ESCRITOS OUTONAIS

7.29.2007

NA HORA DA DESPEDIDA



Este versos, fi-los no verão de 1966. para recitar num almoço de despedida de um velho companheiro de trabalho em que participaram várias dezenas de colegas.

O “manholas” só dois anos depois haveria de cair da cadeira. Vivia-se, pois, em plena ditadura Salazarista.

E no entanto, contra tudo e contra todos, existia um clima de solidariedade e de entreajuda de que hoje não se pode ter ideia. Quando fui preso em 1959, minha mulher, desde que entrava no comboio, em Moscavide e descia em Santa Apolónia e atravessava a gare, grávida, com o barrigão proeminente, dizia-me que recebia tantas manifestações de simpatia, de solidariedade, de carinho, de solicitude, de ofertas de ajuda, de cumprimentos para mim, desde os colegas e as colegas dos escritórios ao pessoal da estação, dos empregados dos quiosques do jornais ao das cafetarias, e depois no seu próprio trabalho, e na vizinhança e em toda aparte, que a deixavam verdadeiramente emocionada.

-Estes versinhos, simples, aparentemente ingénuos, demonstram bem como apesar da repressão, de forma velada (ou nem tanto) se encontrava maneira de expressar a solidariedade que nos unia, criticando ao mesmo tempo o sistema que nos explorava.

Solidariedade. Alguém se lembra ainda do sentido desta palavra? Hoje, só me ocorrem, com incontida raiva, aliás, palavras e expressões como: carreirismo, egoísmo, oportunismo, ganância, ostentação, petulância salve-se quem puder e - a mais abominável de todas: delação.

Mas, se calhar, sou eu que ando a ver mal, ou estou muito amargo. Deve ser isso.

NA HORA DA DESPEDIDA

(No almoço da despedida de um colega,
em jeito de fado de Coimbra)



Na hora da despedida

Chorai, guitarras, chorai...

Triste o momento da vida

Em que um amigo se vai.

Quem parte, leva saudades

Quem fica, saudades tem...

Há tanta gente que parte

Sem deixar pena a ninguém!...

Não é o teu caso, Amigo!

Ao afastares-te de nós,

Nosso adeus para contigo

Leva soluços na voz.

Vais-te embora, camarada,

Mas levas toda a afeição

Duma amizade temperada

Na luta p’lo ganha-pão.

Longos anos de canseira

Mourejaste a nosso lado;

Subiste a mesma ladeira,

Partilhaste o mesmo fado.

Trilhaste o mesmo caminho,

Serviste o mesmo patrão,

Bebeste do mesmo vinho,

Comeste do mesmo pão

Pão que nem sempre foi alvo,

Pão difícil de roer...

É preciso ter bom dente

Para certo pão comer

Deste o melhor dos teus anos

De esforço e dedicação...

Não vês aqui os teus amos,

Mas... os amigos cá estão.

Quem, por se achar “bem coberto”

De amizades não cuidar,

Pode estar ciente e certo

De sòzinho ao fim chegar.

Tu, amigo, não estás só .

Estarás sempre acompanhado.

P’la tua boa amizade

Te digo: muito obrigado !

Triste o momento da vida

Em que um amigo se vai !

Na hora da despedida,

Chorai, guitarras, chorai ...

19 de Junho de 1966

7.16.2007

É TEMPO AINDA ...

É TEMPO AINDA ...
(contra o veneno da rotina)



É tempo ainda, Amor
de retomar
a viagem que iniciámos
juntamente.

De voltar ao fluir
do nosso rio,

de recerzir o tempo
fio a fio,

de reatar o passado
no presente.

É tempo ainda, Amada
de acordar.

Redescobrir sentidos
novos nas palavras.

Reencontrar esquecidos
gritos nos silêncios.

Renovar
o antigo frescor das madrugadas .

É tempo ainda, Amor
de avivar
a memória de gestos
já perdidos ...

O sabor
de antigos sonhos
recriar ...

Reinventar o amor
e incendiar
a adormecida chama dos sentidos,

0 entrelaçar dos dedos
a ternura
da troca de um olhar

O estilhaçar dos medos
na aventura
dos corpos penetrar.

A procura
das bocas, numa fome
nunca satisfeita de beijar ...

É tempo ainda, Amiga,
É tempo ainda.
É tempo ainda de voltar !

7.09.2007

EM TUAS ÁGUAS...


EM TUAS ÁGUAS ...


Em tuas águas navego

Em ti

resumo o périplo

da minha volta ao mundo.

Fora de ti,

não há saída ou rumo

É em ti

que me salvo

... ou que me afundo.

Propício Ancoradouro

amena Enseada

em ti fundeei minha jangada

em tuas águas balouça

o meu escaler.

Fora do teu Mar

eu não sou nada

sou peixe

que estrebucha na areia calcinada

da praia

... até morrer

Em ti criei raiz

Em ti habito

Em ti me reconheço

Em ti palpito

Em ti eu esmoreço

Em ti resisto

Em ti eu caio

Em ti eu me levanto

Em ti eu choro e rio

Em ti eu desisto e recomeço

Em ti eu vivo

... Em ti pereço.

É de ti

que me nutro.

Em ti mergulho

Tu és Partida e Meta

a Flecha e o Alvo.

Em ti se anula e esbate

o meu orgulho

É em ti que me perco

... ou que me salvo

7.02.2007

TROVOADA NA ALDEIA



No negrume da tarde, tornada repentinamente noite pelo espesso manto de nuvens que o vento arrastou por cima das montanhas, envolvendo as cristas dos cumes mais altos, um relâmpago fuzilou palidamente, por detrás da encosta sobranceira à aldeia.

Foi esse o primeiro sinal da trovoada, seguido um pouco depois pelo ribombar cavo de um trovão longínquo.

Dava a impressão que a tormenta vinha ainda longe e que nem passasse por cima da aldeia.

De repente, porém, o vento começou a soprar com mais força; o fuzilar dos relâmpagos tornou-se mais intenso e mais imediato e assustador o estrépito dos trovões. Se o trovão vem de Mós, ai de nós, diz-se na aldeia. Mós é uma pequena aldeia, situada a nordeste, lá para os lados de Carviçais. E o som destes trovões, por detrás da serra, era de lá que provinha.

As árvores começaram a ser sacudidas furiosamente, despindo-se das últimas folhas ressequidas, que esvoaçavam como bandos de pombos bravos perdidos na tormenta.

A chuva, que a princípio começara com uns pingos pesados e raros, aumentou subitamente de intensidade e de ritmo, até se tornar em cordas de água, compactas e ininterruptas.

As ruas inclinadas transformaram-se em autênticos riachos por onde corria impetuosa a água barrenta das encostas vizinhas, arrastando ramos de árvores, pedras, tábuas, palhas, bugalhos e mesmo, de longe em longe, alguma ratazana ou galinha colhida pela enxurrada.

Os garotos (os raparigos, como se diz na aldeia) esconderam-se por detrás dos vidros das janelas ou recolheram-se nas lojas, no quentinho das palhas, cantando intermináveis lengalengas para esconjurar a trovoada. Outros, mais afoitos, como eu fazia quando era pequeno, descalços e de calças arregaçadas corriam pela água barrenta, que para eles representava o mar nunca visto mas sempre sonhado.

Os burros zurraram inquietos no fundo das lojas, enquanto as galinhas em cacarejante algazarra corriam assustadas para os seus poleiros.

Velhinhas de cabelos brancos e negros xailes recitam em voz alta as suas orações contra a trovoada e os seus efeitos maléficos, interrompidas a cada passo por admoestações a alguns dos garotos que, indiferentes à chuva dão largas ao seu entusiasmo, encharcados até aos ossos.

Entretanto é noite cerrada. Calaram-se os ruídos da rua. Os burros aquietam-se nas lojas. O rapazio, exausto, dorme agora quentinho, a barriga empanturrada com transbordante malga de migas de centeio ou caldo verde e o coração cheio de sonhos ou de medos. Só as velhas continuam com as suas rezas e esconjuros: “Santa Bárbara bendita, que no céu estais escrita, com papel e água benta, livrai-nos desta tormenta e que o raio vá cair onde não haja eira nem beira, nem raminho de figueira, nem mulher parideira ...” e por aí fora, numa cantilena monocórdica e interminável.

Indiferente às rezas da mulheres, a tempestade atingiu agora o auge.
A cada descarga eléctrica que incendeia a negrura do céu, um ronco terrível e imediato se lhe segue, estremecendo os casebres em volta e ecoando nas quebradas dos montes, mesmo por cima da aldeia.

A chuva, cada vez mais intensa, fustiga furiosamente os vidros e postigos das janelas, canta monótona nas telhas velhas e musguentas, e cai em catadupas rumorejantes pelas goteiras.

Chegam até mim gemidos lamentosos das árvores açoitadas pelo vento que assobia por todas as frestas uma canção dolorosa e terrível.

Nas casas vizinhas já tudo se deitou. Só eu, que não estou habituado a deitar-me cedo, persisto em continuar acordado a ler o romance policial que trouxe da cidade. De repente, quando mais entusiasmado eu estava com as investigações do cínico detective Philipe Marlowe, um golpe de vento apaga-me a candeia, deixando-me mergulhado na mais completa escuridão.

Às apalpadelas, consegui despir-me e enfiar-me no meio dos lençóis. Lá fora, o temporal continua rijo e inclemente.

Por longo tempo permaneci acordado, aterrado com o fuzilar contínuo dos relâmpagos que, através das frinchas dos postigos, punham reflexos lívidos nos móveis e nas roupas penduradas, dando-lhes um aspecto de fantasmas infernais, dançando à minha volta um cancan diabólico, marcado a compasso pelo rugir medonho do trovão.

Aos poucos, porém, um doce torpor, proveniente do sono e do calor da cama, se foi apoderando de mim e acabei por adormecer profundamente, no conforto de uns inesquecíveis lençóis de linho caseiro, mau grado a dureza do colchão de palha centeia. Naquele tempo, não havia trovão que despertasse os meus sonos de adolescente descuidado.