ESCRITOS OUTONAIS

9.29.2006

A CHUVA

Chegou o Outono. E com ele as primeiras chuvas. É tempo de semear e tempo ainda de colher. Falta acabar de apanhar as uvas e fazer o vinho, colher os marmelos e confeccionar as compotas. Lá mais para diante os provaremos, que precisam ambos que o frio, que ainda não chegou, os cure e lhes dê o paladar do nosso contentamento.

Os dias são doces ainda, a temperatura amena, as chuvas esporádicas e passageiras. Só lá mais para diante, em princípio, elas virão para ficar e assentar arraiais, mimoseando-nos com as suas arremetidas, longas e frequentes.

Desde que me conheço ouço as pessoas reclamar contra o tempo, mas a verdade é que agora as invernias são, ou parecem-me que são, menos rigorosas e menos prolongadas que no meu tempo de criança. Também é verdade que tal sensação se deve ao facto de não haver então as distracções que há hoje e o tempo de retenção em casa, por causa da chuva, nos parecesse mais longo, por tal motivo.

Naquele tempo (e estou a falar do final dos anos trinta e primeiros de quarenta) a televisão não existia ainda e em minha casa nem sequer rádio havia, os dias de chuva, numa casa pequena e cheia de crianças eram particularmente difíceis, tristes, irritantes, intermináveis. As costumadas brigas entre nós tornavam-se mais frequentes e mais acesas nesses dias,o que obrigava a nossa mãe a “molhar a sopa”, com alguma frequência, para acalmar algum mais azougado ou mais impertinente e tentar obter um pouco de sossego.

Quando nos cansávamos de zaragatear uns com os outros íamos todos plantar-nos à janela, com a cara colada aos vidros embaciados, entoando as mais variada cantilenas para exaltar ou afastar a chuva, tais como:“Chove, chove, galinha Ònove”, “Nossa Senhora da Conceição, faça sol e chuva não”, “Nossa Senhora da Meia-Lua, faça sol, quero ir para a rua”, “Nossa Senhora da Atalaia, faça sol, quero ir p’rá praia”,“Está a chover e a fazer sol, estão as bruxas a comer pão mole”... Repare-se que estas invocação eram todas no feminino, como se os machos das três estirpes nomeadas (galináceos, divindades e feiticeiros) ou não tivessem tamanho poder, ou lhes faltasse sensibilidade para atender as súplicas da criançada.

Todos estes desesperados apelos eram repetidos, vezes e vezes sem conta e secundados por garotos das casas próximas que, ao ouvir-nos, se juntavam ao coro
e a esse se juntavam outros e outros ainda, numa berraria que enchia todo o quarteirão, dali se espalhava aos quarteirões vizinhos, ecoava por toda a povoação e só terminava quando as mães exasperadas, com ralhos ou à chapada, punham termo à infernal cantoria.

Era ver a alegria da malta miúda, logo que a chuva abrandava. De todas as casas a cahopada, descalça, vinha para a rua chapinhando nas enormes poças de água, que se formavam em todas as ruas – estavam ainda longe de vir a ser alcatroadas as ruas de Moscavide – ou ao longo das valetas, cheias, a transbordar de água barrenta, na sua fervilhante corrida para o escoadouro das sarjetas, invariavelmente entupidas para nosso gaúdio e proveito.

Uma porta velha boiando num charco era uma jangada, um barrote meio submerso era um crocodilo e nós, aventureiros de uma selva imaginária…que sabíamos de cor, aprendida nos filmes de Tarzan.

E assim se entretinha a malta, com estas e outras fantasias que a chuva nos proporcionava ou em diferentes brincadeiras e tropelias, até que um nova bátega a obrigasse a correr para casa, intimada pelo clamorosos e intimativos chamamentos das mães, cuja voz ecoando por cima dos telhados se fazia ouvir nas quatro ou cinco ruas mais próximas.

De noite é que era pior. Com o pai em casa, que não tinha paciência para as traquinices dos putos, o ambiente em dias de chuva tornava-se verdadeiramente opressivo. Além do ruído das bátegas de água a fustigar as janelas, numa povoação sem tráfego automóvel e casas baixinhas, só se ouvia, no negrume da noite, a música longínqua de um ou outro rádio de um dos vários tascos-carvoarias que, por esse tempo, ali abundavam e que tinha o condão de nos deixar tristes e melancólicos.

Ainda hoje, quando a chuva aperta e bate inclemente nas vidraças, sinto essa melancolia e o coração se me aperta, lembrando-me da angústia de que era tomado em noites assim, feitos monos a olhar uns para os outros, até porque a luz do candeeiro a petróleo mal dava enxergar as mirabolantes aventuras aos quadradinhos do “Mosquito”, ou as histórias do “Pim-Pam-Pum” - saudoso suplemento do jornal “O Século” que o meu pai, sem nunca se esquecer, todas as quintas-feiras retirava do jornal do patrão para nos trazer.

A ideia da morte, não sei porquê, sempre me assaltava nessas ocasiões. Assim, o remédio era ir para a caminha cedo. Por volta das 9 horas já toda a gente estava na cama. O pai, para descansar do trabalho da oficina, a mãe, para descansar da labuta sem fim com a casa e os filhos e nós, para descansarmos das mil tropelias do dia e da canseira infinita de nos chatearmos uns aos outros, na esperança de que a manhã nos trouxesse um sol radioso que nos permitisse sair à rua de que éramos então reis e senhores e saborear toda a liberdade que a completa ausência de carros e a vastidão dos campos circundantes, nesses tempos, nos oferecia...

A pátria de um homem, lembro-me de ter lido algures é a sua infância. É assim que inteiramente assumo a minha. Pátria gostosa mas sofrida; doce e porém amarga quantas vezes: interminável pelo desejo crescer e tão breve quando nos lembramos do que perdemos quando dela só a memória resta; pátria contraditória, pátria amada e odiada, mas jamais esquecida…como todas as pátrias, afinal.

É nesta pátria longínqua que ora me encontro, olhando a chuva mansa que bate na janela, com os olhos arregalados, os beiços e o nariz amachucados contra o vidro, como fazia em menino.

Só que não há ninguém para se rir das momices que faço, do outro lado da rua; já não canto nenhuma das lenga-lengas com que usava acompanhar tais gestos; as vozes já não ecoam no ar lavado, por cima de telhados baixos; já não me apetece ir chapinhar descalço na rua, onde o asfalto já não faz poças; já não existe boa parte dos meus companheiros de cantorias e de donos da rua…e os poucos que ainda existem já, de todo, perderam a imaginação.

E contudo o efeito das gotas de água no vidro, à minha frente, a forma como cada uma delas desliza, mansinha, abrindo caminho através de uma espécie de ribeirinho minúsculo até se juntar a outra mais abaixo, e o conjunto das duas continuar até engrossar uma terceira, e por fim desabar no peitoril da janela, porque já outra lá vem pelo mesmo carreiro… só este efeito, dizia, das gotas de água deslizando no vidro a que encosto o rosto, se mantém igualzinho, igualzinho ao que, em criança, passava melancólicas horas a observar, em dias de chuva. Como este.

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Setembro 2006

9.16.2006

UMA IDA A LISBOA...

Há dias, coisa que ultimamente raras vezes acontece, atravessei o rio e fui a Lisboa. Esta “ida a Lisboa”, desde já previno, para não ser objecto de maldosas intenções, nada tem a ver com o conhecido anúncio “Casal que venha a Lisboa, telefone tal, local sossegado e discreto” em tempos muito frequente nos nossos jornais. Tal anúncio, aliás, já nem se usa mais. Nem é necessário. Hoje é tudo mais directo, mais objectivo: “ boazona, tenho 20 anos, faço isto e aquilo e aqueloutro, espero-te, telefone nº…”. Não, nada disso, Deus me livre. Até porque a minha vetusta idade me põe ao abrigo de tão malévolas como injustas suspeitas e, sobretudo, de tão iníquas tentações.

A minha ida a Lisboa teve a ver, sim, com uma deslocação ao hospital (IPO). Consulta de rotina, felizmente. Numa das salas de espera, por estranha coincidência encontrei um amigo de escola, o Nunes, que não via há um ror de anos. Exclamações de surpresa, abraços, “Há quantos anos, pá!” “Eh pá, o que tens feito?”, “Onde moras?” “Casaste?” Tens filhos e netos?” … enfim, o habitual em tais circunstâncias, excepto o ser dito em voz ciciada, uma vez que ambos, eu e o Nunes, somos pessoas educadas, ao contrário da maioria das pessoas que, neste sítios e em iguais situações fazem um escarcéu tal que não permite ouvir sequer o nome dos doentes chamados através da voz roufenha dos intercomunicadores.

“E que fazes por aqui”, perguntou-me o Nunes no final das calorosas manifestações próprias de tão inesperado reencontro. “Problemas de pele, coisa sem importância, espero” respondi. “E tu? “Eh pá, se queres que te diga, ainda não sei. Estou à espera do resultado de uma endoscopia para saber da gravidade de um problema que me afecta os intestinos, e devo confessar-te que é com algum cagaço que aguardo esse resultado. “Não há-de ser nada” respondi, com aquela “certeza” que a gente sempre tem quando diz estes inevitáveis lugares comuns..
“Era bom é que, a ter alguma coisa, eu tivesse a sorte do Marques. Lembras-te do Carlos Marques, aquele gajo que morava ao fundo da minha rua, muito conservador, e se formou em direito?”. “Sim, sim e o que aconteceu com ele ?”.Eh pá é uma história do arco da velha, nem dá para acreditar”. E vá de me contar a história do Marques, tintim por tintim, que na sala de espera de um hospital há tempo de sobra para contar nem que sejam as mil e uma histórias das mil e uma noites da Sherazade:

O Marques, rapaz do nosso tempo de escola e agora brilhante causídico numa firma de Advogados da capital, tinha uma problema na vida, infelizmente nada invulgar nos dias que correm. Amava uma mulher e casou com outra. Interesses familiares, inércia, preconceitos… o costume. A mulher, Leonor, era médica e a amada, Isabel, sua amiga de infância e namoradinha de adolescente, era agora sua colega no escritório de advocacia. Dois anos depois de casado já o Marques se tinha arrependido de o não ter feito antes com a doce e dedicada Isabel em vez da fria e frívola Leonor. A sua rígida educação religiosa não lhe permitia, no entanto, imaginar sequer uma situação de divórcio.

Anos depois, ao Marques, na sequência de muitas queixas e após repetidos exames e biopsias foi-lhe diagnosticado um carcinoma com metastização disseminada, ou seja, em linguagem entendível, um bruto de um cancro no estômago, incurável no dizer do médico que o assistia. A menos que um milagre acontecesse, acrescentou o clínico, - que não pareceu ao Marques ser pessoa muito dada a acreditar em tal tipo de curas – mas que, no entanto, porque nunca se deve desistir, lhe prescreveu o recurso, primeiro à radioterapia e posteriormente à quimioterapia.

O Marques, como se compreende, ficou desfeito com aquela autêntica a sentença de morte. Isabel foi o seu grande amparo nos meses terríveis que se seguiram.
A radioterapia falhou, tendo começado depois a terrível prova da terapia química com todos os inconvenientes que se lhe conhecem. O Marques não reagia já a qualquer tratamento porque em verdade ele tinha desistido de viver.

Certo dia em que era suposto estar a dormir no seu quarto, levantou-se para ir até à cozinha e ao passar em frente do escritório, ouviu lá dentro, através da porta, anormalmente fechada, a voz da mulher falando ao telefone. Parou para escutar e ouviu, incrédulo a conversa que jamais tinha sonhado ouvir “Sim, querido, é como te digo… Ele já pouco tempo tem de vida… Como? … Meses, querido, alguns meses apenas… Sim, sim, garanto-te, é só teres um pouco de paciência… claro, podemos então fazer juntos a nossa sonhada viagem às Seichelles e irmos aonde quisermos….Não, não hoje não posso… Sim, sim, amanhã lá estarei, à hora do costume”

“Grande cabra”, conseguiu articular o Marques rangendo os dentes. “Mas eu não vou morrer, garanto-te que não vou morrer, não vou morrer”, e escapuliu-se para o quarto, como se nada tivesse ouvido, nada tivesse acontecido. No dia seguinte, com grande espanto e mal disfarçada contrariedade da mulher, resolveu retomar os tratamentos de que tinha desistido. Com o apoio efectivo de Isabel, e sem nuna se dar por achado do que sabia àcerca da infidelidade da mulher, a tudo se submeteu, com uma força de vontade impressionante, com uma coragem de que nunca se julgara capaz e, surpreendentemente, ao fim de alguns meses, começou aos poucos a recuperar, a sentir-se mais forte, a ter menos dores, a ganhar cor e apetite, deixando espantado e incrédulo o médico assistente, cada vez que o examinava.

Ao fim de mais algum tempo, cerca de um ano talvez, fez novos exames e, de acordo com o relatório, estava completamente curado. “Estou espantado, meu amigo, foi um milagre, um verdadeiro milagre”. Acabou por admitir o médico.

Passados alguns dias, o Marques estava pronto a voltar ao trabalho, mas antes de o fazer resolveu pedir uma licença graciosa na sua empresa e comemorar a incrível e inesperada vitória sobre a sua morte anunciada, com um jantar num restaurante chique da cidade, para o qual convidou todos os seus colegas, incluído obviamente a sua fidelíssima Isabel, os seus pais e os de sua mulher que se fingia também muito satisfeita com a sua recuperação e alguns amigos desta, entre os quais se contava o amante que ele, com muita astúcia e paciência tinha acabado por identificar e que era, afinal, senão propriamente um amigo, um fulano das suas relações comuns.

Ninguém faltou, claro. Todos vestidos a rigor, uma mesa ornamentada, com fino gosto, um serviço impecável, um convívio simpático e ruidoso e por fim os brindes, entre os quais se salientou pelo seu tom emocionado, o da pérfida Leonor e por fim o do homenageado. Agradeceu a todos o acompanhamento e solidariedade na sua dolorosa provação e terminou com uma declaração inesperada. “E agora, meus amigos, tenho prazer de vos anunciar que aproveitando a licença graciosa que solicitei e me foi concedida, parto dentro de dias para as Seichelles (a escolha deste destino não era inocente, como nós sabemos) acompanhado da minha querida… Isabel, que tanto me apoiou, como sabem na minha doença. Imagine-se o burburinho, as exclamações, os gritinhos, e logo a voz titubeante e pretensamente indignada da estupefacta Leonor… “Então, então e eu…?” Você, minha querida, respondeu impassível o Marques, vai para a puta que a pariu, acompanhada desse chulo que está ali sentado (e apontou-o com o dedo) com quem quem voçê me traia, garantindo-lhe a certeza da minha morte iminente. E que vos faça bom proveito.
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É esta, em traços gerais a história mirabolante que, boquiaberto e incrédulo, escutei do Nunes. Omito, por desnecessários e fastidiosos, certos pormenores e pícaros comentários com que ele, excelente narrador a enfeitou e lhe deu colorido. Mas juro que ela contem apenas os elementos que julguei necessários ao claro entendimento de quem a leia – o que, espero aconteça consigo, estimado leitor.

Para fim de conversa, que entretanto foi interrompida pela voz do intercomunicador a chamar-me para a consulta, para a qual corri após um abraço ao Nunes e desejo de boa sorte, apurei ainda que o Marques acabou por casar com a Isabel, que tiveram dois filhos e alguns netos e que, velhotes como nós próprios, ainda vivem, numa bela moradia lá para os lados de Viana do Castelo de onde ela é natural.

Pois é. Mais uma vez aprendi algo com uma ida ao hospital. Na verdade, cada vez que entro em algum estabelecimento hospitalar, saio de lá quase sempre mais optimista, por constatar que qualquer problema que me esteja a afectar no momento é, por via de regra, mesquinho e insignificante comparado com os quadros de miséria que ali se me deparam. Desta vez, graças à história do Marques, eu aprendi ainda que, a juntar ao sábio aforismo popular de que “o amor faz milagres” poder-se-á acrescentar “e o ódio também”.

9.04.2006

A RAINHA DE SABÁ

foto: desenho a carvão de minha autoria.
Teria na altura uns 17 anos

Ela entrou como se fosse a rainha de Sabá. É evidente que não faço a mínima ideia de como seria e que formas teria essa tal rainha que, diz a bíblia, terá vindo, de terras longínquas, visitar e seduzir o poderoso e sábio rei Salomão. Mas, na minha imaginação, ela teria um aspecto que não andaria longe da figura que acabava de entrar: fria, altiva, elegante, formas opulentas, busto farto, bem proporcionado, cabelo preto bem tratado, saia preta, blusa preta de seda com um laço preto, sapatos de salto alto, pretos, e meias pretas rendadas que, mais do que para esconder, se destinavam inequivocamente a evidenciar, através do caprichoso desenho da renda, a perfeição das pernas altas e bem torneadas. Tudo nela era preto ou escuro: desde o vestuário à cor morena da pele, das bem desenhadas sobrancelhas, aos cílios longos e sedosos, dos olhos amendoados, ao blush das pálpebras, até ao fino traço com que acentuava a saliência dos lábios, carnudos e sensuais.

O café estava praticamente vazio, mas ela passou indiferente por entre as filas de mesas e foi sentar-se ao fundo, junto da larga vidraça, precisamente em frente de mim a duas ou três mesas de distância. Achei estranho, claro.

Talvez fosse porque naquele sítio houvesse mais claridade. Eu próprio o escolhera precisamente por isso, para me facilitar a leitura do livro que levava. Para os Cafés levo sempre um livro ou um jornal e escolho sempre os lugares de maior claridade, Ainda hoje, como então, sei de cor os cafés com melhores condições de luz nas áreas que frequento.

Ao sentar-se, traçou negligentemente as pernas sem sequer cuidar de evitar mostrar a cuequinha rendada, curiosamente vermelha, destoando de forma ostensiva do preto exclusivo do seu restante trajar. Era como se fosse uma negaça, um isco, um chamariz destinado a atrair uma eventual vítima indefesa.

Se era essa a intenção bem o conseguiu, pois eu não conseguia retirar os olhos daquela provocação vermelha ao fundo de umas coxas de enlouquecer, no prolongamento de umas pernas monumentais que pareciam não ter fim,

Durante alguns instantes ela permaneceu imóvel, de olhos semicerrados, alheia a tudo o que a cercava, como se mais ninguém existisse, naquele Café – talvez para que eu me sentisse à vontade, olhando-a sem constrangimento. Pediu depois um café, puxou de um cigarro longo de ponta dourada que acendeu com um isqueiro de estilo requintado, que conservou, acariciando, numa das mãos, enquanto, com os lábios estendidos em forma de beijo, se entretinha a soltar pequenas argolas de fumo que lentamente subiam, se alargavam e se desfaziam no ar.

Foi aí, no intervalo de uma dessas volutas de fumo, que se dignou olhar-me, precisamente numa altura em que, descansado com a sua aparente indiferença a tudo o que a cercava, eu me tinha atrevido a olhar, sem disfarce e já em ponto de rebuçado, a encantatória cuequinha vermelha.

Apanhado em flagrante, ruborizei e desviei o olhar de uma forma desajeitada e comprometida - pois me tinham ensinado que não era de bom tom um cavalheiro fitar uma senhora de forma insistente. Fingi, para disfarçar, mergulhar na leitura do livro que, inerme, permanecia aberto em cima da mesa. Largo tempo fiquei assim simulando uma leitura inexistente mas sem ver sequer uma letra à minha frente, tão perturbado estava, e com a sensação nítida de que ela não mais desviara os olhos de mim à espera de captar de novo o meu olhar e com isso me embaraçar. Assim foi. Mal ousei erguer os olhos, lá estava ela, com um sorriso malicioso, fixando em mim aqueles olhos enormes que pareciam encher a sala inteira.

Voltei ao livro que não lia e, sem a olhar, comecei a reconstituir mentalmente os traços e as formas que tivera ocasião de apreciar. E no meu imaginário não era ela que estava ali era alguém que, além de me parecer a rainha de Sabá, constituia um misto de Ava Gardner e Edy Lamarr, dois dos meus ídolos morenos de Hollywod, nesse tempo. E então ganhei coragem. Se ela era uma diva do cinema também eu podia ser um dos seus galãs. Porque não o Clark Gable, o Gary Cooper ou Charles Boyer? Ergui os olhos mas a minha coragem logo se desvaneceu quando vi que ela continuava a fitar-me com um sorriso meio divertido. Consegui finalmente controlar-me e enfrentar o seu olhar, que ela fazia agora questão de apresentar receptivo e cheio de promessas.

Era óbvio que ela me estava a galar e queria conversa, pelo menos, Só que eu não sabia o que fazer com um avião daqueles, tanto mais que era absolutamente inexperiente no que diz respeito a mulheres, para além do que conhecia dos filmes e dos romances. Levanto-me e vou ter com ela? Como proceder? Será uma prostituta? Ná, não ia fazer a minha estreia com uma mercenária. Horrorizava essa ideia. E se não fosse? À falta de uma resposta às minhas dúvidas permaneci quedo e mudo no meu lugar, muito embora já conseguisse enfrentar-lhe o olhar que parecia agora convidativo mesmo.

Como eu não me mexesse, ela chamou o empregado de mesa, pagou, dirigiu-se para a saída, altiva, tal como entrara. Porém, ao chegar à porta e imediatamente antes de a transpor, voltou a cabeça e fez-me um inequívoco – diria mesmo imperioso - aceno para que a seguisse. Sim, mais do que um convite, assemelhava-se muito a uma ordem.

E eu, como que hipnotizado, obedeci. Comecei a segui-la, tendo o cuidado de manter uma certa distância. Não era longe a casa dela. Era uma ampla e bonita moradia numa correnteza de outras de idêntico aspecto e altura. Meteu a chave à porta e só voltou a cabeça antes de entrar, para se assegurar de que eu a tinha seguido. Quando me aproximei, constatei que a porta estava apenas encostada. Meio receoso, transpu-la, fechei-a e comecei, lentamente e com o coração acelerado, a subir a dúzia e meia de degraus que levavam ao piso superior, onde se encontrava uma porta também entreaberta.

Franqueei-a, depois de meter a cabeça a espreitar. Ela esperava-me. Sabia que vinhas, disse. Pegou-me na mão e conduziu-me ao quarto, todo alcatifado, onde, destacando-se de outros móveis, todos de bom gosto, cadeiras e cómoda em mogno e dois maples forrados de tecido vermelho, avultava a cama – uma cama enorme, revestida também com uma colcha vermelha, que mais parecia uma arena para performances amorosas do que um simples leito para passar as horas de sono.

Pediu-me para esperar, que já voltava. Olhei em volta, mirei tudo cuidadosamente e o que mais me chamou a atenção foi o retrato de um homem, bastante jovem, numa moldura sobre a cómoda, em frente da cama. Que diabo, pensei. Quem será este gajo? Será que fui atraído a uma cilada? O homem, ao contrário dela, era alourado, talvez mesmo um pouco ruivo, boa figura, com umas grandes patilhas, nariz bem implantado, olhar penetrante, boca bem desenhada. Não sei porquê imaginei-o artista de circo, trapezista ou por aí. Entretanto a rainha de Sabá voltou. Vestia agora um neligé vaporoso, vermelho também. que mais mostrava do que escondia do seu corpo esplendoroso. Trazia duas taças na mão, tendo-me estendido uma sem sequer me perguntar se eu bebia ou se me apetecia. Eu não bebia mas aceitei. Recusar era mais complicado para mim, dado o nervosismo em que me encontrava. Julgo que seria champanhe, pela espuma e pelos piquinhos no céu da boca. Bebi feito tonto. Poderia muito bem ser uma mistela, mas eu estava positivamente seduzido pelo requinte do tratamento que me estava a ser dispensado.

Poisadas as taças, abraçou-me e foi-me empurrando com o corpo para a cama. Ali chegado, empurrou-me com as mãos fazendo-me cair de costas e começou lentamente a despir-me, olhando-me no fim com um olhar inexpressivo que me deixou sem saber se gostava ou não do que via. Comecei a ficar incomodado e sem jeito, perante a despudorada inspecção. É que se ela era a rainha de Sabá eu estava bem longe de ter a sabedoria e a experiência do rei Salomão.

Só depois se despiu, limitando-se para isso a deixar cair o negligé com um gesto displicente e que me pareceu mesmo algo entediado. Antes de saltar para cima de mim, porque foi isso que ela literalmente fez, voltou-se para trás e murmurou: desculpa, Rodrigo. Confesso que fiquei estupefacto e algo intrigado. Seria que a mulher era uma bruxa e que eu estava sendo objecto de um qualquer feitiço?

Perguntei então timidamente: Rodrigo? como é que a senhora sabe o meu nome? Ela pareceu tão espantada como eu. Tu chamas-te Rodrigo? Pelo vistos é uma agradável coincidência. Rodrigo é o meu marido. Aí, fiquei sem pinga de sangue: - Mas o seu marido está aqui? - Não, tolo, o meu marido é aquele do retrato em cima da cómoda, que eu bem te vi a olhar para ele. - E se ele aparece? - Não aparece, foi de viagem. - E quando volta? - Não volta. Da viagem que ele empreendeu, faz hoje três meses, ninguém volta. Fiquei gelado. O que ela pretendia de mim, pensei eu, já não vai levar. Só que ela tinha uma sabedoria e uma técnica capazes de ressuscitar um morto. E eu, senhores, tinha apenas 18 imberbes, inexperientes mas fogosas primaveras. Como por artes mágicas, aí estava, de novo, pronto a funcionar. E ela aproveitou bem. Não vos vou descrever tintim-por-tintim o que se passou. Se querem excitar-se leiam o Kama-Sutra ou os Jardins do Paraíso, ou os Segredos de Alcova ou outra obra do género. Só vos digo que me comeu de toda a maneira, posição e feitio. Só nunca me deixou, afastando-me suavemente com a mão, beijá-la na boca. Seria certamente uma promessa feita ao Rodtigo.

Quando a acabou, vestiu o negligé, virou-se para o retrato, fez uma vénia como se estivesse diante de um santo e pronunciou com um ar de pessoa consolada, Obrigada, Rodrigo. Perante o meu espanto, tive a ilusão que o homem do retrato sorriu com um ar feliz, mas quando eu, completamente desvairado com tudo o que via e ouvia, voltei a fixar o retrato para me certificar de que tinha sido uma ilusão, a minha imaginação já febril, certamente, levou-me a ver o sorriso que o homem tinha dirigido à mulher transformar-se num esgar de ódio e num olhar torvo que me eram, um e outro, obviamente endereçados.

Vesti-me à pressa e desajeitadamente. Ela deu-me então um beijo na face e ciciou-me ao ouvido. Agora vai e esquece-te de que alguma vez tenhas estado aqui.

Saí sem uma palavra.

Quando cheguei a casa, ia pálido como a morte, no dizer de minha mãe. Não quis jantar - o que mais ainda a preocupou, pois sofria por esses anos de um fastio devorador, e fui de imediato para a cama, com a sensação de arder em febre. Passei a noite num sono intermitente e agitado, parecendo-me ver no negrume do quarto os olhos torvos e o riso malévolo do tal Rodrigo do retrato. E assim andei uns dias meio esquisito, a ponto de minha mãe por força me querer levar a um médico. Por fim tudo passou. Era uma idade com uma grande capacidade de recuperação e eu não fugia à regra.

Durante anos e anos, nunca passei na rua onde tão insólito encontro me aconteceu e quando muito mais tarde tive a oportunidade e a coragem de ali passar já a bonita moradia e toda a correnteza adjacente tinha sido substituída por imóveis de cinco pisos, vulgaríssimos e inestéticos. Que terá sido feito da dama e do retrato do olhar torvo? Não sei, nem estou interessado, mas, pela idade que tinha na altura, a Rainha do Sabá certamente que já foi fazer companhia ao seu querido marido de que eu, durante cerca de uma hora fui substituto inesperado e involuntário.