ESCRITOS OUTONAIS

11.30.2006

O CICLONE

(Mais uma viagem à infância)

Há acontecimentos que, só por si, marcam o ano em que tiveram lugar, ou mesmo a data exacta (mas nesse caso é o dia e mês que ficam, com tendência para esquecer o ano). A sua memória é tanto mais duradoura e generalizada quanto maior tiver sido o seu impacto ou o número de pessoas que afectou.

Assim, por exemplo, e no que diz respeito ao nosso país, fala-se de 1755, e o que vem de imediato à ideia é o grande terramoto que destruiu Lisboa; fala-se de 1910 e logo nos ocorre a proclamação da Republica; falar de 1940 é falar da Exposição do Mundo Português; diz-se 1974 e é o 25 de Abril que nos vem à mente; e falar de 1941 é falar de quê? As pessoas da minha idade (nasci em 1929, recordo) certamente se lembram do acontecimento mais marcante desse ano, pois foi o ano do ciclone.

E digo, “certamente”, consciente de que, traiçoeira como é a nossa língua, ao contrário do que se possa supor, este vocábulo, que parece ser tão assertivo, significa quase sempre o contrário daquilo que pretende afirmar. Na verdade quando alguém, a propósito de determinada malfeitoria da qual se procura determinar o autor, diz com um ar muito categórico “com certeza que foi Fulano” (geralmente alguém que ele secretamente detesta) podemos nós ter a certeza que ele simplesmente não faz ideia nenhuma de quem foi. Complicadinha esta nossa língua, hein?!

Troco pois o “certamente se lembram” por uma expressão mais adequada e menos susceptível de erro e retomo a frase, dizendo que “é suposto as pessoas” do meu tempo lembrarem-se. É que nestas coisas de recordações nem toda a gente pode ter a mesma recôndita memória que eu tenho que, de tão recuada, às vezes penso que só não me lembro muito bem do acto de ter nascido. (presunção não me falta como se vê) E, contudo –ai de mim - como eu gostava de me lembrar agora, do que vou fazer quando me levanto com um ar muito determinado e, dados três ou quatro passos, volto ao local de onde parti. pois não faço já a mínima ideia do que tão determinadamente me levara a interromper o que estava fazendo.

Por exemplo, nunca encontrei nenhum “rapaz do meu tempo” que se lembre da Guerra da Abissínia, ocorrida em 1935. E, no entanto, eu recordo esse acontecimento com grande nitidez e lembro-me mesmo de ver, em grandes parangonas, na primeira página do Diário de Notícias, a notícia da capitulação dos abexins perante as tropas italianas invasoras e uma foto de Mussolini, muito empertigado, fazendo a saudação fascista em cima de um carro de combate, festejando a entrada em Adis-Abeba, como se fosse um grande feito derrotar um exército miserável como era o do imperador Hailé Selassié, conhecido por Negus …enfim, taras de ditador megalómano. O gajo julgava-se um herdeiro directo do seu antepassado Júlio César que, aliás, também era um bom traste. Entretanto este acto paranóico era apenas um ensaio para triste aventura que, juntamente com o seu parceiro Adolfo - enquanto as nações (ditas) democráticas assobiavam, fingidamente distraídas, para o lado - haveria de levar à barbárie da Segunda Guerra Mundial.

Não quer dizer que não haja, quem tendo então 7 anos, como eu, se lembre deste acontecimento, mas a verdade é que eu já pus a questão a muitos deles e nenhum dos questionados se lembrava. Se calhar é como Belenenses. Quando era garoto, a rapaziada lá do sítio era tudo sporting ou benfica, só o raio do Eduardo, mais conhecido por “Pechelips” (era assim que ele pronunciava o nome do seu rádio Phlips), não sei porque carga de água, se dizia obstinadamente adepto do Belenenses. Ora, como eu nunca conhecera qualquer puto ou qualquer outra pessoa que se proclamasse como belenense, levei anos e a anos a pensar que o Eduardo era o único adepto de tal clube, à face da terra”… e pronto, lá estou eu de novo a divagar… é da idade, por certo.

Mas onde é que a conversa já vai, meu Deus, lá diz o povo que ela é como as cerejas, puxa-se uma e vêm logo outras atrás e atrás dessas, outras, e assim se apanham grandes e inesperadas barrigadas e por vezes tremendas diarreias. "Caganeiras" seria o vocábulo mais propriado para falar de tão incómodo desarranjo, estivesse eu a conversar com um qualquer velho amigo, mas que, por uma questão de respeito, me coibo de utilizar consigo, caro leitor, se algum houver que tenha a pachorra de estar seguindo este meu mal alinhavado desfiar de recordações. Seja como fôr, a deglutição exagerada que levasse a tal destempero só seria possivel no tempo em que estes vistosos frutos se compravam ao preço da chuva e que, além de apetecíveis de comer, se penduravam nas orelhas, aos pares, como se fossem rubros brincos de rubis, pois actualmente estão pela hora da morte.

Voltando então ao ciclone, de 1941: ocorreu o dito em 15 de Fevereiro do referido ano. O dia começou negro e chuvoso e foi progressivamente aumentando a força e a velocidade das rajadas de vento, praticamente em todo o país, destelhando casas, fazendo voar chapas de zinco dos telhados dos barracões, derrubando árvores centenárias, arrastando automóveis, provocando estragos e inundações um pouco por todo lado.

Nesse dia a nossa mãe estava internada no hospital, o pai estava no trabalho, o nosso irmão mais velho, então com 18 anos, também estava fora a fazer pela vida, ou à procura de um qualquer emprego, que nem sempre encontrava, e em casa estava eu, com onze anos na altura, o Tino com oito, e o Lau com cinco anos apenas. Como a antiguidade é um posto (pelo menos na tropa é assim) e sendo eu o mais velho, competia-me a mim o comando da tropa-fandanga, bem como todos os cuidados da casa no velho sótão em que morávamos, na Travessa do Cauteleiro, nº4.

Mais do que uma vez, infelizmente, e sempre por internamentos hospitares de minha mãe, tive de assumir a chefia não desejada do que se podia designar lá em casa como o “pessoal menor” - designação algo pejorativa que, nesse tempo se atrbuia aos trabalhadores menos qualificados do funcionalismo público, comparativamente ao “pessoal graduado”, e ao "pessoal superior". Tudo muito escalonadinho como se vê. Só que lá em casa, a menoridade a que me refiro era apenas a da idade. Ora, entre o dito pessoal menor a meu cargo, além dos dois galfarros que atrás mencionei, estava também a Alicinha, nossa irmã mais nova, então bebé de 11 meses, competindo-me a mim (não tínhamos mais família naquela terra) dar-lhe banho, mudar-lhe a fralda, vesti-la, fazer-lhe a papinha... Estou a ver-me misturando a farinha com o leite e ir mexendo, mexendo sempre, para não a deixar engrolar e uma vez pronta e deitada numa trigela, ir introduzindo-a às colheradas na boquinha do impaciente bébé, até a tigela ficar vazia e a menina satisfeita. Esta era uma das minhas tarefas habituais, mas não naquele dia, porque uma senhora que era sua madrinha e morava não muito longe de nós a tinha vindo buscar.

Naquele dia eu estava, isso sim, encarregado de fazer o almoço para o mim, os meus outros dois irmãos, e meu pai que vinha almoçar um pouco depois das treze horas. O vento e a chuva toda a manhã tinham fustigado os vidros das janelas de uma forma não habitual, o que nos deixava um pouco acagaçados para utilizar a vernácula expressão que então era comum usar em casos e situações tais.

Ali estávamos nós, quais pintainhos abandonados à nossa sorte, sem o aconchego das asas protectoras da galinha mãe, enquanto por sua vez o galo era forçado a ciscar lá fora, no terreiro da vida, com que prover ao sustento da ninhada - que para pouco mais dava a magra féria que conseguia trazer para casa ao fim de cada semana. Lá nos fomos, contudo aguentando, eu entretido a descascar as batatas - no que me tornei um mestre, de tal modo que ainda hoje, se me apurar, consigo descasca-las do princípio ao fim, rapidamente e sem lhe partir a casca – enquanto os outros dois pirralhos se entretinham nas suas traquinices e quezílias habituais, só interrompidas, por algum golpe de vento mais inquietante, mais fortes rajadas de água fustigando os vidros das janelas, ou mais ameaçadores os estremecimentos das telhas do sótão, logo acima das nossas cabeças.

Por volta do meio dia e meia hora estava eu, de volta do fogareiro a petróleo, vigiando a cozedura das batatas para ver se podia meter o bacalhau, quando a casa toda estremeceu com um ronco assustador de um súbito golpe de vento e a chaminé desabou sobre a lage da cozinha, derrubado por terra o fogareiro as batatas, o bacalhau e tudo o que encontrou pela frente, não me tendo esmagado a mim não sei porquê, pois a meu pés e à minha volta restava apenas, ocultando o nosso rico almoço um montão de tijolos, argamassa antiga e caliça desfeita.

Não tive tempo para pensar. Foi só agarrar nos meus irmãos e fugirmos de escantilhão, escadas abaixo, eles nem se apercebendo bem do que se passava e eu completamente apavorado. Quando o nosso pai chegou, deparou com os três filhos chorosos à porta da rua e almoço, nicles. O que nos valeu foi a vizinha Felismina, também natural de Moncorvo, com a qual aliás não nos dávamos, que nos confortou o estômago com uma sopa quente e mais não sei o quê e onde passámos o resto do dia, Quanto ao nosso pai foi comer qualquer coisa na tasca do António Carvoeiro e lá voltou para o trabalho que a vida estava ruim e era preciso ganhar para a bucha.

No dia seguinte e por vários dias seguidos, os jornais vinham pejados de notícias e fotos documentando a fúria do ciclone e os seus estragos que abrangiam praticamente todo o país: Casas derrubadas, paredes rachadas, postes de alta tensão e telefónicos por terra, arvores centenárias arrancadas pela raiz, barcos afundados, automóveis virados, cheias e inundações por todo o lado, comunicações ferroviárias e rodoviárias cortadas - o que aliás acontecia com muita frequência nesse tempo, sobretudo no vale de Santarém. Uma calamidade!

Mesmo lá fora, a fúria do temporal que assolou o nosso país impressionou os nossos vizinhos europeus, sendo noticiado nos jornais e na rádio um pouco por todo o lado. Nesse tempo a apregoada grandeza do ditador era tão insignificante que só por más razões o nome de Portugal se projectava lá fora, como aconteceu e nessa altura, tal como sucedera por ocasião do terramoto de 1755 - objecto de notícias e comentários em vários países, inclusive de Voltaire, que viu na injustiça da terrível mortandade, a prova provada da não existência de Deus.

Quem sabe, se não foi inspirados nos efeitos devastadores do nosso ciclone que os nazis baptizaram de Ciclone-B um gás mortífero que, em 3 de Setembro desse mesmo ano de 1941, experimentaram no campo de concentração de Auschwitz, causando a morte por asfixia, de uma vez só, a mais de 600 prisioneiros – Uma estreia auspiciosa como se vê, pois dali para a frente foi “sempre a aviar”, com o “ciclone” e outros gazes ainda mais letais e mais rápidos, no seu almejado propósito de purificação da raça ariana.

Por cá por esse tempo não tinha pegado ainda a moda da subsídio-dependência crónica que agora se tornou norma e vício, e os desalojados e prejudicados pelo ciclone, tanto quanto julgo saber, limitaram-se a receber ajudas esporádicas, tratando cada um de se arranjar conforme pôde.

A propósito do actual espírito de pedinchice de subsídios por tudo e por nada – que, aliás, não é exclusivo do nosso pais, dizia-me há tempos um amigo brasileiro: ”Pobre é foda! Passa o tempo a dizer que não tem nada e logo que chove diz que perdeu tudo” (*)

A verdade é que, como comecei por dizer, o ano de 1941, será sempre lembrado no nosso país e muito particularmente por mim que, criança ainda, perplexo e impotente perante aquela desconhecida força de elementos, a chuva e o vento, que até ali me habituara a considerar amigos, me vi a ombros com uma responsabilidade superior à minha idade e às minha forças - uma grande provação da minha vida, que esteve contudo longe de outras que ao longo dos anos haveria de suportar. 1941, será sempre o ano do ciclone e este um momento vital de passagem para a fase seguinte do meu crescimento, até me tornar o homem que vim a ser.

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(*) Nota: Estive tentado a substituir a expressão “pobre é foda”, por uma equivalente no português do lado de cá “pobre é lixado” talvez, mas perderia o sabor caipira da frase. Esta expressão, aliás, usa-se no Brasil com muita frequência e ligeireza.

11.23.2006

O POEMA DE AMOR


O Poema de amor, Amor,
que em breve te farei,
não há-de ser senão
o acto de te amar.

Não vou precisar lápis nem papel
pois é sobre o teu corpo, em tua pele,
que ao vivo meu poema vou criar.
Para quê de palavras o gaguejo
quando o corpo nos arde
de desejo,
e mais do que dizer
o quer gritar ?

Desse poema, as palavras
serão beijos.
E as frases os abraços ...
E a escrita no teu corpo
serão traços,
dedos, dentes,
bocas, braços
que em ti imprimirei.

Sujeitos da oração
seremos dois !
E objectos seremos igualmente.
E no conjugar febril
da mesma acção,
o verbo não terá senão presente.

Exclamações (!) serão gemidos,
Suspiros e ais as reticências...
E não haverá paz nem complacências
até à morte plena dos sentidos.
Pontos, só haverá ponto final,

a fim de que o poema,
Amada minha,
comece nova estrofe,
em nova linha.
Com beijos e abraços...
Tal e qual

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PS. Agora imaginem só,

fazer a análise sintáctica deste poema
de acordo com a terminologia do TLEBS!!!…
Lá ia todo o poema p’ró galheiro!

Ouça também este poema, na voz de Luís Gaspar
no programa "Lugar aos Outros nº 28,
AQUI

Foto: nu de Modigliani retirada, data venia, daqui

11.11.2006

O GRUPO DO CRISÂNTEMO

Falei aqui há tempos, mais precisamente no “post” de 22-4-2006 dos “Borrachos dos anos cinquenta” – encontro anual de amigos que moravam em Moscavide na década de cinquenta, cuja idade andava, nessa altura por volta dos vinte anos, salientando as características peculiares de Moscavide do nosso tempo que tornavam possível um especial clima quase mítico de vivências e de iniciativas como a desse encontro.

Recordo-me, inclusive, que a crónica em que fazia esse relato foi muito do agrado de quem teve a oportunidade de a ler.

Pois hoje vos falarei de uma outra iniciativa do mesmo género mas muito mais interessante e mais original. Com efeito, enquanto o encontro dos “borrachos” se efectua, apenas desde meados dos anos setenta, com não muito segura regularidade, aliás, e depende sempre da iniciativa, ano a ano, de alguns carolas que para tanto necessitam de obter a inscrição prévia dos eventuais participantes, e de os informar da data e do local onde o convívio terá lugar, o de que hoje vos falarei que tem o nome do “Grupo do Crisântemo” efectua-se há 56 anos ininterruptos, tem uma data certa, não precisa de inscrição prévia e ninguém avisa ninguém. É mais um tipo de iniciativas que só em Moscavide podia acontecer

Foi em 1950 que tudo começou. Morávamos todos em Moscavide, éramos jovens e andávamos sempre em grupo, dentro do espírito de clã que os jovens de todos os tempos sempre cultivaram. A juventude de hoje não inovou nada, nesse aspecto. O que não é vulgar é manter esse espírito durante a vida inteira. Por esse tempo, nós éramos simplesmente: “a Malta” e tínhamos quase todos pertencido ao Grupo de escuteiros local. Ora “a Malta”, que andava sempre junta, que ia à praia, junta, que ia ao baile, junta, que ia para os copos, junta, que ia às “meninas”, junta, começou a ter a intuição de que a vida e o destino se encarregariam de nos separar e que como todas as “maltas” deste mundo, iria desaparecer na voragem do tempo, dela não restando mais do que alguma saudade e vagas reminiscências.

Consciente disso eu, romântico incorrigível que sempre fui e espero continuar a ser, no dia 11 de Novembro do referido ano de 1950, no meio de uma das nossa farras em casa dos pais de um de nós (éramos todos solteiros ainda e sem casa própria, portanto) já bem bebidos, como frequentemente acontecia, propus que assumíssemos o compromisso, sob forma de juramento, de nos encontrarmos dali a uns quantos anos, num determinado sítio a combinar, estivéssemos onde estivéssemos na altura, e fossem quais fossem as dificuldades que se nos deparassem para o fazer. Discutiram-se os prazos, o local e a data. Cada um dava a sua “boca”. Imaginávamos cenários em que a vida teria corrido bem a uns e menos bem a outros, em que um apareceria num bruto carro (nesse tempo nenhum de nós, o tinha, obviamente) e outro aparecia andrajoso, os dedos dos pés a sair dos sapatos rotos, cabelo e barba desgrenhados... tudo isto entre risos e sugestões as mais desencontradas e mais delirantes. Os copos algum efeito haviam de fazer...

Quanto à data, a maioria preferia que fosse no verão, por ser mais propício à farra, e poder prolongar-se mais noite adentro. Eu, opinava pelo inverno. Era mais romântico. Imaginava uma noite de tempestade. a chuva lá fora fustigando as janelas do local onde estivéssemos reunidos; o “suspense” relativamente aos que se atardavam; que lhes terá sucedido? Será que o mau tempo os deteve? Será que vão aparecer molhados, pingando da cabeça aos pés? Finalmente o consenso, vários copos depois. Seria no “Verão de S. Martinho”, que não é verão nem é inverno. Ficou por isso escolhida a data de 11 de Novembro, mais pelas razões expostas do que por se tratar do dia do patrono dos copófonos, como alguém maldosamente possa ser tentado a inferir (credo! cruzes canhoto! logo nós que nem gostávamos nada do tintol e éramos o tipo acabado de virtuosos abstémios!)

No que se refere ao local, a escolha também não foi fácil. Seria que o restaurante que escolhêssemos ainda existiria na altura do nosso longínquo encontro? É que se não existisse lá se iria o encontro e lá se perderia, quiçá, toda a esperança de podermos um dia voltar a encontrar-nos – o que para o espírito de clã de que na altura imbuídos constituía uma tragédia inimaginável. Teria de ser, pois, um lugar público, um lugar que dificilmente deixaria de existir, de onde seguiríamos depois para um qualquer restaurante, a combinar na altura, onde à volta de uma ceia bem servida mataríamos saudades,, contaríamos as nossas venturas e desventuras e cantaríamos a nossa rapsódia a quatro vozes sempre bem afinada. Por minha sugestão foi aceite como ponto de encontro a Praça Luís de Camões, junto à estátua do Poeta.

Faltava ainda definir a distância no tempo. Ponderadas as várias opiniões optou-se por 10 anos. (meu Deus, que ingénua ideia tínhamos nós da vertiginosa marcha e da relatividade do tempo! Só mais tarde a vida nos ensinaria que 10 anos são um ápice nessa corrida desenfreada). Seria, portanto, em 11 de Novembro de 1960. Entretanto outra dúvida se levantou: Como nos iríamos reconhecer, se o tempo ou vicissitudes diversas nos tivessem substancialmente modificado as feições ou o aspecto geral? Solução: cada um de nós levaria ao peito uma flor da época: um crisântemo branco.

Encontrada a forma e o espírito de que se revestiria o encontro, coube-me a mim redigir o juramento, que todos logo ali assinámos e cujo texto era o seguinte:

"Nós, abaixo assinados, prometemos que, se Deus for servido conceder-nos a existência, sejam quais forem os nossos credos religiosos ou facções políticas, seja qual for a situação económica que nos divida, ou a distância física ou moral que nos aparte, ainda que com sacrifício, desde que esse sacrifício a nós atinja, unicamente, nos havemos de reunir, levando todos ao peito um crisântemo branco, junto à estátua de Luís de Camões, às vinte e duas horas de onze de Novembro, dia de S. Martinho, de mil novecentos e sessenta, para, em conjunto, relembrarmos as nossas brincadeiras da meninice, os nossos sonhos e aspirações da adolescência; brincadeiras que não se repetem, sonhos que talvez não se realizem, mas que nos conservarão unidos pela vida fora e nos ajudarão a permanecer eternamente jovens e eternamente camaradas.
Nota: A juventude não está tanto no verdor dos anos, como na frescura do coração."

Moscavide, 11 de Novembro de 1950

(e seguiam-se 13 assinaturas, dias depois seguidas de mais duas de amigos ausentes naquela noite)

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Ingenuidade e peneiras, não nos faltavam como se constata pela amostra junta.

Apesar do juramento do encontro ser para dali a 10 anos, a verdade é que, a partir daquela data, sem nunca falhar, durante os últimos 56 anos, nos reunimos na noite de S.Martinho.

Em 1951, foi em Moscavide, no café do “Britinho das garotas”, que era um dos locais que então mais frequentávamos.

Em 1952, também em Moscavide, na Pensão Jardim, da D.Trindade (A título de curiosidade, registo que o jantar, que constava de sopa, peixe, carne, pão, vinho, fruta, café e bagaço, tudo à descrição (ainda conservo a factura) custou 20$00 por cabeça. Actualmente, um prato (é sempre bacalhau assado) pão, vinho castanhas e café, custa-nos à volta de 20 euros – 4 contos em escudos, para melhor podermos comparar

Em 1953, no Restaurante da Lisboa Filmes.

Em 1954, No Clube Familiar Moscavidense

.Em 1955, no Restaurante Grande Elias, no Ginjal.

Em 1956, 1957 e 1958, no Restaurante Balão,
em Moscavide

Em 1959, num restaurante na rua da Escola Politécnica.

11-11.1953: Restaurante da Lisboa Filmes, com a madrinha do Grupo.
Sim tínhamos uma madrinha e tudo. Que será feito de ti Benvinda?

Em 1960, conforme jurado dez anos atrás, junto à estátua de Camões

de onde se seguiu para o Caramão da Ajuda

Nessa noite, em que o Chico que entretanto abalara para Angola se fez representar pela irmã, com uma carta sua e um ramos de flores, o juramento foi renovado para 1970. Contudo, durante toda a década seguinte como na anterior fomos continuando a encontrar-nos anualmente, no mesmo data, nos mais diversos locais.

E em 1970 lá rumamos novamente até à estátua de Camões.

Como trabalhava perto, na Calçada do Duque, fui o primeiro a chegar. Estava eu a um canto da Praça, debaixo de um dos pinheiros que ali existiam (não me recordo se ainda lá estão), quando se chega junto a mim um colega que me sussurra com ar cúmplice e sorrisinho malandreco “Com que então de florinha ao peito aqui a estas horas?! Temos engate à vista”. “Acredita, se quiseres (retorqui eu), mas o facto é que estou à espera de uma dúzia ou mais de matulões, com quem, precisamente há vinte anos, combinei encontrar-me, a esta hora, neste local”. “Vai contar essa a outro”, continuava ele com um sorriso de cumplicidade malandra. Eis senão quando, surge o Zé Poejo a uma esquina, o Nelson a outra, o Quim atrás e outro e mais outros que, paulatinamente, se vinham aproximando, de flor ao peito. “Aí estão eles”, disse eu, apontando-os. O meu amigo ficou varado de espanto.

´”Eh pá, isso é a coisa mais gira que eu já vi em toda a minha vida”, acabou por dizer. E lá foi à sua vida, pensando, por certo, com os seus botões, que ainda havia gajos “muita doidos” neste mundo.

Do Camões se abalou para o Restaurante chamado “Floresta de Moscavide” (propriedade dos antigos donos do “Balão” de Moscavide, o Manel e o seu irmão João - este último nosso conhecido desde garotinho), onde, depois da farra e das cantorias habituais se renovou o juramento para 1980.

Em 1980, novamente no Camões, de florinha ao peito e novo juramento para 1990.

Em 1990, contudo, e nos anos seguintes, até hoje, já não fomos ao Camões, tendo-nos dirigido directamente à “Floresta agora situada na Póvoa de Santo Adrião (Esta alteração tinha sido acordada na reunião de 1989, por acharmos que estando agora “menos jovens” e com os problemas de trânsito, cada vez maiores, não fazia sentido irmos ao Camões, onde é impossível estacionar, para atravessar a cidade em horas de ponta até à Póvoa de Stº Adrião. Só o Quim, que era uma força da natureza, embora doente, fez questão de discordar: “era no Camões, era no Camões”.

Pobre Amigo faleceu no mês seguinte, a poucos dias do Natal.

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Em 2000 - Cinquenta anos após o nosso juramento de 1950, lá estivemos de novo reunidos no Restaurante "Floresta", na Póvoa de Santo Adrião, para a celebração do nosso ritual de amizade então iniciado. Como era natural, neste ano o número de participantes foi bastante superior ao que tem sido habitual. Com efeito, apesar das baixas de vários dos signatários do juramento de 1950 a quem a morte já levou (de quinze só restam oito) o número de familiares que resolveram associar-se aos velhotes na comemoração do evento elevou para a 39 o número de participantes, contando com as companheiras, filhos e alguns netos, Todos os presentes assinaram novo juramento para se encontrarem em 2010. Será que algum dos signatários de 1950 lá vai conseguir lá chegar?

11-11-2000: Lendo o juramento para 2010

2006 - Mais seis anos se passaram e mais seis encontros, contando com o de hoje.. O de este ano, pela primeira vez (ficou decidido no ano passado) deixou de ser à noite) passando a ser sempre ao almoço do primeiro sábado a seguir ao São Martinho ou no próprio dia de São Martinho se calhar a um sábado, como hoje aconteceu.

É de lá que acabo de chegar. À nossa espera, lá estava a mesa posta - uma mesa enorme, preparada para um número indeterminado de pessoas (nunca se sabe quantas virão) e que este ano teve de ser acrescentada e lá estivemos nós os 8 magníficos sobreviventes e mais alguns que se nos foram juntando ao longo dos anos, alguns acompanhados das mulheres, dos filhos, dos netos, num total de 29 pessoas e um bebé. Há um ano precisamente que não nos víamos, agora que cada um mora para seu lado, mas para o ano, sem mais combinações, cá estaremos para renovar este ritual de amizade.

Este ano, tivemos uma grande surpresa e uma extraordinária alegria: o Luís um dos signatário do juramento de 1950, que não víamos desde 1960 e que julgávamos tivesse morrido há muitos anos, apareceu no restaurante, vindo de Coimbra onde mora, depois de uma neta ter descoberto na Net um site meu sobre Moscavide, onde falo dele, incluíndo-o na lista de amigos falecidos. Como diz a parábola há mais alegria pelo regresso do filho pródigo (neste caso o Amigo) do que pela presença habitual dos restantes. E assim aconteceu, Foi mais jovial e mais excitante o encontro deste ano por causa do regresso do Amigo que julgávamos ter perdido.

Vou fazer em Março 78 anos. Não sei quantas vezes mais, de flor branca ao peito, poderei voltar a encontrar estes amigos, mas tenho esperança de que os nosso filhos e netos, que já há alguns anos têm vindo a aprender a conviver uns com os outros, continuem a encontrar-se, quando todos os signatários do nosso juramento tiverem partido para a longa viajem sem regresso.

E agora digam-me lá se é muito vulgar a existência de um grupo de amigos com as características deste “Grupo do Crisântemo” ?