O CICLONE
Assim, por exemplo, e no que diz respeito ao nosso país, fala-se de 1755, e o que vem de imediato à ideia é o grande terramoto que destruiu Lisboa; fala-se de 1910 e logo nos ocorre a proclamação da Republica; falar de 1940 é falar da Exposição do Mundo Português; diz-se 1974 e é o 25 de Abril que nos vem à mente; e falar de 1941 é falar de quê? As pessoas da minha idade (nasci em 1929, recordo) certamente se lembram do acontecimento mais marcante desse ano, pois foi o ano do ciclone.
E digo, “certamente”, consciente de que, traiçoeira como é a nossa língua, ao contrário do que se possa supor, este vocábulo, que parece ser tão assertivo, significa quase sempre o contrário daquilo que pretende afirmar. Na verdade quando alguém, a propósito de determinada malfeitoria da qual se procura determinar o autor, diz com um ar muito categórico “com certeza que foi Fulano” (geralmente alguém que ele secretamente detesta) podemos nós ter a certeza que ele simplesmente não faz ideia nenhuma de quem foi. Complicadinha esta nossa língua, hein?!
Troco pois o “certamente se lembram” por uma expressão mais adequada e menos susceptível de erro e retomo a frase, dizendo que “é suposto as pessoas” do meu tempo lembrarem-se. É que nestas coisas de recordações nem toda a gente pode ter a mesma recôndita memória que eu tenho que, de tão recuada, às vezes penso que só não me lembro muito bem do acto de ter nascido. (presunção não me falta como se vê) E, contudo –ai de mim - como eu gostava de me lembrar agora, do que vou fazer quando me levanto com um ar muito determinado e, dados três ou quatro passos, volto ao local de onde parti. pois não faço já a mínima ideia do que tão determinadamente me levara a interromper o que estava fazendo.
Por exemplo, nunca encontrei nenhum “rapaz do meu tempo” que se lembre da Guerra da Abissínia, ocorrida em 1935. E, no entanto, eu recordo esse acontecimento com grande nitidez e lembro-me mesmo de ver, em grandes parangonas, na primeira página do Diário de Notícias, a notícia da capitulação dos abexins perante as tropas italianas invasoras e uma foto de Mussolini, muito empertigado, fazendo a saudação fascista em cima de um carro de combate, festejando a entrada
Não quer dizer que não haja, quem tendo então 7 anos, como eu, se lembre deste acontecimento, mas a verdade é que eu já pus a questão a muitos deles e nenhum dos questionados se lembrava. Se calhar é como Belenenses. Quando era garoto, a rapaziada lá do sítio era tudo sporting ou benfica, só o raio do Eduardo, mais conhecido por “Pechelips” (era assim que ele pronunciava o nome do seu rádio Phlips), não sei porque carga de água, se dizia obstinadamente adepto do Belenenses. Ora, como eu nunca conhecera qualquer puto ou qualquer outra pessoa que se proclamasse como belenense, levei anos e a anos a pensar que o Eduardo era o único adepto de tal clube, à face da terra”… e pronto, lá estou eu de novo a divagar… é da idade, por certo.
Voltando então ao ciclone, de 1941: ocorreu o dito em 15 de Fevereiro do referido ano. O dia começou negro e chuvoso e foi progressivamente aumentando a força e a velocidade das rajadas de vento, praticamente em todo o país, destelhando casas, fazendo voar chapas de zinco dos telhados dos barracões, derrubando árvores centenárias, arrastando automóveis, provocando estragos e inundações um pouco por todo lado.
Nesse dia a nossa mãe estava internada no hospital, o pai estava no trabalho, o nosso irmão mais velho, então com 18 anos, também estava fora a fazer pela vida, ou à procura de um qualquer emprego, que nem sempre encontrava, e em casa estava eu, com onze anos na altura, o Tino com oito, e o Lau com cinco anos apenas. Como a antiguidade é um posto (pelo menos na tropa é assim) e sendo eu o mais velho, competia-me a mim o comando da tropa-fandanga, bem como todos os cuidados da casa no velho sótão em que morávamos, na Travessa do Cauteleiro, nº4.
Mais do que uma vez, infelizmente, e sempre por internamentos hospitares de minha mãe, tive de assumir a chefia não desejada do que se podia designar lá em casa como o “pessoal menor” - designação algo pejorativa que, nesse tempo se atrbuia aos trabalhadores menos qualificados do funcionalismo público, comparativamente ao “pessoal graduado”, e ao "pessoal superior". Tudo muito escalonadinho como se vê. Só que lá em casa, a menoridade a que me refiro era apenas a da idade. Ora, entre o dito pessoal menor a meu cargo, além dos dois galfarros que atrás mencionei, estava também a Alicinha, nossa irmã mais nova, então bebé de 11 meses, competindo-me a mim (não tínhamos mais família naquela terra) dar-lhe banho, mudar-lhe a fralda, vesti-la, fazer-lhe a papinha... Estou a ver-me misturando a farinha com o leite e ir mexendo, mexendo sempre, para não a deixar engrolar e uma vez pronta e deitada numa trigela, ir introduzindo-a às colheradas na boquinha do impaciente bébé, até a tigela ficar vazia e a menina satisfeita. Esta era uma das minhas tarefas habituais, mas não naquele dia, porque uma senhora que era sua madrinha e morava não muito longe de nós a tinha vindo buscar.
Naquele dia eu estava, isso sim, encarregado de fazer o almoço para o mim, os meus outros dois irmãos, e meu pai que vinha almoçar um pouco depois das treze horas. O vento e a chuva toda a manhã tinham fustigado os vidros das janelas de uma forma não habitual, o que nos deixava um pouco acagaçados para utilizar a vernácula expressão que então era comum usar em casos e situações tais.
Ali estávamos nós, quais pintainhos abandonados à nossa sorte, sem o aconchego das asas protectoras da galinha mãe, enquanto por sua vez o galo era forçado a ciscar lá fora, no terreiro da vida, com que prover ao sustento da ninhada - que para pouco mais dava a magra féria que conseguia trazer para casa ao fim de cada semana. Lá nos fomos, contudo aguentando, eu entretido a descascar as batatas - no que me tornei um mestre, de tal modo que ainda hoje, se me apurar, consigo descasca-las do princípio ao fim, rapidamente e sem lhe partir a casca – enquanto os outros dois pirralhos se entretinham nas suas traquinices e quezílias habituais, só interrompidas, por algum golpe de vento mais inquietante, mais fortes rajadas de água fustigando os vidros das janelas, ou mais ameaçadores os estremecimentos das telhas do sótão, logo acima das nossas cabeças.
Por volta do meio dia e meia hora estava eu, de volta do fogareiro a petróleo, vigiando a cozedura das batatas para ver se podia meter o bacalhau, quando a casa toda estremeceu com um ronco assustador de um súbito golpe de vento e a chaminé desabou sobre a lage da cozinha, derrubado por terra o fogareiro as batatas, o bacalhau e tudo o que encontrou pela frente, não me tendo esmagado a mim não sei porquê, pois a meu pés e à minha volta restava apenas, ocultando o nosso rico almoço um montão de tijolos, argamassa antiga e caliça desfeita.
Não tive tempo para pensar. Foi só agarrar nos meus irmãos e fugirmos de escantilhão, escadas abaixo, eles nem se apercebendo bem do que se passava e eu completamente apavorado. Quando o nosso pai chegou, deparou com os três filhos chorosos à porta da rua e almoço, nicles. O que nos valeu foi a vizinha Felismina, também natural de Moncorvo, com a qual aliás não nos dávamos, que nos confortou o estômago com uma sopa quente e mais não sei o quê e onde passámos o resto do dia, Quanto ao nosso pai foi comer qualquer coisa na tasca do António Carvoeiro e lá voltou para o trabalho que a vida estava ruim e era preciso ganhar para a bucha.
No dia seguinte e por vários dias seguidos, os jornais vinham pejados de notícias e fotos documentando a fúria do ciclone e os seus estragos que abrangiam praticamente todo o país: Casas derrubadas, paredes rachadas, postes de alta tensão e telefónicos por terra, arvores centenárias arrancadas pela raiz, barcos afundados, automóveis virados, cheias e inundações por todo o lado, comunicações ferroviárias e rodoviárias cortadas - o que aliás acontecia com muita frequência nesse tempo, sobretudo no vale de Santarém. Uma calamidade!
Mesmo lá fora, a fúria do temporal que assolou o nosso país impressionou os nossos vizinhos europeus, sendo noticiado nos jornais e na rádio um pouco por todo o lado. Nesse tempo a apregoada grandeza do ditador era tão insignificante que só por más razões o nome de Portugal se projectava lá fora, como aconteceu e nessa altura, tal como sucedera por ocasião do terramoto de 1755 - objecto de notícias e comentários em vários países, inclusive de Voltaire, que viu na injustiça da terrível mortandade, a prova provada da não existência de Deus.
Quem sabe, se não foi inspirados nos efeitos devastadores do nosso ciclone que os nazis baptizaram de Ciclone-B um gás mortífero que, em 3 de Setembro desse mesmo ano de 1941, experimentaram no campo de concentração de Auschwitz, causando a morte por asfixia, de uma vez só, a mais de 600 prisioneiros – Uma estreia auspiciosa como se vê, pois dali para a frente foi “sempre a aviar”, com o “ciclone” e outros gazes ainda mais letais e mais rápidos, no seu almejado propósito de purificação da raça ariana.
Por cá por esse tempo não tinha pegado ainda a moda da subsídio-dependência crónica que agora se tornou norma e vício, e os desalojados e prejudicados pelo ciclone, tanto quanto julgo saber, limitaram-se a receber ajudas esporádicas, tratando cada um de se arranjar conforme pôde.
A propósito do actual espírito de pedinchice de subsídios por tudo e por nada – que, aliás, não é exclusivo do nosso pais, dizia-me há tempos um amigo brasileiro: ”Pobre é foda! Passa o tempo a dizer que não tem nada e logo que chove diz que perdeu tudo” (*)
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(*) Nota: Estive tentado a substituir a expressão “pobre é foda”, por uma equivalente no português do lado de cá “pobre é lixado” talvez, mas perderia o sabor caipira da frase. Esta expressão, aliás, usa-se no Brasil com muita frequência e ligeireza.