debruei a sua parte superior - a que me ficava mais perto do nariz e da boca - com um lenço lavado que por acaso trazia dentro do bolso, e foi de barriga para cima e segurando o lenço com as mãos que, recorrendo ao clássico e quase sempre improfícuo método de contar carneiros, procurei adormecer.

Não passou muito tempo sem que a asma - que nos últimos três ou quatro anos me tinha deixado sossegado - se manifestasse em toda a sua violência. Levantei-me aflito e fui colocar-me em frente à pequena janela, na ânsia de obter algum do ar que me faltava, com os brônquios a ronronar como se lá dentro tivesse uma ninhada de gatos. O meu companheiro, vendo o meu estado deve ter-se convencido que não iam pôr ali nenhum bufo para estar a sofrer daquela maneira e acorreu solícito, chamando pelo guarda e dando murros na porta, face à sua demora.

Passado algum tempo, estremunhado, a bocejar e de muito mau humor lá apareceu o guarda, assomando ao postigo e a perguntar o que é que se passava. Foi-me arranjar um comprimido qualquer, que não tinha nada a ver com a especificidade da doença, e voltou ao seu descanso dizendo que àquela hora nada mais podia fazer. Passei o resto da noite sentado, ofegante, com os brônquios numa barulheira tal, que até ao meu vizinho tirou o sono.

Logo na manhã seguinte apareceu-me o enfermeiro. Alto, obeso, pesadão, vermelhusco de cara, já entradote em anos, com um pé a pedir licença ao outro para se mover, a inquirir o que se passava comigo. Queixei-me da falta de ar que me tinha atormentado toda a noite. Responde-me o lapuz: “Ora, ora, falta de ar têm todos vocês logo que entram aqui para dentro”. Insisti que não era dessa falta de ar mas de um forte ataque de asma. Lá se convenceu, face à infernal chiadeira que acompanhava as minha palavras,

Fui levado ao médico. Chamava-se Mira da Silva e além de prestar serviço na PIDE era também médico na CP, onde eu trabalhava, como já referi. Fiz-lhe notar que o conhecia, mas ele nem pestanejou, nem o mais pequeno gesto de simpatia ou interesse perpassou no seu rosto redondo e balofo. Receitou-me umas injecções (antibiótico e aminofilina), uma das quais me foi pouco depois aplicada, com consequente, embora passageiro alívio. Pedi autorização para que os meus pais me levassem uma bomba anti-asma que eu tinha deixado com eles quando me casei e que nunca mais, até então precisara de usar - o que me foi autorizado.

Quando regressei à cela, tive então ocasião de conversar com o meu companheiro. Era um homem com mais de 50 anos, operário corticeiro e, por sinal, vestido de acordo com a sua profissão, um velho fato macaco, de ganga azul debotado por muito uso e muitas lavagens. Boa pessoa, mas um tanto rude. Lembro-me (coisa que a princípio me fez arregalar os olhos de incomodado espanto) que enquanto conversava comigo se peidava ruidosamente, com uma sem-cerimónia notável. Por outro lado, se o guarda se demorava a vir abrir-lhe a porta para ir à sanita - o que muitas vezes acontecia, com grande desespero nosso - ele não estava com meias medidas e fazia o que tinha a fazer num balde que tinha para o efeito, ali ao pé de mim, com o maior à-vontade deste mundo. Imagine-se o pivete, num cubículo fechado de tão exíguas dimensões.

A segunda noite foi igualmente passada em claro, pois embora de forma mais atenuada, a asma se mantinha. Aliás, já quando era mais novo, era sempre de noite, na cama, que os acessos asmáticos se manifestavam com maior intensidade.

Um terceiro dia se passou, apoquentado pela asma, sentado no horroroso bailique, mergulhado em permanente semi-obscuridade, sem espaço para me movimentar, sem um lápis para escrever, sem um livro para ler e sobretudo numa indescritível ansiedade sem saber o que pretendiam de mim.

Foi nessa noite que me vieram buscar...

_______________________________

Continua

1.13.2008

AQUELA NOITE...

Aquela noite...

Este era o subtítulo de um texto cujo o título principal era EROTIKUS MA NON TROPO, e que publiquei neste meu blogue no post de 13 de Maio de 2006.

Agora o Luis Gaspar resolveu pegar nele e emprestar-lhe a sonoridade da sua belíssima voz
e o talento habitual das suas interpretações, na secção "POEMAS ERÓTICOS" do seu "ESTÚDIO RAPOSA".

Pensei voltar a colocar aqui o texto, até porque, na altura da sua publicação, muitos dos meus actuais leitores não frequentavam ainda este blogue.

Porém, porque, não me sinto ainda com coragem para longas andanças na net, mas sobretudo porque a qualidade da interpretação do Luis Gaspar, se aprecia melhor ouvindo apenas a música das suas palavras, resolvi remeter-vos apenas paro texto dito, que podereis escutar e/ou guardar, em:
http://www.estudioraposa.com/index.php/11/01/2008/15-aquela-noite/

Aproveito para agradecer a todos o interesse manifestado pela minha saúde, renovando o pedido de desculpas por não o fazer individualmente

1.08.2008

PNEUMONIA

A TODOS OS AMIGOS/AS QUE ME VISITARAM NOS ÚLTIMOS DIAS,
PELO MENOS DESDE 26 DE DEZEMBRO,
E ME EXPRESSARAM VOTOS DE BOM ANO NOVO,
PEÇO ME SEJA RELEVADO O MEU SILÊNCIO,
POIS O MESMO SE DEVE A, DESDE ESSA DATA, ESTAR SOFRENDO DE SEVERA PNEUMONIA , CUJOS EFEITOS NÃO ME TÊM PERMITIDO ACEDER AO COMPUTADOR.
A TODOS OS MEUS AGRADECIMENTOS

12.20.2007

OS MEUS VOTOS DE NATAL

Foto baixada de
www.marcnorton.us/mediac/400_0/
com a devida vénia



OS MEUS VOTOS DE NATAL

Já o Natal aí vem
Já está tudo iluminado
Todo o mundo anda contente
Mas por demais sabe a gente
Como isto está tudo errado

Vivem uns na opulência
E a outros tudo escasseia
Cultiva-se a arrogância
E a cupidez, a ganância
Por todo o lado campeia

As bocas falam de amor
Mas só ódio é que se vê
Em vez de paz é a guerra
Que impera por toda a Terra
E sem se saber porquê

A honra é palavra vã
Ideais já ninguém tem
É ver quem mais se “abotoa”
Que importa a quem isso doa...
Que grandes filhos da mãe!

Todos acham que a razão
Está sempre do seu lado
Eu sou “o bom”, tu “o mau”
Eu tenho o pão e o pau
Tu vais ser exterminado

Matam alguns por Alá,
Por Buda ou por Jeová
E outros pelo Deus cristão
Mas o nome verdadeiro
Do seu deus, “tão justiceiro”,
É o supremo deus “Milhão”

Em sonhos eu alimento,
Ai de mim, esperanças vãs,
De um dia quando acordar
Já não haver mais lugar
P’ra Bushes nem Talibãs

De não haver já “bons” e “maus”
E de o mundo ser capaz
De viver de forma tal
Que a palavra Natal
Signifique apenas: PAZ!
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Fiz este versos no natal de 2002.
Mantém a mesma actualiade
Renovo por isso os mesmos votos
_________________________________
Veja também o meu otro blogue

12.08.2007

PARA ALÉM DA MORTE...

MEMÓRIAS DE MOSCAVIDEDOS MEUS VINTE ANOS

(Ou a estúpida maneira de viver de uma juventude desocupada, nos anos cinzentos da ditadura, que outra não tinha para nos oferecer)

Naquele tempo – refiro-me ao fim dos anos quarenta, princípios de cinquenta - por volta dos meus vinte anos - os jovens, designadamente os de Moscavide, não tinham muito onde se divertir.

A televisão ainda não tinha chegado ao nosso país. Computador, play-station, game-boy, walkman, internet, DVD, MP3, e outras ofertas da actual tecnologia, que qualquer puto conhece, domina e não dispensa mesmo, eram coisas que nem sequer como palavras existiam.

Droga, era outra palavra que de todo não fazia parte do nosso vocabulário, a não ser para designar produtos de drogaria - as simpáticas e coloridas lojas hoje em vias de extinção - onde eu ia comprar petróleo, bolas de naftalina ou cloreto de potássio, a pedido de minha mãe, ou brilhantina e laminas nacet para meu uso pessoal, e onde eu, aliás, ia sempre de bom grado, quanto mais não fosse para ter a oportunidade de ver a eleita do meu coração, que era caixa da “Drogaria Leitão”, embora para isso tivesse de ignorar a “Drogaria Fénix”, a que mais perto ficava de minha casa.

Então como é que a malta se entretinha nesses desprovidos e recuados tempos?
Na parte da manhã, os que tinham mais vagar, iam até à chamada praça, uma correnteza de barracas mal amanhadas, com uma enorme palmeira ao meio, implantadas no centro da Rua Artur Ferreira da Silva, logo a seguir ao chafariz público – nas quais funcionava o único mercado de peixe, hortaliças, fruta, ovos, criação, etc, então existente em Moscavide.
Era aquele o lugar mais indicado para encontrar, apreciar e eventualmente abordar ou mimosear com piropos – de muito mau gosto quase sempre, diga-se - o mulherame que vinha às compras para o almoço ou abastecer-se de água para variados usos domésticos, já que durante o resto do dia dificilmente voltariam ser vistas na rua e quando muito entrevistas à janela, ou espreitando por detrás das cortinas.

Na parte da tarde, ou se ia ao banho no rio, no Verão quando o calor apertava, ou se ia para a sombra das árvores do “taludo” contar histórias, ou se coçava o cu pelas cadeiras do Café do “Britinho das garotas”, ou se jogava matraquilhos no pátio do Salgado, ou em qualquer outro dos inúmeros tascos que então ali existiam, ou se ia até ao “jardim”, onde se davam uns chutos numa bola que misteriosamente sempre aparecia, vinda não se sabe de onde, ou que expeditamente se improvisava, nem que fosse com uma embalagem de lata vazia.


Na verdade, o espaço que pomposamente todos designavam por jardim não passava, na altura, de um vasto rectângulo pelado, de terra batida, com ervas e urtigas crescendo nos sítios menos pisados, e ladeado de plátanos – os mesmos que ainda hoje lá se encontram – plantados em 1940, numa cerimónia tão ao gosto do chamado Estado Novo, que então comemorava com festivos eventos ao longo de todo o país o 8º centenário da proclamação da independência, dos quais o mais notável era a Exposição do Mundo Português, a qual teve para o ego dos portugas o mesmo sabor que a recente e aclamada Expo 98.


Parece-me estar a ver ainda a cerimónia da plantação desses plátanos: A clássica e eterna figura de uma qualquer entidade oficial a deitar umas pazadas de terra sobre as raízes das frágeis e esguias vergônteas em covas que outros anteriormente tinham suado a abrir (o costume!): o estrelejar de foguetes, a estridência dos clarins dos bombeiros, as bandeiras das colectividades e a garotada das escolas, de braço estendido na saudação fascista recentemente introduzida pelo doutor Salazar e cantando, fora de tom e cada um para seu lado, o “Lá vamos cantando e rindo” de execrável memória... Uma festa! E nós, os putos, “na maior”, pois não tivemos aulas nesse dia.


Diga-se de passagem que, apesar de nas paradas e na escola cantarem o hino da Mocidade Portuguesa que tinham obrigatoriamente de aprender, os putos não andavam a dormir na forma, pois entre eles, à socapa, se entretinham a recitar uma quadra então em voga, a qual levaria certamente à prisão se dita por uma adulto e ouvida por um agente da PVDE (era esta a sigla que então designava a polícia política ) ou de um dos muitos bufos ao seu serviço e que era assim: O António há-de morrer/ A Oliveira há-de secar/ O Sal há-de derreter/ E o azar há-de acabar.
Infelizmente a ingénua profecia tardou em cumprir-se e só muito mais anos mais tarde o nosso azar iria conhecer o tão ansiado fim .


Mais jovens do que eu, ainda lá estão os plátanos que, em menino, vi plantar.


Agora, uma dezena de anos depois, lá andavam, mais crescidinhos, os putos de então, matando o tempo, enquanto não acabam os estudos ou ainda não arranjaram emprego, aos chutos na bola, à espera do jardim que só anos mais tarde viria a ser desenhado e implantado e cuja traça foi recentemente alterada – para pior, na opinião de alguns, que não da minha.


De quando em vez ali se montavam circos, cujos espectáculos ninguém se permitia perder, dada a escassez de divertimentos de que venho falando. Certa ocasião foi ali improvisada uma praça de touros, onde entre outros actuou o famoso matador Diamantino Viseu e um jovem da terra o Victor barbeiro que, de acordo com a máxima de que “ninguém é profeta na sua terra”, não escapou a ser alvo de chacotas e “olés”, que tinham mais de troça do que de aplauso.
Mais frequentes, no entanto eram a rodas de cavalinhos, os carrosséis ou, mais tarde, pistas de carrinhos de choque e sobretudo barracas de tiro, onde a malta exercitava a pontaria a partir cacos ou a tentar acertar numa minúscula paleta de metal que, ao ser atingida, desencadeava um mecanismo susceptível de provocar uma pequena explosão cujo estampido se assemelhava a um tiro de canhão - sendo “canhão”, precisamente, o nome porque era conhecido.


Verdade seja que, mais do que demonstrar as suas performances como atiradores, o que aliciava a rapaziada era a possibilidade de desfrutar o contacto com as empregadas – umas manhosas com montes de pintura a disfarçar as mazelas do rosto precocemente envelhecido, enquanto nos elanguesciam com remelosos e sabidos olhares e nos faziam boquinhas, no estudado e irrecusável convite “Ò querido vai um tirinho?”


E nós a “fazermo-nos de Lucas”, “que não sabíamos atirar” e ela fingindo acreditar e oferecendo-se para nos pegar na mãozinha a fim de nos guiar no jeito de pegar na arma e apoiar o cano no seu ombro, encostando seu rosto ao nosso, enquanto nós, “para maior segurança”, com o braço esquerdo a enlaçávamos pela cintura.

Enfim, um estudado jogo de sedução (meramente profissional da parte dela, mas irrelevante para quem tinha 20 anos e raras ocasiões de contacto físico com elementos do sexo feminino) susceptível de nos provocar um elevado grau de excitação que, não poucas vezes, conhecia o seu epílogo em aprazados encontros em qualquer descampado das vizinhanças, de onde se regressava com a roupa suja de terra e cheias de praganas de feno ... e menos uns cobres no magro porta-moedas


A propósito de circos e de barracas de tiro, poucos haverá ainda em Moscavide que se lembrem que, antes de haver o tal quadrilátero, doado pela família Patacão para a construção do jardim, o espaço onde se instalavam essas diversões era um terreiro situado no centro mesmo da freguesia, no cruzamento da Rua António Luís Moreira (actual Rua Salvador Allende) com a a Rua Artur Ferreira da Silva e que a seguir esse descampado, para o lado norte, havia uma fábrica de cartuchos e uma fábrica de champanhe, e que no lado nascente, a caminho do "apeadeiro", se situava a "Vivenda Felicidade" - uma fila de casas térreas em cujo passeio havia uma bomba de água salobra, a qual, em vez de ser accionada pela habitual alavanca de movimento vertical - como várias outras que por lá existiam - a água era puxada através do movimento rotativo de uma enorme e pesada roda de ferro - o que constituía uma permanente e ruidosa brincadeira para a garotada e dava motivo a constantes ralhos, quando não algum tabefe, por parte dos moradores.


E o Carnaval? Quem é que, no Moscavide de hoje, consegue acreditar que nos primeiros anos da década de cinquenta, nos Domingos e Terças-feiras de Carnaval, a Avenida, de forma absolutamente espontânea e improvisada, se enchia com muitos milhares de foliões mascarados, momos, marafonas, em brincadeiras hilariantes, e ao longo de todo o seu percurso se travavam frenéticas e aguerridas batalhas de serpentinas, saquinhos, água, milho, ovos, farinha entre os transeuntes e os moradores e sobretudo as moradoras que se acumulavam, aos grupos, nas janelas, varandas e terraços dos prédios circunvizinhos, até que a noite caía e as pessoas se recolhiam para jantar e prepararem-se para continuar a festa em bailes particulares ou em colectividades, cinemas e outras casas de diversão?


Pois acreditem que era mesmo assim. E duvido que houvesse no país um carnaval, "não-organizado", tão divertido e que juntasse tanta gente no mesmo local, como o de Moscavide nesses tempos.


Mas voltando aos divertimentos dos jovens, tirando os extras e ocasionais que atrás referi, durante a noite, ou se continuava a surrar as calças (que nesse tempo era de bom tom manter impecavelmente vincadas) nas cadeiras de um Café, ou se iam papar dois filmes seguidos no cinema do Raul Antunes, ou se ia namorar, à janela, claro, que o respeitinho era muito lindo (e felizes os que dispunham de uma janela rasteirinha, furtando-se assim aos inevitáveis e dolorosos torcicolos que as janelas dos andares mais altos provocavam), ou se corriam as “capelinhas” bebendo um copo aqui outro além, ou se ia a um dos muitos pátios ou quintais então existentes provar a água-pé de um amigo, a qual convinha repetida e calorosamente elogiar como “a melhor que se tinha provado naquele ano”, ou se ia comer umas postas de Bacalhau assado nas “Portas Verdes” ali ao "sobe-e-desce", quando a disposição não dava mesmo para ir até ao Gajeiro, em Sacavém, mesmo em frente ao portão da Fabrica da Louça, o qual tinha merecida fama e justo proveito de servir uma das versões grelhadas do fiel-amigo mais apetecíveis da região.
Meu deus, onde é que isso tudo já vai!


Nas noites mais quentes de Verão toda a gente vinha para a rua. A Avenida, onde raramente a essas horas passava um carro e que quando passava tinha de aguentar pianinho, pois ninguém se desviava, enchia-se de grupos de raparigas que, abraçadas que se passeavam, rua abaixo rua acima, seguidas por grupos de rapazes que lhes atiravam piropos que lhes provocavam risinhos e galhofas, até que a noite começava a refrescar, as jovens se recolhiam e a malta regressava à pasmaceira dos Cafés, jogar poker, bilhar, trocar impressões sobre as miúdas, discutir se a Amália Rodrigues era melhor que a Hermínia Silva, se o Peyroteu era melhor ou pior que o Espírito Santo, se o Diamantino Viseu toureava melhor que o Manuel dos Santos, se o Alberto Ribeiro era ou não larilas, e outras instrutivas e brilhantes conversas sobre temas parecidos ou afins.


No Café do Britinho, onde o serviço era assegurado por mulheres jovens, por quem todos, sem excepção, estavam sempre torridamente apaixonados e todos, por igual, se julgavam inteiramente retribuídos (ai as peneiras daquela idade!) havia uma máquina automática de discos, que nos debitava ininterruptamente e em altos decibéis (vocábulo aqui usado para impressionar, mas que na altura nos era totalmente desconhecido) a voz dos cantores da época: O Bing Crosby, o Frank Sinatra, o Dick Farney (Copacabana és princesinha do mar) o Luís Gonzaga, a Cármen Miranda e outras que tais brasileiradas, além da Amália, da Hermínia do Alberto Ribeiro, do Max – alguns dos nomes portugueses então mais badalados.


Aos Domingos, havia as matinés no Clube Familiar Moscavidense, carinhosamente designado por “Familiar” - ocasião rara para se conhecerem miúdas e se arranjarem namoricos de onde saíam alguns casamentos e não poucos engates ocasionais, sobretudo com frequentadoras estranhas à terra e que corriam os bailes das colectividades de recreio, precisamente como forma de valorização curricular das suas apuradas técnicas de engate.


No Carnaval e em certas ocasiões especiais – “Noite da Primavera”, “Noite do Perfume” e outras (recordo particularmente estas porque, fazendo parte de uma das Direcções, tive papel directo na sua organização) – havia bailes que duravam até ser dia, ou récitas onde os amadores do Clube representavam hilariantes comédias ou pungentes dramalhões, que acabavam também por ser seguidos de baile durante o resto da noite, só interrompido, volta não volta, com o imperativo convite de “Damas ao bufete” por parte do animador de serviço. Era esta uma forma expedita de, numa irrecusável demonstração de “cavalheirismo”, obrigar a malta, tesa quase sempre, a abrir os magros cordões à bolsa e deixar mais uns cobres na caixa do bar, onde o “Zé Formiga” confeccionava as suas apetitosas bifanas e sanduíches várias e o Arménio Silva, tesoureiro do Cube, impingia a variada gama de pastelaria do Café Viseu, de que era proprietário.


Foi com o mestre “Zé Formiga” (José Caetano de seu nome) que eu aprendi o truque de fazer sandes de fiambre com manteiga sem que o pão sequer a cheirasse. Então era assim: passava-se o gume da faca pelo pacote da manteiga, de forma a que o “cliente” constatasse que esta vinha bem guarnecida do apreciado lacticínio e de seguida, com rapidez, destreza e demonstração de grande virtuosismo profissional, barravam-se repetidamente as duas metades da carcaça (que então se chamava papo-seco, tomem nota) apenas com as costas da dita faca, onde a manteiga se mantinha praticamente intacta e o pão se quedava, praticamente, com a única gordura que o fiambre lhe emprestava. Enquanto isto, convinha ir entretendo o “cliente” com divertidas chalaças (e o Zé Formiga era mestre nisso) e terminar com um complacente “toma lá e não digas que vais daqui. Olha que isto é uma sandes para amigos”.

Ora! Acompanhada de um copázio de tinto carrascão (era o que a malta bebia nesses recuados tempos) aquela sandes especial escorregava pela goela que era um ver-se-te-avias. Era tudo a bem do Clube! E a verdade é que foram carolas como ele, como o Manuel Soares, como o Sargento Faria e tantos outros que mantiveram acesa a chama do associativismo recreativo, numa época em que essa era uma das poucas maneiras de as pessoas se encontrarem e conviverem ultrapassando o cinzentismo de um dia-a-dia sem grandes horizontes, mas também de se cultivarem e mesmo, em muitos casos, de se organizarem e conspirarem contra o regime

Grande "Zé Formiga"! Tivesse-me eu dedicado à mui nobre e respeitável actividade da exploração comercial de secos e molhados, e hoje pediria meças ao Belmiro de Azevedo, mercê dos teus sábios ensinamentos de economia aplicada, em vez do pé-rapado que realmente sou. Azares!


Em toda a parte e em todos os tempos os jovens têm uma natural inclinação para constituir grupos próprios, com hábitos comuns, tiques comuns, frequência conjunta dos mesmos lugares (curtir em conjunto, como agora se diz) .. enfim uma espécie de clã, com regras e códigos de comportamento próprios e um espírito de fraternidade mais forte ainda do que a que reina normalmente entre irmãos – o que os leva a imaginar que tal espírito se irá prolongar pela vida fora. Quanta ilusão!


O meu grupo, que nós designávamos sempre como “a Malta”, além de não fugir à regra, porque era constituído, na sua maioria por antigos escuteiros, com uma convivência diária que datava de mais verdes anos, era, por tal motivo um dos mais numerosos e coesos que então malandravam pelos dias e pelas noites de Moscavide. Tanto assim que, passado mais de meio século, continuam a encontrar-se e a celebrar essa velha amizade, na noite de São Martinho, todos os anos, sem nunca falhar (os sobreviventes, claro) e sem nenhum aviso ou convocatória, além da que consta do juramento que se fez no longínquo São Martinho de 1950. É o chamado “Grupo do Crisântemo”, a que já em outros escritos me tenho referi.


Ora, desse grupo, eu era seguramente o mais assíduo frequentador de cinema, de que sempre gostei e tanto que viria a ser, posteriormente, fervoroso adepto do movimento cine-clubista.

Certa noite, ao regressar do Cinema, com o papinho confortado com a fruição dos dois filmes (dois) da praxe, além de um documentário ou jornal de actualidades e de um desenho animado – o menu completo que nunca falhava nos cinemas ditos de reprise - deparo com cinco elementos do meu clã, cada um mais bêbedo do que o outro, em ruidoso conclave junto à porta do Café Viseu (de saudosa memória) – o qual nunca tinha pressa de fechar e por muito tarde que o cinema acabasse, havia a certeza de o encontrar ainda aberto.


Mal me descortinaram, logo, num tom de voz de que nem eles se davam conta que fosse tão elevado face ao adiantado da hora, logo começaram a chamar-me para os iluminar com a minha abalizada opinião (não andara eu no seminário?) sobre o tema transcendente que – com a proverbial e pertinaz teimosia dos bêbedos – vinham há horas discutindo: “O que é que há para além da morte?”
Estou feito, pensei. Mas logo uma ideia me ocorreu: Entrei no Café, cheguei-me ao balcão dirigi-me ao Eduardo, genro do proprietário, o Arménio Silva e encomendei 6 taças grandes de vinho branco. Não era essa a minha cor preferida para consumo do aprecado nectar mas era a única que a lei permitia fosse vendida em Cafés e Leitarias.


Os meus amigos, que entretanto tinham entrado atrás de mim na expectativa de conhecer a minha teoria sobre as suas esotéricas preocupações, preparavam-se para emborcar - no estado em que estavam mais um menos um tanto lhes fazia – uma dos taças que cada um pensava corresponder-lhe, das seis alinhados em cima do balcão, quando eu peremptoriamente os desiludi: “Alto aí! Vocês já têm a vossa conta. Estes são todos para mim” E um após um, perante o olhar incrédulo do bom do Eduardo e indiferente aos veementes protestos dos meus indignados amigos, virei, estoicamente, os seis intermináveis copázios.
Virei-me então para os insuspeitados, e expectantes pesquisadores dos mistérios do Além e já então em posição de justa igualdade, desafiei: “ora vamos lá agora discutir o que há para além da morte”


Foi uma discussão tão viva, tão profunda, tão avinhada, que acabámos todos no 100 da Rua do Mundo[1], de onde saímos raiava já o dia, com as carteiras mais vazias, a boca a saber a papel de música, tremendas dores de cabeça, e a sensação de que sabíamos um pouco menos sobre os mistérios do Além, do que na noite anterior quando nos encontráramos à porta do inestimável Café Viseu.
Queridos Amigos dessa noite e de muitas outras noites e dias da nossa juventude, vós os que já passastes a fronteira para o lado de lá daquilo que a por cá chamamos vida, será que sabereis agora responder às questões que nessa noite nos apoquentavam?


Julgo bem que não. Mas mas se souberdes, Amigos, e se houver mesmo algo para além da morte (do que tenho cada vez mais dúvidas) guardai-me um lugar à mesa de um dos Cafés aí do sítio, talvez no Café “Cantinho do Paraíso”, para em amena cavaqueira, no decorrer de umas partidas de poker, me contardes as vossas descobertas, me pordes ao corrente de como se passam as coisas por aí, e nos rirmos dos disparates que fizemos no breve tempo que nos foi dado morar por cá, no minúsculo pátio-térreo perdido na imensidão do infinito espaço sideral.
Até breve, Amigos! Logo, logo, estaremos juntos.
Como dantes…

______________

[1] Casa de “meninas” muito conhecida na antiga Rua do Mundo que, apesar de na altura já ter oficialmente o nome de Rua da Misericórdia, ainda a maioria das pessoas designava por Rua do Mundo .

12.07.2007

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