ESCRITOS OUTONAIS

3.18.2006

A VIOLETA

Quando chegou, foi uma alegria para todos. A casa encheu-se com a sua irrequietude, a sua alegria, a sua graciosa vivacidade. Meus Pais adoravam-na e eu os meus irmãos disputávamos a sua companhia e o seu afecto, mas era a mim que ela preferia. Ia-me esperar ao fundo da íngreme escada de madeira, mal me pressentia, e era a correr à minha frente que subia as duas dúzias de degraus carunchosos que davam acesso directo à cozinha.
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É verdade. A cozinha era a sala de entrada na casa. Ali ficava também o tanque de lavar a roupa e havia um pequeno desvão onde ficava a retrete, cuja porta era apenas um simples cortina de chita; a seguir, uma outra peça que servia de sala de jantar, sala de estar, oficina de trabalho do nosso Pai, atelier de costura da nossa Mãe, e quarto improvisado num recanto abaulado do tecto; e por último o quarto de dormir dos Pais, onde havia ainda uma cama para os mais novos e onde também, por ser o local mais reservado e o único que possuía uma porta, se tomava, à vez, o banho semanal num enorme alguidar onde se deitava previamente uma panelada de água quente, temperada a gosto com outra de água fria. Aos mais pequenos era obviamente a Mãe que os desencascava com uma espoja dura e um pedaço de sabão azul e branco, ignorando a choradeira e os protestos dos inveterados e renitentes aquófobos.
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Escusado será dizer que toda água que se consumia em casa, para os banhos, para lavagem, no tanque, das infindáveis trouxas de roupa suja que a galfarragem diariamente produzia, para deitar na retrete de cada vez que era utilizada, para fazer a comida e para beber, era acarretada às costas, em bilhas de barro, do chafariz público que ficava a uns duzentos ou trezentos metros de distância. Uma fase houve em que, sendo os outros mais pequenos e o mais velho passasse já muito tempo fora, a trabalhar ou à procura de emprego, era a mim que cabia o todo o fornecimento de água necessário, pelo que os meus casacos andavam permanentemente rotos num dos ombros, devido ao roçar da bilha de barro nas sua viagens casa –chafariz- chafariz – casa, num vaivém interminável.
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Esta tinha sido a casa –um velho sótão - que os meus pais tinham conseguido alugar aquando da nossa chegada a ”Lisboa”, vindos da nossa distante aldeia transmontana. A Lisboa pensávamos nós, pois era com essa designação genérica que na nossa mente e nas conversas com os vizinhos nos referíamos ao local idealizado, o sonhado destino de chegada: Lisboa, a capital – onde tudo seriam facilidades e a nossa vida seria um mar de rosas, por oposição à vida dura das berças que deixávamos. Afinal era em Moscavide, um pobre subúrbio, então, que se situava o modesto sótão que nos acolheu. Quanto mais dignidade tinha, afinal, a nossa típica casa aldeã com paredes de xisto, do que esta espécie de água furtada, incaracterística e sem alma.”
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Quando ali nos instalamos éramos apenas cinco: Os nossos pais, o Zé, o mais velho, eu a seguir, e o Tino, o mais novo.. O Lau só chegaria um ano depois. Tudo galfarros, como se vê e agora mais uma boca para alimentar. Era apenas mais um. Bastava que se acrescentasse mais um púcaro de água à sopa e se migasse mais um punhado de couves, que o pai fizesse mais um ou dois pares de sapatos e que a mãe fizesse mais umas bainhas nuns quantos lençóis ou uns bordados de pé-flor em meia dúzia de fronhas. E a vida continuou, nem boa nem má, antes pelo contrário. Agora, no dia em que, três anos mais tarde, a Violeta apareceu, meus amigos, foi uma festa lá em casa. Todos de volta daquela coisinha fofa, todos apaparicando-a, todos descobrindo uma gracinha nova que fizesse, todos a salientarem o crescimento que se lhe notasse a cada dia que passava.
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Por essa altura, além de não termos água canalizada, não tínhamos rádio, nem electricidade tão pouco. Durante o dia a galfarragem não tinha tempo nem motivo para se preocupar com isso, pois o passava inteirinho na rua, jogando o bilas, o pião a macaca e toda a espécie de jogos com que então se entretinha a malta miúda. Mas à noite, depois do jantar, que ocorria quase sempre por volta das sete, ali ficávamos todos feitos zombies, sem nada para fazer, â volta da luz pálida e bruxuleante do candeeiro de petróleo que fedia quando os bicos da torcida não se encontravam devidamente aparados.
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Nem brincar podíamos, pois o Pai, que além de trabalhar o dia inteiro na oficina ainda trazia trabalho para casa, não tinha paciência para aturar o chinfrim das disputas em que terminavam, quase sempre as nossas brincadeiras. Aí, logo ele se levantava para impor a sua rigorosa disciplina e de tal modo sabia aliar a teoria à prática, que à frase “levas um sopapo” correspondia a um imediato sopapo a cair-nos no lombo. Aquilo era chapada num, nalgada noutro, puxão de orelhas noutro ainda – tudo distribuído, diga-se, de forma a que ninguém pudesse pôr em causa a democraticidade do avio.
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E lá ficávamos encolhidos a um canto, mudos que nem ratos, receosos de concitar de novo o mau humor do nosso impaciente progenitor. A nossa quietude, porém, durava muito pouco tempo. À sorrelfa lá se iam aplicando uns beliscões e umas sapatadas, até que de novo recomeçava a generosa distribuição de tabefes a que nenhum era poupado. Ainda aguentávamos mais um tempinho, rindo da sombras gigantescas que o candeeiro projectava das nossas silhuetas, mas logo chegava o doutor pestana e por voltas nove já estava tudo em vale de lençóis.
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Mas quando ela chegou, tudo passou a ser diferente. O Pai humanizou-se e tinha para com ela a paciência e as atenções que lhe faltavam para com os rapazes. Aceitava memo que lhe desarrumasse as ferramentas ou lhe escondesse a peça de trabalho que tinha entre mãos. A Mãe, embevecia-se com ela e prodigalizava-lhe mimos e carícias jamais vistos lá em casa e para a garotada, então, a sua vinda tinha sido uma autêntica sorte grande.
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Os serões passaram a ter outra animação, todos rindo e aplaudindo as suas traquinices. Passou a haver menos bulhas e consequente diminuição de tabefes e até o sono passou a chegar mais tarde. Por seu lado, os dias também ganharam outro motivo de interesse, pois saía à rua sem e a levar, Aliás nem era preciso convida-la que ela mal se apercebendo que algum de nós se preparava para sair, perfilava-se logo para lhe fazer companhia . Pode parecer pretensão da minha parte, mas, como já referi, acho que ela tinha um predilecção especial por mim. De estranhar seria que assim não acontecesse, já que eu era o que disponibilizava mais tempo para lhe dar atenção, e o que mais brincava com ela. Ensinava-lhe a fazer momices e gracinhas e fui eu que conseguisse que ela andasse de pé, sozinha, sem ninguém a ampara-la. Era a mim que ela tentava defender quando algum dos outros me atacava, a sério ou a brincar, tanto que alguns amigos, achando-lhe piada, muitas vezes fingiam bater-me ou derrubar-me, só para ver a sua reacção em minha defesa
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Por isso corria para mim sempre que me via , saltava-me para o colo, logo que me sentava e ali adormecia muita vezes, não em disputas e cenas de ciúmes dos outro galfarros. Resumindo, ela era uma bênção, uma mais valia para uma família recém chegada da província, desenraizada ainda da maneira de viver e de sentir da malha social envolvente.
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Certo dia, alguém bateu à porta, com estrondo. O Pai foi abrir. Os dois homens de fato de macaco e boné de pala que se apresentaram, inquiriram sem mais preâmbulos: Onde é que ela está? Vimo-la entrar para aqui. Mas viram o quê, o que é que vocês querem, afinal?. Queremos leva-la. Já lhe tínhamos deitado a mão, mas ela deitou-se a nós, arranhou-nos e escapuliu-se. Vimo-la entrar para aqui. Faça o favor de a entregar. O Pai, discutiu, barafustou, mimou-os com um chorrilho de vernáculos vocábulos, o que levou a Mãe pedir-lhe moderação por causa das crianças - como se as crianças não os conhecessem todos e muitos mais.
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Foi então que ela, que assustada se escondera num recanto do sótão, como que pressentindo os problemas que a sua fuga e a recusa do nosso Pai em não a entregar nos iria acarretar, levantou-se do seu canto, envolveu-nos um a um com um olhar triste, desceu as escadas a correr e enquanto o pai ainda reafirmava mais uma vez a sua intenção de não a entregar, passou-lhe por entre as pernas, driblou os homens que a reclamavam e desatou a correr rua fora.
Baldado esforço. Os homens tinha estendido a toda a largura da rua uma rede, de cujas malhas não conseguiu escapar, sendo levada de imediato para a carroça camarária que de quando em vês aparecia para recolher os cães encontrados na rua sem coleira e sem licença.
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Durante todo o dia o nosso pai se manteve de rosto fechado, enquanto a mãe e os galfarros choraram e berraram como Madalenas arrependidas.
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Minha pobre Violeta! O seu destino terá sido certamente, o habitual nestes casos, que era servir de alimento às feras do Jardim Zoológico. Nos meses e anos que se seguiram, sempre que via um cãozinho com a sua estatura, o seu pelo longo, o seu focinhito aguçado, a sua cauda em pluma, a sua estela preta na testa, o coração se me alvoroçava e a boca se abria para pronunciar em alta e excitada voz, o chamamento que, a ser correspondido, me proporcionaria um prazer que ninguém, ninguém pode fazer ideia da sua medida.
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Diz-se que numa infância feliz há sempre a história de um cão. Na minha, assim aconteceu. O cão da minha infância era esta cadelinha gentil, que baptizámos de Violeta. Já perdi tantos amigos, tantos conhecidos ao longo da minha vida, que de alguns já nem me lembro ou deles guardo, quando muito, esbatidas e vagas reminiscências. Pois acreditam que quase não se passa um dia sem que me lembre da Violeta? E ainda hoje, agora com setenta e sete anos que os faço hoje, sempre que vejo um cãozito com as característica que referi, não grito, porque parecia mal na minha idade mas chamo, baixinho, só para mim Violeta, Violeta…

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Almada, 15 de Março de 2006

3.16.2006

DIVERSOS

A infâmia

Afinal quem são os terroristas? Como é possível um Estado que se diz democrático e que os americanos tanto apoiam, ir a um Estado vizinho, com tanques, helicópteros, canhões, atacar e destruir uma prisão onde se encontram detidos, e à guarda de uma força internacional, vários cidadãos que aguardam decisão judicial a decidir por acordo previamente estabelecido, raptar esses cidadãos, e leva-los, ainda por cima de uma forma humilhante, nus, despersonalizados, ridicularizados, numa manifestação de prepotência, arrogância e selvajeria, gratuitas?

Pois foi o que Israel fez na prisão de Jericó em pleno território palestiniano, com a conivência de americanos e ingleses que, tendo a seu cargo a guarda de prisão e a segurança dos detidos, abandonaram os seus postos deixando uma e outros à mercê dos bárbaros e criminosos invasores. “Crime imperdoável”, assim classifica o Presidente da Autoridade Palestiniana este acto de pirataria, ao mesmo tempo que denuncia o evidente conluio entre Telavive, Washington e Londres. Aliás é o próprio Ehud Olmert, o substituto de Sharon, que garante ter recebido total apoio dos EUA e do Reino Unido para realizar esta operação.
E era preciso dizer?

Onde está o valor dos acordos internacionais? Onde está a isenção dos países que se arrogam de campeões da democracia? Até quando vai o resto do mundo deixar-se de piedosas críticas e meter na ordem, de uma vez por todas, o estado de Israel – principal fonte de agitação e instabilidade no Médio Oriente?
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Os Sinais

Conservadores dominam Belém
Título de artigo no DN

Assim é, com efeito. Os nomes do conselheiros da Presidência da República e agora os do Conselho de Estado revelam bem qual vai ser o estilo de actuação do novo Presidente da República. Pela primeira vez o Partido Comunista – a terceira força representada na Assembleia da República não faz parte deste Conselho.
É a esquerda a ser afastada de qualquer contacto com a Presidência Então e o PS? Pois sim.
Não é surpresa. Era isto mesmo que se temia
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A Crise nos Partidos de Direita

É um facto. Apesar do direitista Cavaco ter ganho as eleições, os partidos de direita, PSD e CDS atravessam uma fase de apagada e vil tristeza, com problemas de liderança e incapacidade de uma oposição consequente ao governo. Pudera, com o PS no governo quem precisa de mais partidos de direita ? Nota-se alguma diferença entre a sua política económica e a do governo de Durão Barroso e da sua super-ministra, Ferreira Leite?
Só com uma lupa e há-de ser muito potente.
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O que dão as pressas

A propósito do encerramento de maternidades e envio de grávidas para outros hospitais, lê-se no DN de hoje:
Hospitais não foram avisados. Os hospitais que vão receber mais grávidas apenas souberam do facto pelos media. E pedem reforços de pessoal e mais dinheiro. Até porque os contratos-programa assinados no início do ano não previam este fluxo adicional de utentes.

Pois é, uma coisa é a retórica na Televisão outra a realidade dos factos.Eu, por mim desconfio sempre.
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Os Óscares


3.12.2006

DIMITRI, O RUSSO MELANCÓLICO


Chegou já lá vão cinco anos. Chegou de noite, por sinal a última de 1999. Estava toda a gente demasiado entretida com o virar do milénio, uns festejando outros receosos dos males que alguns profetas da desgraça haviam vaticinado para aquela noite. Eram doze, todos emigrantes clandestinos, como ele, todos, como ele, provenientes de países de Leste. Desembarcaram numa praia deserta da costa algarvia, mortos de fome, após vários dias amontoados no porão do cargueiro, que logo se pôs ao largo, mal que recolhido o escaler que os desembarcou no areal.
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Ali ficaram acocorados e tremendo de frio aguardando a chegada dos contactos que os haviam de receber. Só passada mais de uma hora chegaram. Eram dois, numa carrinha de caixa fechada, ambos com um ar de meter medo ao mais afoito. A primeira coisa que fizeram foi exigir-lhes mais uns dólares a juntar aos que já lhes haviam esmifrado no início da viagem, em Salónica, convictos de que seria tudo o que teriam de pagar. Um deles, um moldavo, porque já não tivesse mais dinheiro ou porque não concordasse com a inesperada exigência, recusou-se a pagar e, em desespero, atirou-se a um deles. Foi logo, liminarmente abatido. Isto é para vocês aprenderem, disse o mais novo dos mafiosos. A partir de agora vocês pertencem-nos. Nós arranjamos-vos trabalho, vocês pagam-nos uma percentagem e andam na linha connosco. E é se se querem dar bem. Tudo isto, obviamente, dito em russo, idioma que todos dominavam
O moldavo lá ficou de borco, no areal e os restantes depois de pagarem os dólares exigidos, seguiram amontoados na carrinha com destino a um velho armazém, de onde no dia seguinte foram levados para sítios diferentes para trabalhos de construção civil em obras diversas.
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Tractorista na granja colectiva da sua aldeia natal, pequena povoação situada nas margens do Volga, perto de Ullianov, Dimitri (é o seu nome) não podia aqui exercer a sua profissão pois para tal lhe faltavam os documentos que legalizassem a licença de condução de ligeiros e pesados que utilizava no seu país. Restou-lhe, pois, abrir caboucos, vergar ferro e trabalhar como servente de pedreiro – coisa a que também na sua terra se ajeitava, quer nas reparação da sua própria casa quer nas de outros vizinhos e cooperantes da granja colectiva. Trabalhou em diversas obras nos sítios mais diversos da costa algaravia e mesmo do litoral alentejano. Bastava chegar um outro emigrante mais inexperiente e mais facilmente ludibriado, para ser despedido e procurar trabalho noutra obra. Quem nunca lhe perdia o norte era a organização mafiosa que o tinha recebido.
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Os seus companheiros de viagem que nos primeiros meses tinham permanecido na zona, aos poucos foram sendo levados para outros pontos distantes, pensava ele, pois acabou por deixar de vê-los definitivamente. Nas diversas obras em que trabalhou não havia um critério uniforme de valorização do seu trabalho, pois o salário era sempre diferente, mas sempre igualmente baixo , de qualquer modo, sempre inferior ao dos seus colegas legalizados. Por vezes executava trabalhos de motorista mas apenas dentro do perímetro das obras, acarretando materiais ou manobrando escavadoras, mas o salário não era maior por isso . Muitas vezes chegava o fim do mês e nem um euro lhe pagavam. Prometiam que seria no mês seguinte e por vezes passavam-se quatro ou cinco meses sem ver a cor do dinheiro ou com parte apenas do salário prometido.
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A organização mafiosa essa é que não queria saber de misérias. Recebesse que não recebesse, alguém aparecia a cobrar-lhe a taxa estipulada. Eles sabiam sempre onde encontrá-lo. Assim quando pensava ter amealhado uns dinheiritos para voltar à sua aldeia, onde Olga, a sua jovem esposa, pacientemente aguardava o seu regresso e a esperança de melhores dias, a sua poupança voltava à estaca zero e com ela diminuía a esperança de voltar. Após três anos a trabalhar no Algarve foi arranjando trabalhos mais a norte, até chegar à zona da grande Lisboa onde agora trabalha, numa obra a norte do Tejo, residindo porém na margem sul para os lados da Cruz de Pau.
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Quando entrei no café, estavam as mesas todas ocupadas, quer no interior quer na esplanada rentinha ao rio e ao cais de embarque dos cacilheiros. Além de ocupadas a quase totalidade tinha mais que um cliente à sua volta. Pares de namorados, vadios, e sobretudo emigrantes dos países de leste, russos, ucranianos, moldavos, romenos, sei lá… Uma coisa era comum a todos eles: uma apetência notável por cerveja, dada a enorme quantidade de garrafas de que as mesas estavam repletas.
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Ele porém era dos poucos bebedores solitários. Tinha um ar melancólico e ausente. Porque a sua mesa era das poucas que dispunham de lugares vagos, pedi licença para me sentar à sua mesa. Aquiesceu com a cabeça, sem pronunciar uma palavra. Era um homem novo de trinta e poucos anos, alto, espadaúdo, de longos cabelos louros e uma pequena barbicha também loura e pontiaguda. Pareceu-me uma pessoa atormentada. Pela poucas palavras que proferiu, a chamar o empregado de mesa, pareceu-me que seria natural do leste europeu, talvez russo, e foi nesse idioma que lhe perguntei vi pa-rússki? (você é russo?) Da, da. Gavarit-vi pa-rússki? ( Sim, sim. Você fala russo?) estranhou ele. Niet. Ya tolhka nimnoga rússki slova zenaio (Não, Sei apenas algumas palavras russas). Também não era preciso que eu falasse russo para nos entendermos. Os russos têm uma capacidade notável de aprender a nossa língua e de a falar quase sem sotaque. Este era um deles, Falava o português correctamente, podendo, quando muito, ser confundido, por alguém menos atento a questões de pronúncia, como um provinciano ou português que tivesse vivido vários anos num país estrangeiro.
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Disse-lhe que já tinha estado no seu país, nos tempos da União Soviética. Aí, o rosto do homem, até então carregado, iluminou-se. Belos tempos! Éramos uma grande potência, o mundo respeitava-nos. E logo o rosto se fechou de novo. Agora somos uma merda, uma merda, concluiu com desalento, enquanto batia com as manápulas enormes em cima da mesa fazendo tilintar as garrafas vazias. Para afogar a mágoa que as suas próprias palavras lhe causavam pediu mais uma cerveja que esvaziou quase sem respirar e sem tirar a garrafa da boca.
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Convidou-me para o acompanhar, Não sou grande apreciador mas pedi também uma para criar ambiente. Falei-lhe, com simpatia da boa impressão que o seu país me tinha causado e ele começou a abrir-se em confidências e desabafos com uma amargura que os efeitos do álcool ampliavam talvez. Julgo que o facto de lhe falar com simpatia da União soviética lhe inspirou confiança. Muito provavelmente ninguém neste país o tinha feito antes, nem ele, de motu-proprio, se atreveria a abordar tal assunto. Foi então que me disse o nome e me contou, olhando para todos os lados, a cada palavra que proferia, os acontecimentos que, por conveniência do meu estilo narrativo, já tive ocasião de adiantar.
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As mesas mais próximas estavam ocupadas por casais de namorados e alguns rapazes com ar de drogados pouco interessados no que à sua volta se dizia ou fazia. Só ao fundo, numa mesa bastante afastada, dois ocupantes mal encarados olhavam fixamente para a nossa mesa, mas esses não podiam ouvir-nos.
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De seguida, Dimitri desatou a falar da sua aldeia e do seu percurso de vida e a cada cerveja que bebia, mais a língua se entaramelava e, paradoxalmente, mais o discurso fluía: E eu a ver, como num filme, a sua meninice feliz, os banhos no Volga com os companheiros, os mergulhos para apanhar peixes à mão, as armadilhas para captura de tordos e outras espécies as brincadeiras ao longo da vereda que levava às instalações da granja colectiva de que seu pai, comunista desde a juventude, era o director eleito e respeitado por todos os cooperantes, as canções, os jogos e as traquinices nos acampamentos de pioneiros, os tempos do Konsomol (juventude comunista), os namoricos, os bailes campestres no verão ou no salão da granja durante o Inverno, o seu namoro com Olga, os beijos trocados à sombra da velha macieira do quintal (ai o sabor daquelas maçãs, meu amigo!) as cerejeiras carregadinhas de rubros frutos, o trabalho em grupo nas sementeiras depois das primeiras chuvas, a alegria e azáfama das colheitas, se o ano era farto, a ida à cidade em dias de festa ou na parada anual na festa do dia da Vitória, todos em carros, carroças e tractores engalanados, ele todo ufano a conduzir o seu, carregado de jovens e enfeitado com grande profusão de bandeiras vermelhas, o orgulho pelas proezas espaciais soviéticas e pelas medalhas de ouro dos seus atletas nos jogos olímpicos…Era um orgulho pertencer a um país assim.
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E de repente tudo mudou. Tinha sido chamado dias antes para o serviço militar quando se deu o colapso da União Soviética e tudo virou uma bandalheira. Durante uns tempos a cooperativa ainda que com dificuldade lá se foi mantendo. Pouco a pouco, porém, os cooperantes desanimados foram-se retirando, procurando trabalho em fábricas e no que calhasse, longe da aldeia que aos poucos foram também abandonando, até que um grupo de poderosos oligarcas, autêntica máfia, apoderou, comprando ao desbarato as terras das cooperativas.
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Quando regressou da tropa os lugares da sua infância eram o espelho da desolação. O avô, herói condecorado da Guerra Pátria, tinha falecido de velhice e sobretudo de desgosto; o pai, desolado pela ruína de tudo o que ajudara a construir e sobretudo pelo ruir dos seus sonhos, enforcara-se numa trave do celeiro colectivo. Dimitri, permaneceu na aldeia, cultivando o quintal à volta da casa, e fazendo uns trabalhitos aqui e ali, quando calhava, apenas para fazer companhia e ajudar a mãe. O seu casamento com Olga foi feito sem qualquer cerimónia nem convidados. Apenas os pais dela e a mãe dele em cuja casa ficaram a morar. Quando a mãe faleceu, como não encontrava mais trabalho na zona combinaram que Olga fosse para casa dos pais enquanto ele partia para a cidade em busca de algo onde pudesse ganhar algum dinheiro para sustento da casa. Mas a vida estava difícil em todo o lado. Trabalhou em tudo o que lhe apareceu, mas os salários baixaram a um nível nunca visto. As rendas de casa que, durante o regime soviético tinham um preço quase simbólico, subiram assustadoramente, os bens de consumo, que naquela região sempre foram abundantes, desapareceram dos mercados arrebanhados por especuladores desenfreados, até que um dia se fartou e resolveu arranjar maneira de emigrar para um qualquer país do ocidente.
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Juntou penosamente algum dinheiro, à custa de muitas privações e muita fome, falou com Olga, que jurou esperar por ele, e entregou o seu destino a uma organização de passadores clandestinos que o levou até à Grécia, de onde embarcou, no Porto de Salónica, na viagem até à costa Algarvia, cujas peripécias já conhecemos. Agora cá, por cima, já ganhava melhor e apesar de continuar a ser sugado pela organização mafiosa já tinha conseguido juntar uns dinheiritos. Tudo isto me contou com uma raiva e uma mágoa incontidas, enquanto emborcava cervejas umas atrás das outras.
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Perguntei-lhe se já tinha tentado legalizar a sua situação junto das autoridades portuguesas, Como? se esses filhos de puta me tiraram todos os documentos? Entrou de seguida num estado de exaltação incontrolável. Eu quero que esses cabrões se fodam, estou farto, não aguento mais! e continuou com todo um chorrilho de palavrões que não ficavam atrás do vernáculo vocabulário de um qualquer gaiúlo dos mais rascas cá do burgo. Aliás, como toda a gente sabe os palavrões são os primeiríssimos vocábulos que os indígenas fazem questão de ensinar aos estrangeiros e que eles repetem, às vezes inconscientemente, apenas porque julgam estar a dizer uma coisa muito engraçada, visto que provocam a hilariedade de quem os ouve. As suas palavras e o tom exaltado com que eram ditas não passaram despercebidas aos dois sinistros personagens da mesa do fundo, que esticaram o pescoço, curiosos.
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Pedi-lhe para se acalmar. Então inclinou-se para mim – quase me embebedando com o bafo alcoólico que exalava e sussurrou-me ao ouvido. Um dia destes volto para a Rússia. Já tenho em vista outra organização de passadores. Com estes cabrões não quero nada, já tenho quase todo o dinheiro que preciso e um dia destes deixo isto tudo e vou-me embora. Para passar mal, passo na minha pátria, na minha aldeia. Vou ter com a minha Olga, vou tomar banhos no Volga vou ver as cerejas em flor, vou comer maçãs da minha velha macieira. Ai aquelas maçãs!
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Anoitecia. Despedi-me e perguntei se uma vez que morava na margem sul não queria vir no mesmo barco que eu. Disse que não. Que viria mais tarde. E lá ficou a falar, com a voz cada vez mais entaramelada, nas maçãs da sua velha macieira e nos banhos do Volga e na grandeza perdida da União Soviética. Despedi-me: Da cevidânia, tavarich! (adeus, camarada) Os olhos iluminaram-se e repetiu baixinho da cevidânia, da cevidânia…
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Antes de sair, olhei pelo canto do olho para a mesa do fundo. Os estranhos ocupantes continuavam de olhos fitos no russo embriagado e agora distante e novamente melancólico, depois das palavras de adeus que me dirigiu. Não sei porquê não gostei da atitude daquele homens e foi com um sentimento de inexplicável e insidiosa inquietação que entrei no barco e que me perseguiu durante o resto da noite, até que me deitei e o sono me venceu.
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Dias depois, leio num jornal que, precisamente no dia seguinte à minha conversa com o russo, um corpo de um possível emigrante de leste tinha sido encontrado a boiar, no Tejo, junto ao Seixal, com sinais de quatro tiros no peito. Pelo tamanho e pela descrição das roupas não tive dúvidas. Era Dimitri, o russo melancólico que me abrira o coração naquela noite, no café, na margem norte do Rio
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Pobre Dimitri, não mais se banhará nas águas do seu Volga, não mais apertará nos braços a companheira dos dias felizes da sua descuidada juventude, não mais verá as cerejeiras em flor do seu quintal, não mais colherá os saborosos e tão especiais frutos da sua velha macieira. O seu último mergulho foi aqui, nas águas turvas do Tejo, a milhares de quilómetros da Pátria que o viu nascer, da sua Ródina, que os russos tanto amam.
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Obviamente que palavras russas acima inseridas reproduzem apenas a respectiva pronúncia, uma vez que tenho dificuldade em utilizar no meu teclado os caracteres cirílicos que me permitiriam a escrita correcta na língua russa.

3.05.2006

ESTRANHA CONTABILIDADE

Tive a minha primeira ejaculação por volta dos meus treze, catorze anos. Seja-me permitido avocar, em minha legítima defesa, que não fiz nada para que tal acontecesse. Era Verão, o fim da época escolar aproximava-se e com ele as férias grandes que eu aguardava mordido de impaciência, após todos aqueles meses de internamento, sem ver os pais, os irmãos, os amigos. A maior parte dos alunos ia a casa nas férias do Natal e da Páscoa, mas eu, alguns anos lá passei inteirinhos, porque os meus pais não tinham os 20 escudos que custava a passagem de ida e volta para casa. Eu e uma escassa dúzia de outros tristes, igualmente desafortunados.
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Estava-se em plena guerra mundial (a 2ª, dizemos agora; que na época era apenas “a guerra”) em que praticamente toda a Europa estava mergulhada. Apesar de Portugal ser uma das poucas nações não beligerantes, por todo o país os vidros das janelas estavam cobertos de tiras de papel, umas paralelas e outras verticais, tipo grade, dando a impressão, a quem chegasse de fora, que a casa de cada português era uma prisão - e de facto era. Diziam os legionários e elementos da “mocidade portuguesa” que andaram de casa em casa a distribuir, para colocação obrigatória, resmas e resmas de tiras de papel e baldes de cola, que as mesmas se destinavam a minimizar os estragos provocados por estilhaços dos vidros em caso de bombardeamentos. Com efeito, , apesar dos laços ideológicos e de interesses que ligavam o governo salazarista, ao regime totalitário vigente na Alemanha ou precisamente por causa disso, tendo em conta o papel dúbio de Salazar, oscilando entre a lealdade ao aliado britânico e o apego às ideias do nazi/fascismo, essa possibilidade nunca esteve descartada
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Sempre que, sobretudo de noite, se ouvia o ronco de um ou mais aviões sobrevoando a cidade, os nossos corações adolescentes batiam mais rápidos, pensando que era a chegada da horda nazi. Por causa do esforço de produção, pedido a todos os aliados, a chamada hora de verão conhecia nesses anos um avanço de duas horas, o que prolongava os já longos dias estivais quase até à meia noite.
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Ora, obrigava o regulamento do seminário que às nove da noite em ponto a rapaziada estivesse toda deitada, obrigando o pudor a que, numa manobra ridícula e inimaginável, a troca da roupa pelo pijama fosse feita debaixo dos lençóis. E ali estávamos nós , numa camarata, onde a luz do dia se iria prolongar por mais duas ou três horas, suados, com o sol a bater nas vidraças, com o ruído excitante dos altifalantes da feira do Milagre, que todos os anos se realizava na largo contíguo – o Campo Sá da Bandeira, aguardando que o sono se dignasse chegar e nos entregasse aos braços de Morfeu – expressão bem pagã, para quem aspirava a poder entrar num espaço celestial onde não havia mais lugar para os velhos deuses do Olimpo.
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Foi numa noite dessas que, dengoso com o calor, e excitado pelo chinfrim dos carrosséis e pela ruidosa música dos altifalantes, fui tomado de uma irreprimível e interminável erecção, que ingloriamente tentava difarçar sob o ligeiro lençol que me cobria. Como não o conseguisse, deitei-me de borco e ao fim de algum tempo, saboreando o inefável torpor que a situação me proporcionava, apertei as pernas e pela primeira. vez senti o inesperado prazer e os desconfortáveis efeitos posteriores daquilo que eu dali, em diante, haveria de designar por “a dor-boa”.
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Ora, o mal foi tomar-lhe o gosto. Dali por diante a minha mão direita (a esquerda não me deu tanto jeito) e o meu sexo passaram a viver em constante enamoramento e frequente conúbio. Dia em que não experimentasse a dor-boa, não era dia para mim. Daí em diante tudo me excitava. Eu era o que se podia chamar de homo erectus. Tanto na vertical como na horizontal.
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Pelo menos uma vez por ano (quase sempre durante o Carnaval) fazíamos “retiro” que é uma coisa muito chata em que, durante três dias, não podíamos falar uns com os outros, passávamos quase todo o tempo na capela a ouvir palestras e a rezar, ou na sala de estudo, sentados em frente das carteiras, onde podíamos ler ou escrever, mas em completo silêncio Em curtos intervalos das rezas e da meditação podíamos ir ao pátio de recreio mas não havia correrias, nem brincadeiras nem gritos, nem conversas tão pouco. Apenas passear e meditar em silêncio. Enfim, uma seca.
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Eu, por mim, aproveitava estas deambulações meditativas para, fingindo que meditava virado contra os muros da cerca, tentar que uma qualquer remansosa lagartixa se dignasse erguer um pouco a minúscula cabeça, e tivesse a amabilidade de a enfiar no laço corredio feito na ponta de uma haste de feno que há longos minutos lhe pusera à frente para, num puxão rápido e decido, a aprisionar pelo pescoço. Claro que logo a soltava para mais adiante tentar a proeza com uma outra. Era o espírito predador de adolescente despertando.
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Nas salas de estudo, ou passeando no pátio ou nos claustros podíamos ler, mas apenas textos sagrados e vidas de santos. Pois até na leitura da bíblia, designadamente no antigo testamento, no Cântico dos Cânticos e certas passagens escabrosas, como o das filhas de Loth e outros meio esquisitos que por lá se encontram, eu encontrava motivos para o coiso se me empinar. Até mesmo certas palavras que ouvíamos com frequência em sermões apologéticos como “concupiscência” e “fornicação” me deixavam em ponto de rebuçado. É curioso que ainda hoje acho esta última palavra um termo extremamente obsceno.
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Ora o vice-reitor, pessoa muito estimável, aliás, era um obcecado pela pureza, que ele considerava a mais excelsa das virtudes e passava a vida a chagar-nos o bicho do ouvido, exaltando as vantagens de os jovens se manterem castos – ia a dizer até ao casamento mas no nosso caso tal não faria sentido pois, como candidatos a padres, o casamento não estava no nosso horizonte próximo nem remoto - o que significava viver e morrer sem nunca ter experimentado, de acordo com as suas teorias, o doce prazer de pecar.
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Dizia o dito vice-reitor, conhecedor que esse era o ponto fraco dos rapazes que tinha à sua guarda, que a masturbação era um coisa terrível, com efeitos perniciosos na nossa saúde, no atrofiamento da inteligência, no enfraquecimento dos pulmões (havia mesmo quem dissesse - mas não o senhor vice reitor, justiça lhe seja feita - que podia causar cegueira) e numa série de mazelas de tão terríveis efeitos que, pelo menos a mim, pois nunca conversávamos uns com os outros sobre tão melindroso assunto, me deixavam literalmente aterrado.
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Afirmava ainda, o encarniçado defensor da pureza juvenil, que ele conhecia pelos olhos os rapazes que se dedicavam à pratica frequente de tão ignominioso acto – que, convenhamos, era, além do mais (isso digo eu agora), um acto de pura cobardia, com cinco a bater num de uma forma sistemática e impiedosa. Eu bem queria resistir à tentação mas era inútil e de dia para dia o vício se ia apoderando mais de mim, apesar de apavorado quer pelas terríveis consequências físicas que daí me poderiam advir, quer pelo castigo de Deus pela pouca importância que me merecia a sublime e exaltada virtude da pureza.
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Assim, passava os dias tentando evitar chegar muito perto do bom do vice-reitor e quando tinha de falar com ele, procurava a todo o custo evitar que o seu olhar se cruzasse com o meu, a fim de fugir à sua tão apregoada capacidade de ver nos olhos de cada um a pecaminosa prática de tocador de pívias. Cheguei mesmo a vir a correr mirar-me no espelho após a prática a preceito de um desses condenáveis actos. Confesso que nunca vi nada de anormal ou de preocupante na imagem que o espelho me devolvia. Quando muito descobria as embirrantes borbulhas que exasperam qualquer adolescente e a mim me tiravam do sério, peneirosamente convencido de que seria um adónis, não fossem aquela malvadas e purulentas excrescências.
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Dos temidos sinais exteriores e do terror que a sua eventual descoberta me provocava, acabei eu por me libertar com o decorrer do tempo e com a constatação de que algo de mal que tivesse de acontecer já teria acontecido, dado o meu brilhante palmarés naquele tipo de desporto tão do meu gosto.
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O pior não era isso. O pior, pior, é que, a pívia, além das tremendas consequências físicas, era um pecado e em estado de pecado eu não podia tomar a hóstia. Ora, se eu tinha conseguido vencer o medo dos terríficos danos físicos, pois isso era comigo, já o mesmo não podia dizer das minhas contas com Deus, pois com esse não queria eu brincadeiras. Acontece que, chegada a hora da comunhão toda aquela malta se levantava em fila para ir junto do altar receber na língua (agora parece que é na mão) a rodelinha branca de farinha prensada que era suposto ser, nem mais nem menos, do que o próprio corpo de Cristo (assim uma espécie de antropofagia, estão a ver) e eu, se ficava um dia ou dois sem me aproximar do altar, não podia ficar mais tempo pois a minha falta seria logo notada.
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Resultado: lá tinha eu de ir a toda a hora confessar os meus pecados, de entre os quais, por mais que me esforçasse não conseguia descobrir outro que não fosse o tal meu incontrolável apego à pívia. Perguntava-me o confessor e quantas vezes meu filho? Aí eu pensava, fazia uma pausa como aqueles políticos que acendem o cigarro ou puxam do lenço enquanto pensam como responder a uma pergunta embaraçosa e fazia os meus cáculos; bom na verdade foram seis vezes, mas como ainda hoje sou bem capaz de reincidir, tou lixado e já amanhã tenho de voltar a ficar no banco (ora toda a gente sabe, pelo menos os futebolistas, como é chato ficar no banco) e por via das dúvidas acabava por arredondar a conta para doze, ficando, portanto, com seis a haver, já perdoadinhas e tudo, as quais poderia começar, portanto, a gastar ainda nesse dia, se assim me prouvesse e o diabo me tentasse. Tantas?! Suspirava o bom do confessor. Pois é senhor Padre. Eu te perdoo em nome do padre e do filho e do espírito santo. Como penitência vais rezar dez padre-nossos e dez ave-marias.
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Não posso dizer que me tenha dado mal com esta contabilidade. Julgo que Deus mais compreensivo do que o vice-reitor (mal fora! Ele bem sabia os seres imperfeitos que tinha fabricado) deve ter aceitado com razoável complacência a minha manhosa barganha.
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PS. Pela amostra junta se vê como era torturada a vida sexual dos adolescentes naqueles negros e bafientos tempos (no seminário, mas também cá fora) e como era mesquinho o deus que nos ensinavam. Felizmente que hoje é diferente. Deus modernizou-se, dispensou os salamaleques dos crentes ( se muitos ainda lhos fazem é porque são parvos e ainda não deram pela mudança que até os padres assumem) e os jovens de hoje nem sequer precisam de recorrer a esse método arcaico, triste e solitário de atingir a dor-boa. Hoje eles convivem, eles “andam”, eles “ficam”, eles “curtem” eles “transam”…tudo numa boa…tudo na santa paz do Senhor.