ESCRITOS OUTONAIS

2.24.2008

O TEMPO DAS HIENAS (2ª parte)

Sede da PIDE na Rua António Maria Cardoso
No antro das feras


Foi nessa noite que me vieram buscar...

Devia ser perto da meia noite, precisamente quando exausto da vigílias das noites anteriores, conseguira adormecer. Abertas as portas com o habitual estrondo e rangido de chaves, surgiu um dos guardas, recortado na pálida luz do corredor:
“Sr. Gouveia, prepare-se para ir à polícia”. Era a frase sacramental. Levantei-me assarapantado, enfiei os sapatos nos pés e lá me levaram para a António Maria Cardoso numa carrinha igual à que me tinha trazido, para uma luta desigual para a qual partia já fragilizado por duas noite de insónia, de ansiedade e de sofrimento.
Não era por acaso que não me tinham interrogado à chegada, quando eu vinha fresco e pimpão. Eles sabiam o que faziam.


Lá estava a mesma sala quadrada, a mesma secretária e a mesma máquina de escrever já com uma folha de papel presa nos carretos, um agente sentado em frente e desta vez acompanhado de um inspector, de nome R..., como vim depois a saber. Em frente da secretária, a meio da sala, outra cadeira onde me mandaram sentar.

Julgava eu que após a identificação, que aliás já constava na folha metida na máquina e que me foi lida para confirmação, eles entrassem directamente no assunto e me formulassem uma qualquer acusação que me caberia a mim tentar refutar. Mas não foi assim. O agente ajustou o carreto, poisou os dedos no teclado., ajeitou os óculos e o Inspector disparou:
“Pode começar, senhor Gouveia”
“Mas começar o quê? Qual é a acusação que têm contra mim?”
, retorqui genuinamente surpreso, pois não fazia ideia nenhuma de que era assim que as coisas se passavam.
“Não o acusamos de nada, senhor Gouveia, você é que deve saber as actividades em que tem andado metido e vai-nos contar tudo desde o princípio, Nós apreciaremos depois se o que nos conta coincide com o que nós já sabemos a seu respeito.
Armei-me em forte, com uma fortaleza que em nada correspondia aos meus receios interiores:
“Não tenho nada a contar. Se quiserem formulem-me uma acusação concreta e eu decidirei se tenho alguma coisa a dizer-vos.”
O inspector riu-se na minha cara. Uma gargalhada sonora, insolente, depreciativa e acrescentou:
Olhe, eu nem vou perder tempo consigo. Só lhe digo que o que está acima de si e o que está acima desse, já falaram. Agora é consigo. Deixo-o entregue aos meus rapazes. Temos todo o tempo do mundo para ouvir a sua história”.
E saiu com expressão trocista e o ar gingão que fazia gala em exibir.

O agente, do outro lado da secretária, depois de insistir, comigo para começar a “contar a minha história, que era melhor para mim e patati-patatá” e de posteriormente ter enveredado por outro tipo de conversas que nada tinham a ver com o motivo da minha prisão, face ao meu obstinado e absoluto silêncio, puxou de um livrito de banda desenhada e passou a ignorar-me por completo, instalando-se na sala um silêncio que me dava descanso por um lado, mas que acabava por se tornar enervante. De vez em quando levantava-se, ia até à janela, voltava a sentar-se, tamborilava com os dedos na secretária, bocejava e só de longe em longe voltava a insistir: “Então, Sr. Gouveia, comece lá. Só está a perder tempo!

Assim se passaram quatro horas que me pareceram ter a duração de quatrocentas. Só que muitas mais se haveriam de passar e cada vez mais custosas de suportar.

Por volta das quatro da manhã, entrou outro agente a substituir o primeiro. Era um homem de meia idade, mais velho do que os outros pides com quem tinha contactado, corado, ar de seminarista e também de óculos. Disse chamar-se não-sei-quantos Sardinha, sentou-se, insistiu várias vezes para que eu “contasse a minha história”(parecia um disco falhado), e perante o meu silêncio deixou-me em paz durante algum tempo.
A dada altura saiu da sala e pouco depois voltou acompanhado de outro. Este vinha armado em arruaceiro. Aliás era essa uma das tácticas usadas pela PIDE. Vinha um com falinhas mansas, tipo “bom rapaz”, “que estava naquela profissão porque não tinha arranjado outra melhor”, “que em todo o lado havia bom e mau”, “que ele compreendia que as pessoas não fossem afectas à “situação”. etc. e tal e logo de seguida entrava outro, com ar de ferrabrás, mata e esfola, tentando aterrorizar o preso. Vim a saber depois que eles alternam frequentemente os papéis: o que faz de bonzinho com um preso faz de vilão com outro e vice-versa. Este - combinada certamente a estratégia, cá fora - entrou logo à bruta e com grande estrondo: “Então este é que é o gajo que não quer falar”?

Quando o vi entrar, de rompante e com ar ameaçador, julguei que me ia agredir e levantei-me de um salto, numa posição instintiva de defesa. Limitou-se a dar um pontapé na cadeira, que caiu por terra com um barulho dos diabos, fazendo acorrer outros pides à porta. Levantou-a, agitou-a ameaçadoramente diante dos meus olhos e saiu vociferando perante o riso alvar dos comparsas” “Este cabrão não torna a sentar-se, enquanto não vomitar tudo cá para fora”. Tudo não passara de uma encenação para me retirarem a cadeira.

Às oito da manhã entrou um novo pide, ao meio-dia outro, outro às 16 horas, outro às 20, outro às 24 e era assim de quatro em quatro horas, cada um deles insistindo para que eu falasse - uns de mansinho, outros ameaçadores, e eu roído por dentro, no mais absoluto silêncio, andando de um lado para o outro como um tontinho, sem nunca mais me ter sentado desde as quatro horas da manhã.

Nessa segunda noite, a minha asma agravou-se de tal forma, que julguei morrer de asfixia e mesmo ali, naquela sala, me foi aplicada uma injecção. Confesso que tive receio que fosse para me liquidarem ou pelo menos para me doparem.. Sentia-me imensamente cansado. Esta era a minha quarta noite sem dormir, uma vez que nas duas noites passadas no Aljube, além do sofrimento provocado pela asma, não tinha igualmente pregado olho.
Passou-se essa infindável noite. Passou-se outro inenarrável dia. Alguns dos agentes começaram a repetir-se nos turnos e ao entrar mostrava-se surpreendidos:
O quê, você ainda aqui está? Você é que sabe. Olhe, como já reparou, nós mudamos de quatro em quatro horas. Você é sempre o mesmo. Você ainda acaba por endoidecer”.
E a verdade é que eu comecei mesmo a recear isso.
A uma dada altura, porém, eles abriram um pouco o jogo: “Diga quem o aliciou para o Partido, que actividades desenvolvia, com quem reunia, onde tinha essa reuniões...enfim, o senhor sabe e nós também sabemos, pois o seu controleiro já cantou. Só que contado por si tem outra graça”.

Na verdade eu já sabia que alguém tinha falado em mim, pois já fora avisado por um amigo e colega da CP - o senhor Homem de Figueiredo, velho socialista e homem de uma finura rara, que há dois meses se encontrava detido no Forte de Caxias. Só que eu não tinha feito grande caso do aviso. A minha actividade política era tão insignificante. Limitava-me, às vezes, a redigir e distribuir exposições ou abaixo assinados reivindicando melhores condições de vida e melhores salários na minha empresa, assinava outros, de interesse para a população em geral, participara activamente em várias campanhas eleitorais, designadamente nas do General Delgado para a Presidência da República, tudo isto de uma forma quase esporádica, e era tudo. Nada que pudesse ser considerado ilegal Só que, quando o fazia, o fazia de forma organizada e em conjunto com outras pessoas. Ora isso é que Salazar e todo o seu aparelho repressivo não toleravam

E voltou a cair a noite. A terceira naquela sala e a quinta sem dormir. O não dormir, apesar de mau, ainda não é o pior. O pior é a ansiedade, a angústia. “O que é que, exactamente, estes gajos saberão?”, “Como é que isto vai acabar?”, “Como é que me vou livrar disto sem comprometer ninguém?”. Este é que é o maior sofrimento. E a PIDE sabia-o e explorava esse sentimento com requintes de sadismo. “Ah se eles me fizessem uma acusação concreta que eu pudesse refutar ou aceitar, desde que isso me comprometesse só a mim!

Embora naquela situação não houvesse diferença entre ser dia ou ser noite, porque nunca se dormia, a verdade é que encarava com verdadeiro terror a chegada da noite. À noite os silêncios e os ruídos assumem significados que se podem tornar insuportáveis, sobretudo quando se está cansado, sobre pressão, só, fraco, e totalmente à mercê de um poder tenebroso que se sabe não recuar perante qualquer crime.

Entretanto, a falta de dormir, as horas consecutivas passadas de pé, a asma, o medo e toda a carga nervosa de que estava possuído, começavam a produzir os seus efeitos. Comecei a ter picadas nos olhos, a ver uma espécie de pirilampos imaginários que bailavam no ar, à minha frente, enquanto no chão, os inúmeros nós das tábuas do soalho se transformavam em baratas que corriam em todas as direcções, inclusivamente parecendo que começavam a trepar-me pelas pernas acima, enquanto a cabeça me estoirava, como se apertada por um capacete de aço.

Um dos pides de turno nessa noite era um tipo alto, magro, bastante novo, com um ar de malandro da noite, constantemente mascando pastilha elástica e apertando na mão uma pequena bola de borracha esponjosa, destinada a dar força na mão e ganhar músculo no braço. Aliás, gabava-se: “Como vê, não sou grande atleta, mas gajo a que eu dê um murro, vai ao chão de certeza”, e mirava-me como quem diz “Vê lá, se queres provar”.
Tendo-se cansado das suas exibições de boxeur malandro, começou a atazanar-me com a eterna lengalenga: “Então Sr. Gouveia”, “Quando é que se decide, Sr. Gouveia”. Os meus nervos estavam em franja. Não me contive e gritei-lhe: “Vá chatear a sua prima, seu pide de merda”. Veio direito a mim, numa fúria. Rezei para que ele me batesse. Isso enrijar-me ia. Encostei-me à parede, tendo apenas o cuidado de me afastar da janela, por onde já outros presos tinham “caído” e aguardei expectante. Não devia ter ordens para o fazer, pois se limitou a abanar-me com violência, ameaçando que me dava um enxugo de porrada, se voltasse a insultá-lo.
Voltou a sentar-se e sentenciou:
“Faça como entender, mas aviso-o de uma coisa. Você, daqui, só tem três saídas: Tribunal Plenário, Júlio de Matos ou Alto de São João”. E não voltou a dirigir-me palavra até ao resto do turno. Estas três únicas e sinistras saídas eram, aliás, constantemente repetidas por cada pide de turno: Tribunal plenário, Júlio de Matos ou Alto de São João... Tribunal plenário, Júlio de Matos ou Alto de São João, até a cabeça me estoirar...

À medida que a noite progredia o meu estado físico e psicológico ia-se deteriorando. Eu pressentia que qualquer coisa se estava passando que trazia os pides muito agitados. Havia vozes exaltadas e por vezes correrias nos corredores. Parecia-me ouvir gemidos e gritos e tudo isto tomava significados inquietantes e proporções desmesuradas no meu atormentado cérebro. Cá fora, depois das eleições roubadas ao General Delgado reinava grande agitação política, falava-se em golpes contra o regime. Em Cuba tinham começado por aqueles dias as execuções dos torcionários e esbirros da ditadura de Fulgêncio de Baptista, derrotado por Fidel na noite de Ano Novo, o que muito assustava a PIDE de cá e as várias PIDES por esse mundo fora. E eu sabia que, se algo fosse tentado contra eles, eles não iriam perder tempo com os presos que tivessem a pouca sorte de estar ali, no seu antro, naquela altura. Eles seriam pura e simplesmente abatidos.

A agitação que notava da parte deles, transferia-se para mim e provocava no meu cérebro cansado visões macabras e assustadoras. Tive medo. Muito medo. Como iria acabar aquele pesadelo? Vim a saber depois que nesse mesmo dia, 17 de Janeiro, o Capitão Henrique Galvão tinha fugido do hospital onde se encontrava há largo tempo sob prisão, refugiando-se na embaixada da Argentina. Era um grande revés para o regime, a juntar a outro bem próximo, ocorrido no dia 12, na véspera da minha detenção: o pedido de asilo político na Embaixada do Brasil, por parte de Humberto Delgado. Natural era, pois, que também os pides andassem desvairados e amedrontados mesmo. Tanto como eu, provavelmente.

Alta madrugada, aparece-me o inspector R... que nunca mais vira desde a primeira noite. Vinha bêbedo. Ficou especado no meio da sala mirando-me de alto a baixo, como que avaliar o estado da presa, e só depois avançou lentamente para o sítio onde eu estava, de pé, encostado à parede. Pôs-me a mão no ombro e abanou-me. Cheirava a vinho que tresandava. O cheiro a álcool exacerbava a minha asma. Fixou-me com olhos vermelhos e injectados de ébrio. encostou o rosto encarniçado ao meu - parecia que me ia beijar - e sussurrou-me ao ouvido: “Você, vê-se mesmo que está de peito feito para levar um ensaio de porrada. Não lhe damos esse prazer, ouviu? Não lhe damos esse prazer, sr. Gouveia” E não deram mesmo, tal como entrara, saiu porta fora sem mais uma palavra. Ficou por ali o seu pequeno e avinhado show.

Para cada preso eles tinham um tratamento adequado. Eles bem sabiam que, para quem está mais virado para actividades do espírito, a pressão psicológica, o esgotamento desse mesmo espírito que é afinal a sua ferramenta de trabalho, causa mais danos do que a pancada. Lembro-me de um generoso moço algarvio, o Manuel Lagos, latagão capaz de varrer meia dúzia de pides numa luta aberta, ter chegado à camarata do Aljube, para onde depois vim a ser transferido, chorando como uma criança e a dizer entre soluços de revolta: ”sacanas! Bateram-me! Bateram-me! Sacanas!. Bateram-me na cara! Na cara, sacanas!”. E não era o corpo que lhe doía, não. Era o amor próprio ultrajado. Tanto assim, que dias depois e sempre que se lembrava disso, as lágrimas corriam-lhe e repetia as mesmas magoadas palavras.

Lembro-me de outro, o João Borges, astuto camponês de Bencatel, que tendo chegado “da tortura do sono”, depois de não sei quantas noites, ele não dizia “Passei tantas noites sem dormir”. Ele exprimia assim sua revolta “Eh, camaradas! as noites que eu passei lá além, sem descalçar as botas.! “
É isso. A PIDE tinha tido bons mestres nos émulos de Hitler, primeiro, mais tarde da CIA e de outros que tais. E sabia bem onde as coisas doem, como doem e a quem doem.

Foi uma noite terrível aquela. As falsas baratas e os imaginários pirilampos eram cada vez mais numerosos e mais rápidos nos seus saltos e fantásticas acrobacias. Os pés inchavam-me, as pernas não as sentia. As dores nos rins eram atrozes. Não será por acaso que hoje tenho tantos problemas nas pernas e na coluna. Por incrível que pareça, não tinha sono. Os olhos esbugalhavam-se, ardiam-me, picavam-me, viam os tais pirilampos, mas nada de sono. E principalmente a asma, que não me dava tréguas

Não sei se haveria ali perto algum bar ou sociedade de recreio (nunca averiguei isso) mas durante boa parte da noite (era Sábado) ouvia música de um baile qualquer ao longe. O carnaval devia estar próximo e havia alguém que cantava uma canção brasileira, então muito em voga: “Ai morena, seria o meu maior prazer dançar no carnaval contigo, beijar a tua boca e depois morrer”. E depois morrer! Era o que me apetecia nessa hora, com a suavidade da cantiga. E não há contradição nenhuma - ao contrário do que possa parecer - entre o receio de ser morto e a vontade de suavemente se deixar morrer. E eu pensava na minha morena - a minha doce companheira, grávida de quatro meses - da qual nem sequer me fora permitido dar um beijo de despedida. Como ansiei beijá-la, naquela hora!

E assim continuou a noite e se fez dia. E eu ali. Eu e os meus algozes. Eles, sempre renovados e frescos e eu sempre o mesmo. E cada vez mais falto de forças. Era um jogo do gato e do rato em que este uma vez apanhado sabe que o seu destino é inexorável, Tenho assistido inúmeras vezes a esse prolongado jogo. O gato que filou um rato não o papa logo. Brinca com ele, atira-o ao ar, deixa o fugir, para logo de seguida o apanhar de novo, joga com ele de uma pata para a outra, como um jogador de hóquei, avançando com a bola, driblando o adversário em direcção à baliza, abocanha-o como se o fosse tragar, deixa-o fugir de novo e de novo se precipita sobre ele. E nestas sádicas manigâncias se diverte, tempos infindos, até que lhe dá o súbito golpe de misericórdia e regaladamente o papa. Eu era o rato. Como poderia esquivar-me ao golpe de misericórdia?

E o dia se passou, longo, sofrido, interminável. E voltou a noite. Sentia que era humanamente impossível aguentar muito mais, mas fiz um esforço para esticar as minhas resistências. No fundo era mais uma questão de amor próprio, de dignidade, de respeito por mim mesmo. Sentia que o momento de tomar uma decisão estava chegando. No meu cérebro cruzavam-se mil esquemas com vista a uma saída do labirinto infernal em que me encontrava metido. Só que uns anulavam os outros, opunham-se, cavalgavam-se, contradiziam-se. Nada fazia sentido.

Cansado do prolongado tumultuar de ideias, mergulhei, durante horas, na mais profunda apatia. O olhar ausente, o crânio uma caixa oca que parecia não fazer parte do meu corpo. Chegou a meia noite e tive consciência de ter chegado ao limite das minhas capacidades. Já que a única saída era, como se me exigia, “contar a minha história”, resolvi contá-la, à minha maneira, se fosse possível. Dependia do que eles soubessem.

Uma das suas exigências era saber quem me tinha aliciado para o Partido, como e quando. Ora, quem me tinha metido em tais andanças fora um colega e querido amigo, o Raul Reis, que trabalhava em Santa Apolónia, e eu por nada deste mundo queria incriminá-lo (mal sabia eu que ele fora preso precisamente no mesmo dia que eu, bem como outros dois colegas de Santa Apolónia, o António Reis, velho activista dos Centros Republicanos e o Mário Ribeiro Sanches, prestigiado árbitro de futebol).

Assim, já a manhã se aproximava, inventei um fulano que pretensamente tinha conhecido num piquenique de jovens do Movimento Nacional Democrático, o qual me tinha marcado um encontro num determinado sítio, e ali me propusera que eu me encarregasse de determinadas tarefas de agitação e propaganda dentro da CP e arranjasse outros colegas para comigo colaborarem em tais tarefas. Disse que sim e esporadicamente passara a fazer alguns desses trabalhos. Tudo isso era verdade, só que quem me levou até esse indivíduo, para mim completamente desconhecido foi, como atrás referi o meu colega Raul Reis - que eu deixei fora da história e que, entretanto, já faleceu há muitos anos.

Queriam saber o nome do indivíduo em questão. Aí foi fácil para mim esquivar-me. Pura e simplesmente não sabia. “Diga o pseudónimo”. Também não havia, da sua parte, qualquer pseudónimo. Referia-me a ele como “João”, mas era uma iniciativa minha. Mais tarde esse “João” afastou-se e apresentou-nos um substituto a quem eu e os meus amigos nos referíamos como “João II”. Posteriormente veio outro a quem chamámos “João III” e finalmente um último (julgo que tenha sido este que falou em nós à polícia), a quem apelidámos de “João IV”. Comentário de um dos pides presente: “Porra! Por pouco não chegavam ao João XXIII” - alusão óbvia ao simpático e carismático Papa, que então ocupava a cátedra de São Pedro.

Era tão pequeno, afinal, o “crime” que eu tinha praticado. Aliás a sucessão de “Joões” era reflexo da pouca e desligada actividade que eu e os meus colegas desenvolvíamos. Era muito maior a minha actividade cívica como cidadão não organizado (campanhas eleitorais, por exemplo) do que, organizadamente, a nível de célula de Empresa. Aliás - o que é um defeito - nunca me senti grandemente vocacionado para trabalhar em grupo.

A parte mais custosa da “minha história” - a que me fizera suportar todos aqueles dias de autêntica tortura - era revelar o nome dos colegas que faziam parte do grupo que comigo executava algumas dessas tarefas (distribuir uns panfletos, recolher assinaturas a favor de qualquer movimento de intervenção cívica, exigir a libertação dos presos políticos, ou a reposição de direitos fundamentais da constituição, constantemente violados, ... coisas desse género, naturais em qualquer regime minimamente democrático).

Mas essa era precisamente a que eles estavam, porventura mais interessados em conhecer. Aí houve um novo impasse, porque eu não queria continuar. Mas quando se começa.... Face à minha resistência ensaiaram uma falsa condescendência: “Diga ao menos os pseudónimos”. Fui tão ingénuo que caí na esparrela: Só que, tirando eu (que para os “Joões “ era André e o Artur, que para eles era Paulo, ninguém mais tinha pseudónimos. Assim, tanto me moeram o juízo que acabei por inventar mais quatro pseudónimos, acreditando, isto é, querendo acreditar - como se isso fosse possível - que tudo ficaria por ali. Como seria de esperar, depois dos pseudónimos voltaram a exigir os nomes. Era pior a emenda que o soneto, pois a existência de pseudónimos, que nem era verdadeira, poderia fazer pressupor um grau de organização que na realidade não existia. Embezerrei durante mais um par de horas, recusando-me a juntar os nomes aos pseudónimos, mas já não era possível voltar atrás.

Mesmo assim, voltaram à carga: “Só estes? Então e os de Santa Apolónia?” Neguei que tivesse algo a ver com Santa Apolónia, que o Rossio era outra organização (o que não era verdade). Insistiram, insistiram, mas acabaram por desistir, Não deviam ter a certeza, Foi um pequeno alívio para as minhas amarguras.

Já era dia claro quando me largaram, feito um farrapo. E foi só depois de todo este “tratamento” que, antes de me levaram de volta para o Aljube, me tiraram as clássicas fotos para figurar nos seus arquivos com as caras patibulares que faziam questão fosse a imagem dos opositores ao regime. O normal é um preso ser identificado e fotografado logo à chegada, porém, quanto a fotos, a pide só as tirava após a tortura do sono ou outras malfeitorias com o detido de barba por fazer e aspecto taciturno. Ciente das suas perversas intenções tentei contrariar tais desígnios esboçando um sorriso para a câmara. Mas deve ter sido um sorriso muito amarelo - o sorriso de quem trazia a morte na alma.

* * *

Mal entrei na cela, a primeira coisa em que reparei, em cima da tarimba, foi o saco, que imediatamente reconheci, que minha mulher, entretanto me tinha enviado com roupa e artigos de toilette. Ali estavam, sobre a sórdida manta de sorrobeco, o meu pijama muito bem dobradinho, roupa interior, uma camisa, tudo com o cheiro familiar e bom da minha casa, escova de dentes, pasta, pincel da barba, lâminas e sabão, caneta e papel de carta. Com que carinho e apreensão não preparara a Adelina aquela trouxinha com os meus pertences! Pensando nisso os olhos encheram-se-me de lágrimas. Foi dos momentos mais emocionantes de toda a minha vida. Lá estava também a bomba para os ataques de asma guardada em casa dos meus pais, desde que lá saira para a minha própria casa, da qual não voltara a precisar e que agora me enviavam.

Julguei que quando chegasse ao Aljube iria cair na tarimba e dormir como uma pedra, mas para grande surpresa minha e maior desespero, assim não aconteceu. Não só permaneci acordado durante o dia, como não dormi durante toda a noite, nem na seguinte. Receei ter perdido o sono para sempre. Ali estava enrodilhado na tarimba, de olhos abertos, pensando em tudo o que me estava acontecendo, extenuado, mas nada de dormir. Pedi para ir ao médico. Mandou que me dessem uns comprimidos tranquilizantes e só assim, na terceira noite, consegui dormir. Ao fim de nove dias era a minha primeira noite de um relativo e precário repouso, entrecortado o sono de terríficos e infindáveis pesadelos.
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Continua

2.07.2008

O TEMPO DAS HIENAS - 1



Aquele dia 13 de Janeiro de 1959


De acordo com ancestrais crendices populares, há dias azarentos em que nem sequer se deveria sair de casa (já os romanos tinham os seus dias fastos e nefastos). Um dos mais pretensamente enguiçados da nossa cultura é o dia 13 de cada mês. No que me toca, não sou particularmente ligado a esse tipo de superstições, mas a verdade (“yo no credo en brujas, pero que las hay”, hay, como dizem “nuestros hermanos”) aquele dia 13 de Janeiro de 1959 foi, de facto, um dia de muito azar para mim. E não só, já que o meu azar se reflectiu, como é de ver, na minha própria família.

Em boa verdade, o azar que tive neste dia era o mesmo a que estavam sujeitos todos os portugueses que pensavam pela sua cabeça e que, como cidadãos de direito, por palavras e actos, não perdiam ocasião de expressar as suas opiniões e de participar em todas as actividades cívicas que a Lei autorizava e a polícia reprimia.


Pouco passava das 9 horas da manhã. Ainda mal nos tínhamos sentado à secretária para mais um dos rotineiros e enfadonhos dias de trabalho nos escritórios da CP, na Calçada do Duque, quando irrompe na sala o Chefe de Serviço acompanhado de dois indivíduos, de gabardine, tão parecidos entre si no seu aspecto geral, como a famosa parelha Dupont & Dupond das aventuras de Tin-tin. Só que com uma expressão patibular que nada tinha de comum com o ar bonacheirão dos detectives saídos do lápis mágico do Hergé de saudosa memória.

Era o meu amigo e quase irmão, o Artur Vaz, quem eles procuravam. “Polícia Internacional e de Defesa do Estado”, disseram. “Considere-se preso”, acrescentaram logo de seguida. E vá de o encostar à parede e começar a revistar-lhe a secretária. Algumas das gavetas estavam fechadas e o Artur, possivelmente para lhes dificultar a tarefa, teimava que não sabia das chaves. Logo houve um colega muito colaborante (aparece sempre um simpático filho de puta muito zeloso em colaborar com as autoridades) que arranjou uma chave que servia.

Toca a esvaziar as gavetas e passar tudo a pente fino. Enquanto isso, logo que me dei conta do que estava acontecendo, corri para o pátio adjacente aos escritórios e fui de repartição em repartição dar o alarme, informando que estava ali a PIDE para prender o Artur e exortando os colegas a abandonarem os seus lugares e virem manifestar-se cá fora, o que muitos fizeram, juntando-se no pátio com grande clamor, aos gritos de “fora, fora, assassinos!”

Dali a pouco, carrancudos, saíam os dois agentes recebidos com apupos e vaias dos trabalhadores aglomerados no pátio, tendo-se rapidamente afastado, com ar rancoroso e a mão ostensivamente pousada no coldre. Para nosso espanto, porém, vinham sozinhos. O Artur não estava com eles. Teriam desistido de o prender?

Depressa soubemos o que se passara. Achando os pides entretidos a vasculhar os papéis, o Artur, aventureiro como era, meteu-se-lhe na mona que não se iria deixar prender. Dá um encontrão num dos pides que lhe obstruía o caminho, atravessa a correr a comprida sala, pelo meio das secretárias e, perante a muda estupefacção dos colegas que ali permaneciam, sai porta fora.
Os pides sacam das pistolas, lançam-se em sua perseguição. Só que eles não conheciam os cantos à casa e enquanto se dirigiam para a porta que dava para o pátio e pela qual tinham entrado, o Artur descia rapidamente uma série de escadas de caracol que, em sentido oposto, vinham dar à gare da estação do Rossio, desaparecendo no meio dos passageiros.
Nunca mais o viram. Isto é, viram-no três anos depois, quando o prenderam na noite de fim de ano de 1961, na sequência do famoso assalto ao quartel de Beja em que ele era um dos participantes.

Quanto a mim, depois de tudo acalmado, dirigi-me à minha secretária para retomar o trabalho. Qual o quê! Fui imediatamente chamado ao Chefe de Serviço que me informou terem os pides perguntado por mim logo que se lhes escapou o inicial objecto da sua caçada. Não tendo sido encontrado no meu local habitual de trabalho, uma vez que me encontrava cá fora no grupo de manifestantes, concluiu o chefe e concluíram os bófias que eu tinha aproveitado a confusão para me pirar também, pelo que desistiram de me procurar.

Ora, como a sua conclusão fora precipitada, dado que nunca me ausentei das instalações da Companhia, achei que podia continuar com o meu trabalho e os pides, se quisessem que voltassem a procurar-me, ali ou na minha residência. Aliás era isso que aconteceria se, tendo-me procurado na minha casa não me tivessem ali encontrado. Nesse caso, obviamente que eu continuaria a fazer a minha vida normal, apresentar-me-ia ao serviço, como de costume e aguardaria calmamente (para não dizer angustiadamente) o posterior e duvidoso desenrolar dos acontecimentos.

O Chefe de Serviço, porém, não era da mesma opinião. Entendia que, face ao sucedido, eu não podia continuar a trabalhar. Invectivei-o indignadamente, acusando-o de estar, objectivamente, a ser mais Pide que os pides, pois estava, no fundo, a fazer o serviço deles, sem que isso lhe tivesse sido sequer encomendado.

O homem - que até nem era má pessoa - estava tão ou mais enervado do que eu. Pálido e trémulo, hesitava entre a razão dos meus argumentos e o medo pavoroso que a PIDE lhe inspirava. Era esse medo, aliás, essa colaboração passiva, embora nem sempre consciente, que alimentava a manutenção do regime. Face à minha resistência, consultou o Director de Pessoal - esse sim, incondicional afecto ao regime - que, tal como ele, se limitou a lavar as mãos: para eles eu estava à disposição da polícia e não podia continuar ao serviço.

Que fazer? Entregar-me à bófia? Fugir, como o Artur? Só que o Artur não tinha compromissos familiares e eu era casado (recém-casado, aliás) e a minha jovem mulher, grávida, aguardava um filho. E depois, que tinha eu feito que merecesse ser encarcerado? Durante todo o resto da manhã me debati com este dilema.

Depois do almoço tomei a decisão que a situação em que fora colocado tornava inevitável. Após ter escrito um protesto que deixei nas mãos do Chefe de Serviço, contra o seu procedimento absurdo e servilmente colaboracionista, telefonei à Adelina, minha mulher, comunicando-lhe a minha intenção, despedi-me dos colegas, na sua maioria calorosamente solidários e, caminhando lentamente (a pressa não era nenhuma, está bem de ver), saí da Calçada do Duque, atravessei a Rua da Condessa - onde me apercebi, pelos olhares compungidos, que muitos dos moradores que me conheciam já estavam ao corrente do sucedido, passei rente ao Quartel do Carmo, desci a Calçada do Sacramento e subi a rua Garrett, olhando demoradamente as montras.

Demorei-me junto à vitrina da pastelaria Marques, recordando o hábito de, precisamente com o Artur, esborratarmos o nariz e a boca nas montras das pastelarias da zona, com um ar premeditada e exageradamente “gavroche”, para contemplar - como dizíamos em voz alta, de forma a sermos ouvidos pelos escandalizados frequentadores - “aquilo que os sacanas dos ricos comem”.

Saboreei, como se fosse o último da minha vida, um negro, espumante e vagaroso café na Brasileira; acenei ao meu amigo Chiado, sentado no seu eterno banquinho, indiferente, no seu ar chocarreiro, às cagadelas dos pombos que teimosamente o assediam (ainda vinha longe o tempo em que à mesa do café vizinho, mais snob, mais bem comportado, se viria eternizar em bronze o seu confrade Fernando Pessoa); entrei na Livraria Diário de Notícias, ali mesmo à esquina, onde folheei dois ou três livros; detive-me a olhar os cartazes dos filmes em exibição no Chiado Terrase, sendo o principal, julgo, referente ao “Stalag 17”, filme de resistência ao nazismo interpretado por William Holden (belos tempos em que por meia dúzia de escudos se papavam ali duas fitas na mesma sessão e ainda um desenho animado ou o jornal de actualidades): desci a Rua António Maria Cardoso, mirei ainda os cartazes do São Luís e com o coração apertado, mas já mais calmo, entrei no sinistro casarão da famigerada polícia política de Salazar.

Mal sonhava, quando saí de casa naquela manhã fria de Janeiro, beijei a minha mulher e, como sempre, lhe disse “até logo”, que aquele “até logo” iria durar exactamente noventa e cinco dias e, sobretudo, noventa e cinco intermináveis noites.

* * * *

Não era a primeira vez que entrava no antro da PIDE. Já ali tinha estado, alguns anos antes, na sequência de uma contra-fé intimando-me a comparecer para prestar declarações sobre não me lembro o quê (talvez a assinatura de um abaixo assinado contestando o aumento das rendas de casa, vituperando a carestia de vida, exigindo a libertação dos presos políticos). Tudo era proibido nesses tempos!
Nessa altura ia receoso mas calmo. A idade e as responsabilidades também eram outras. Reconheci como minha a assinatura do abaixo-assinado, justifiquei com alguma petulância, diga-se, as razões que me tinham levado a fazê-lo, e assinei tranquilamente o auto de declarações. Rosnaram-me uma série de ameaças que na altura não me deixaram muito preocupado e saí todo “inchado” por ter enfrentado a poderosa polícia política de Salazar. Já tinha que contar aos meus amigos.

Agora as coisas eram diferentes. Mal a porta se fechou atrás de mim fui tomado de grande angústia, uma espécie de claustrofobia. Parecia que o tecto me esmagava. Apeteceu-me gritar, recuar, fugir dali para fora, mas era tarde demais. “Que deseja?” perguntou-me o porteiro (julgo que policial também), com ar razoavelmente cortês. Disse ao que vinha, relatando os episódios daquela manhã. O ar amável desapareceu como por encanto. “Sente-se e espere”.

Passou-se uma boa meia hora que me pareceu uma eternidade. Entravam e saíam pides, galhofando, mas nenhum deles pertencia à brigada que me tinha procurado. Por fim lá aparecerem: “Com que então ganhou juízo e arrependeu-se de ter dado à sola! Foi o melhor que fez”. Neguei que tivesse fugido, mas isso pareceu ser-lhes indiferente. O importante, para eles, é que eu estava ali e a sua folha de serviço não ia ser afectada pelo fracasso da operação de que tinham sido incumbidos.

Fizeram-me subir, um à minha frente, outro atrás, até ao último piso do edifício, por uma íngreme escada de degraus encerados, de madeira escura, ladeada por um corrimão que me pareceu colocado a um nível mais baixo do que é usual. Conhecendo os antecedentes de outros presos que se tinham “descuidado” e precipitado daquelas escadas, subi rentinho à parede, afastado o mais possível do corrimão.

Chegados ao cimo, encafuaram-me numa pequena sala rectangular, com uma secretária, uma máquina de escrever, uma cadeira atrás e outra à frente, mais afastada, colocada ao meio da sala. Fecharam a porta e saíram sem dizer uma palavra. Tudo estudado para me provocar ansiedade. Montes de tempo se passaram. Ouvia passos nos corredores, vozes cochichando, ordens gritadas de vez em quando, passos que pareciam aproximar-se para logo diminuírem de intensidade, mas a porta permanecia fechada.

Por fim apareceram outros dois agentes. Com ar agressivo e provocador: “Então este é que é o tal? O gajo tem ar de intelectual. São os piores!” Não sei onde é que eles foram desencantar o ar de intelectual que me atribuíam. Talvez por vir razoavelmente bem vestido. Trazia um bonito sobretudo, recém estreado (ainda hoje o tenho), no qual eu tinha uma certa vaidade por ter sido eu próprio a desenhá-lo e mandado fazer, à medida, por um alfaiate amigo, uma camisa de flanela verde e preta, aos quadradinhos e um belo dum cachecol, verde também, enrolado com ar fadista à volta do pescoço. Talvez por usar óculos (nesse tempo havia muito menos gente que os usasse). Talvez pelo ar de poeta que lhes sugerisse o cabelo comprido e revolto que sempre usei.


Além da provocação - esta e outras bem piores - pouco mais adiantaram: “Sente-se. Nome, morada, profissão, estado civil, filiação, porque é que fugiu”, “não fugi, já lhes disse”, e foi tudo.

Toca a descer a mesma escada, com os mesmos calafrios e as mesmas cautelas da minha parte. Enfiaram-me numa carrinha azul escura ( marcas de carro nunca foram ciência que eu cultivasse) de caixa fechada, com uma pequena janela gradeada e revestida de rede, de cada lado, e ala não me disseram para onde.

Por uma das janelinhas, ia espreitando o caminho. Rua António Maria Cardoso abaixo, Rua Victor Cordon (lá estava o edifício da FNAT - que serve hoje de sede da CGTP), rua da Conceição, Rua de Santo António da Sé... Era para o Aljube que me levavam. Cá fora era o bulício dos fins de tarde da baixa lisboeta. Ruas cheias de transeuntes indiferentes à passagem da viatura, que só os mais atentos ou mais politizados sabiam destinar-se ao transporte de presos. E eu lá dentro, com o coração apertado, sorvendo com sofreguidão o fervilhar da vida na cidade, o cheiro das castanhas assadas dos vendedores ambulantes, e as últimas réstias de luz daquele dia soalheiro e frio, prestes a chegar ao fim.

* * * *

Aljube é uma palavra de origem árabe, que significa prisão, cárcere escuro, caverna, poço. Na verdade as antigas cadeias mouras eram subterrâneas, sem janelas para a rua - autênticos poços.

Pois o Aljube, o edifício prisional para onde me levaram, se exteriormente em nada se parece com um poço ou caverna (é um edifício rectangular - parece que antigo paço episcopal e posteriormente prisão de mulheres - com cinco pisos, sendo o último mais recuado e de construção recente). O seu segundo piso, para onde me conduziram, ocupado pelas celas, que na gíria dos seus forçados ocupantes, são conhecidas por “curros” ou “gavetas”, não teria mais conforto, nem mais luz, nem menos humidade que os poços-prisão da antiga moirama.

Entrava-se num corredor estreito, cuja pesada porta se fechava imediatamente atrás de nós. À esquerda, e a todo o comprimento, a espessa parede da frontaria do prédio com janelas de larguíssimo peitoril, protegidas por grossas grades de ferro e revestidas por uma rede de malha miúda, para reforçar a segurança e dificultar a visão; à direita, a sucessão dos pequenos cubículos - os tais “curros”, interrompida a meio por uma reentrância onde se situam os sanitários - uma pia no chão, sem qualquer resguardo e um pequeno e encardido lavatório - sem qualquer porta a separá-lo do corredor, de forma a que os presos pudessem sempre ser vigiados, mesmo no acto de satisfazer as suas mais elementares necessidades fisiológicas.

A escassa luz do corredor, que a rede e as grades filtravam, não chegava aos cubículos, pois estes não davam directamente para o corredor. Primeiro, havia uma porta com uma janeleca do tamanho de um livro vulgar; em seguida, à distância de um metro, uma outra porta com outro janelo com as mesmas reduzidas dimensões; e era atrás dessa segunda porta, fechada à chave, tal como a primeira, que ficava o cubículo onde os presos passavam os seus dias. Isto é, um tempo de lusco-fusco, onde o dia e a noite se confundiam, onde se dormitava de dia e se velava de noite, na sobressaltada expectativa de ser levado para os perigosos e temidos interrogatórios, pois era sempre a meio da noite que eles, intencionalmente, vinham buscar os presos

O cubículo tinha exactamente o comprimento de duas estreitas tarimbas, colocadas uma a seguir à outra e a largura não devia exceder em 30 ou 40 centímetros a largura das ditas tarimbas. Digamos que cerca de dois metros de comprimento, por pouco mais de um metro de largura. É claro que são valores aproximados e a partir de recordações a uma distância de 50 anos.

É fácil deduzir que era quase impossível duas pessoas mexerem-se, e muito menos circularem num espaço tão reduzido, sobretudo quando as tarimbas ou bailiques, como lhe chamavam, estivessem descidas. Assim, quando se queria desentorpecer um pouco as pernas, dobrava-se a tarimba que enganchava numa tábua com uns 20 cms de larga, colocada a meio da parede, a qual servia de base para, de pé, se engolirem, quando o estômago o permitia as mal amanhadas refeições que à hora aprazada nos traziam, em encardidos pratos de alumínio ou estanho ou coisa que o valha.

Quando entrei sentei-me acabrunhado no primeiro bailique e ali fiquei durante muito tempo virado para o pequeno janelo, de forma a ter sempre diante dos olhos um pouco de claridade, para que a sensação de me encontrar num sítio sem ar nem luz não se transformasse em pânico.
Finalmente apercebi-me que no bailique do fundo, havia alguém deitado, que até então não tinha tugido nem mugido e que só agora denunciava a sua presença através de uma estrondosa escarradela. Fui eu que tive de meter conversa. Só que o indivíduo em questão não era ou não estava nada conversador. Pouco troco me deu. Vim a perceber mais tarde: ele estava na retranca, pensando que eu fosse algum provocador posto ali pela PIDE para obter informações. Tal procedimento era, aliás, muito frequente por parte daquela polícia.

* * * *


Por volta das 19 horas um burburinho no corredor, e um abrir e fechar sucessivo de portas vieram quebrar o silêncio quase sepulcral que reinava no nosso tugúrio e nos adjacentes. Até que chegou a nossa vez. Chave a girar na fechadura, primeira porta aberta, chave a girar na segunda porta e um servente, gorducho, de fato macaco de caqui amarelo, surgiu acompanhado de um guarda. Era o nosso jantar: sopa e dois pequenos cachuchos fritos com arroz. A sopa era uma aguada desenxabida e os cachuchos vinham completamente frios. Como a apresentação era pouco convidativa e o apetite era nulo, mal toquei na comida. Foi o meu sorumbático companheiro que, mesmo sem dizer palavra, se abarbatou com o excedente, que deglutiu num fechar de olhos.

Um pouco antes das 21 horas assomou o guarda à janelinha da porta exterior, a perguntar se alguém queria ir à casa de banho. Foi um de cada vez, como era regulamentar. Pouco depois tudo se aquietou no corredor. Era tempo de dormir. Sobre o catre de madeira havia uma estreita e magra enxerga, cheia de palha moída e revestido de uma espécie de serapilheira. O mesmo tecido, aliás, que revestia a almofada encardida, cheia igualmente de palha miudinha, a desfazer-se em pó. Para me cobrir dispunha apenas de uma manta de sorrobeco, de um castanho ruço, suja das botas de anteriores ocupantes que nelas se tinham embrulhado calçados, com inequívocos vestígios de ejaculações nocturnas, cheirando a suor, a pó e a medo.


Ora, sendo eu alérgico precisamente ao cheiro da palha e ao pó, que durante toda a minha adolescência me provocavam frequentes e dramáticas crises de asma, comecei desde logo a antever o pior para aquela primeira noite de clausura. Sem pijama, sem lençóis, sem fronha na almofada, descalcei-me apenas e deitei-me vestido com a repelente manta por cima, à qual acrescentei o meu sobretudo de estimação. Para obviar um pouco a repugnância do contacto da manta, debruei a sua parte superior - a que me ficava mais perto do nariz e da boca - com um lenço lavado que por acaso trazia dentro do bolso, e foi de barriga para cima e segurando o lenço com as mãos que, recorrendo ao clássico e quase sempre improfícuo método de contar carneiros, procurei adormecer.

Não passou muito tempo sem que a asma - que nos últimos três ou quatro anos me tinha deixado sossegado - se manifestasse em toda a sua violência. Levantei-me aflito e fui colocar-me em frente à pequena janela, na ânsia de obter algum do ar que me faltava, com os brônquios a ronronar como se lá dentro tivesse uma ninhada de gatos. O meu companheiro, vendo o meu estado deve ter-se convencido que não iam pôr ali nenhum bufo para estar a sofrer daquela maneira e acorreu solícito, chamando pelo guarda e dando murros na porta, face à sua demora.

Passado algum tempo, estremunhado, a bocejar e de muito mau humor lá apareceu o guarda, assomando ao postigo e a perguntar o que é que se passava. Foi-me arranjar um comprimido qualquer, que não tinha nada a ver com a especificidade da doença, e voltou ao seu descanso dizendo que àquela hora nada mais podia fazer. Passei o resto da noite sentado, ofegante, com os brônquios numa barulheira tal, que até ao meu vizinho tirou o sono.

Logo na manhã seguinte apareceu-me o enfermeiro. Alto, obeso, pesadão, vermelhusco de cara, já entradote em anos, com um pé a pedir licença ao outro para se mover, a inquirir o que se passava comigo. Queixei-me da falta de ar que me tinha atormentado toda a noite. Responde-me o lapuz: “Ora, ora, falta de ar têm todos vocês logo que entram aqui para dentro”. Insisti que não era dessa falta de ar mas de um forte ataque de asma. Lá se convenceu, face à infernal chiadeira que acompanhava as minha palavras,

Fui levado ao médico. Chamava-se Mira da Silva e além de prestar serviço na PIDE era também médico na CP, onde eu trabalhava, como já referi. Fiz-lhe notar que o conhecia, mas ele nem pestanejou, nem o mais pequeno gesto de simpatia ou interesse perpassou no seu rosto redondo e balofo. Receitou-me umas injecções (antibiótico e aminofilina), uma das quais me foi pouco depois aplicada, com consequente, embora passageiro alívio. Pedi autorização para que os meus pais me levassem uma bomba anti-asma que eu tinha deixado com eles quando me casei e que nunca mais, até então precisara de usar - o que me foi autorizado.

Quando regressei à cela, tive então ocasião de conversar com o meu companheiro. Era um homem com mais de 50 anos, operário corticeiro e, por sinal, vestido de acordo com a sua profissão, um velho fato macaco, de ganga azul debotado por muito uso e muitas lavagens. Boa pessoa, mas um tanto rude. Lembro-me (coisa que a princípio me fez arregalar os olhos de incomodado espanto) que enquanto conversava comigo se peidava ruidosamente, com uma sem-cerimónia notável. Por outro lado, se o guarda se demorava a vir abrir-lhe a porta para ir à sanita - o que muitas vezes acontecia, com grande desespero nosso - ele não estava com meias medidas e fazia o que tinha a fazer num balde que tinha para o efeito, ali ao pé de mim, com o maior à-vontade deste mundo. Imagine-se o pivete, num cubículo fechado de tão exíguas dimensões.

A segunda noite foi igualmente passada em claro, pois embora de forma mais atenuada, a asma se mantinha. Aliás, já quando era mais novo, era sempre de noite, na cama, que os acessos asmáticos se manifestavam com maior intensidade.

Um terceiro dia se passou, apoquentado pela asma, sentado no horroroso bailique, mergulhado em permanente semi-obscuridade, sem espaço para me movimentar, sem um lápis para escrever, sem um livro para ler e sobretudo numa indescritível ansiedade sem saber o que pretendiam de mim.

Foi nessa noite que me vieram buscar...

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Continua