GATOS
Já aqui escrevi a história de uma cadelinha, a minha saudosa Violeta, dos meus tempos de criança, já vos falei da vida e amores de uma outra cadela, que nunca existiu e calha hoje a vez de falar de gatos - Os animais que há mais de quatro mil anos convivem com o homem: perseguidos, odiados, tolerados venerados, adorados, com altos e baixos ao longo desse milenar convívio.
Falarei apenas dos que conheci
GATOS
Lembro-me de ter lido, há muitos anos –julgo que nas Selecções – um artigo intitulado “Ninguém é dono de um gato”. Do seu conteúdo não conservo ideia, mas o título não mais se me varreu da memória, até porque a minha observação pessoal me levou a estar muito de acordo com o conceito que a frase encerra.
Nos meus tempos de garoto, não tiveram conta os gatos que passaram por nossa casa. Como morávamos num sótão com uma janela de águas-furtadas, os gatos da vizinhança, que por cima dos telhados das casas todas baixinhas, percorriam o quarteirão inteiro, entravam para dentro da nossa, a toda a hora, com uma sem-cerimónia, um descaramento, que só visto. Havia sempre o gato residente e havia os visitantes. E todos conviviam numa santa harmonia, excepto, obviamente quando se tratava de disputas por causa das fêmeas, pois aí se armava um salsifré e uma berraria de porem os nervos em franja à mais calma das criaturas. Nos meses do cio, durante a noite, as suas lancinantes declarações de amor, os seus gritos de guerra e as suas correrias por cima das telhas, mesmo por cima das nossas cabeças, sem outro resguardo além das traves e um tabique de madeira de pinho, faziam-nos acordar assarapantados, chegando mesmo, a infundir-nos um certo temor.
A primeira visão de acasalamento (a qual, até que me explicassem, julguei tratar-se de uma agressão) foi-me transmitida, aliás, através dos gatos em cima do nosso telhado. Devo dizer que, pelo que tive inúmeras ocasiões de observar, eles não brincam em serviço. Muitas vezes abria a janela e ali estava um casal, em plena função, mesmo a um metro dos meus olhos, a fêmea acachapada e o macho por cima segurando-a firme, de unhas enclavinhadas no dorso, o pêlo eriçado, como se accionado por uma corrente eléctrica. Voltava a cabeça quando me via surgir, deitava-me um olhar meio assustado meio ameaçador, mas continuava o empreendimento, com o mesmo empenho, como se nada fosse com ele. Nessas situações e em tal posição, sobretudo tratando-se de gatos pretos, faziam-me lembrar a representação medieval do diabo que conhecia de estampas reproduzindo gárgulas da igreja de Notre-Dâme, que tinha visto numa edição antiga do famoso romance de Victor Hugo com o mesmo nome. Mal parecerá dizê-lo mas, em garoto, quando um gato apanhado em tais situações me olhava daquele modo, me causava algum arrepio, diria mesmo uma certa meúfa.
Gatos residente tivemos sei lá quantos ao longo dos anos. Pretos, brancos, amarelos malhados, tigreses, tricolores, toda a variedade possível e imaginária de gatos. Volta não volta havia um que esticava o pernil. Por doença ou atropelado, ou por maus tratos na rua, ou envenenado. Havia mortes para todos os gostos e feitios. Todos porém, caso não tivessem morte imediata, acabavam por vir morrer em cima do telhado, quando não em pleno sobrado da casa, onde entravam através da janela sempre franqueada. Volta-não-volta lá ia eu levar um deles, seco e esticado que nem um carapau, ao caixote do lixo postado à porta da mercearia da esquina. Como o Zé, o mais velho dos irmãos, estava quase sempre fora, a trabalhar ou a maior parte das vezes em busca de trabalho que não encontrava, calhavam-me a mim, como o segundo na escala de idades, estas e outras ingratas tarefas.
Nesse tempo não havia contentores para o lixo. Nem camarários nem particulares e muito menos havia (ainda não tinha sido inventada, que bom!) a praga dos famigerados sacos de plástico – emblema detestável do nosso tão louvado estádio civilizacional. Repare-se que quando se dizia caixote do lixo, era mesmo de um caixote (de madeira) que se falava – normalmente os que vinham para as mercearias cheios com barras de sabão azul e branco. Como nessa altura não existiam ainda detergentes, todas as lavagens da roupa, da louça ou do banho eram feitas com o dito sabão, que se vendia em barras, tal como eram recebidas, mas sobretudo em fatias, de acordo com as posses dos clientes. Atendendo à consabida mania que os pobres têm de fazer filhos a esmo, produzindo assim enormes proles (por isso mesmo constituem o proletariado, que tanto jeito deu ao barbudo Karl Marx para construir as suas revolucionárias teorias) pode fazer-se uma ideia das quantidades de sabão que então se gastavam, directamente proporcionais ao número da filharada e ao encardido dos respectivos corpos e roupas. Também, em consequência, se pode imaginar a rapidez com que se esvaziavam os ditos caixotes de sabão nas mercearias. Assim, nas traseiras de todas elas havia sempre pilhas de caixotes vazios, que os respectivos proprietários vendiam a cinco tostões a peça, ou que a galfarragem, “comprava”, sem falar com o dono, entenda-se.
É que, para além da já referida utilidade como depósito de lixo, uma vez desmanchados, serviam as tábuas dos caixotes para tudo e mais alguma coisa: fazer toscas capoeiras para as galinhas ou coelhos que toda a gente tinha no quintal, cercas para as hortas que alguns faziam em terrenos baldios que era o que mais por lá havia, pequenas cancelas, recipientes para, cheios de terra adubada com caca de galinha, cultivar plantas aromáticas para a cozinha, ou craveiros, ou sardinheiras que ornamentavam as varandas e…. mais importante de tudo, para a garotada fazer umas carripanas em que o condutor e único passageiro era empurrado de fora por íngremes ladeiras ou passeios escorregadios, trotinetas, skates (cuja palavra nem sequer existia ainda e cujas rodas se iam gamar num depósito de ferro velho) espadas ou outras armas para andar à porrada, raquetas para jogar a bilharda, sei lá…
Mas voltando aos gatos. Além dos que morriam como tordos, havia um ou outro que desaparecia para sempre ou emigrava durante uns tempos em que o julgávamos perdido, para aparecer quando lhe dava na real gana e instalar-se sem qualquer explicação, com um despudor e uma lata de se lhe tirar o chapéu.
Certa noite, durante o jantar, o Lau, o mais novo dos rapazes lá de casa, então com três ou quatro anos, gorducho, peida-gadocha como então se dizia, tantas tropelias fez, tanto balanceou o banco de madeira sobre o qual se sentava, que acabou por cair para trás, indo estatelar o gordo rabiosque mesmo em cheio sobre a frágil cabeça de um gatito que tínhamos na altura e que pacientemente esperava junto à mesa a graça de uns miolinhos de pão que sempre algum de nós lhe deitava. Coitado, ficou literalmente esborrachado, esvaindo-se em sangue e acabou por morrer minutos depois.
Claro que, como sempre, foi cá ao Toino que o pai Alberto intimou a levá-lo de imediato para o caixote do lixo que era, nem mais nem menos, um dos famosos caixotes de sabão azul e branco marca Offenback, postado à esquina da Travessa, à porta da mercearia do Amadeu Soares, nosso senhorio, por sinal.
Em certa altura tivemos um gato a que pusemos o nome de Black – o que não era novidade, pois lá em casa tivemos vário com esse nome. Se fosse como os Papas iríamos bem longe na numeração romana que esses usam. Recordo-o particularmente por ser o maior cara sem vergonha que me foi dado ver nesta família de felinos de telhado. Saía de manhã, e só voltava à hora do almoço ou à noite quando, já todos deitados, batia nos vidros da janela para que lha abríssemos e se ir amodorrar no seu canto ou em cima das nossa camas. Ausentava-se por vezes semanas inteiras sem que tivéssemos a mínima ideia do seu paradeiro.
Numa outra rua perto de nós havia um loja de colchoaria, cujo dono o Ti Amadeu tinha a mania de me apelidar de holandês, pela alourado quase branco do meu cabelo, como já tive ocasião de referir noutras crónicas. Certo dia, passando diante da porta, vejo um gato preto deitado a dormir em cima de uma almofada das várias que lá havia e que faziam parte do trabalho do ti Amadeu. Aproximei-me. Por muito parecidos que sejam a gente conhece, a gente intui sempre o nosso gato. E aquele, não tive dúvidas, era o nosso gato
Pois é, lá está a pequena malha branca no meio da testa e uma outra, mais pequena ainda, na ponta da orelha direita. Não tenho dúvidas, é o nosso vadio. Chamo quase inaudivelmente: BlacK. (claro que na altura, se tivesse de escrever o seu nome escreveria bleque) O bichano prontamente arrebitou as orelhas e soergueu a cabeça para logo voltar à madorra de que tinha sido desperto. Oh Sôr Amadeu, gritei então com a petulância de puto reguila e a arrogância de proprietário esbulhado: Este gato é meu! E tão rápido como as palavras, as mãos se estenderam para pegar no animal.-
É teu o quê, rapaz, deixa lá estar a porra do bicho. És parvo ou fazes-te?.
- É meu é , que eu bem o conheço. E comecei a fazer um berreiro dos trinta diabos a ponto do ti Amadeu perder a paciência e me ameaçar que me dava uma lambada no focinho. Veio a minha mãe. O ti Amadeu a jurar que o gato era dele e nós a assegurar a pés juntos que era nosso, pois já o tínhamos quase há dois anos e o conhecíamos muito bem por causa da tais manchas brancas que atrás assinalei.
E o ti Amadeu a teimar que era dele e que, curiosamente, também já o tinha acerca de dois anos. Uma discussão brava que ali se arranjou, com as vizinhas que entretanto se aproximaram a debitar os costumados palpites, e o filho da mãe do gato, impávido e sereno, sobre a almofada, como se fora um deus egípcio sentado no seu trono (Então não é que os gajos lá no tal do Egpto adoravam os gatos como deuses? ele há cada um!) contemplando a cena com olhar sorna.
A certa altura a minha mãe, dirige-se a ele, dá-lhe um tabefe e ordena imperiosa: p’ra casa já seu patife! Aí o gato levanta-se, espreguiça-se, sai porta fora, corre, entra no quintal de uma vizinha, trepa para cima de uma capoeira, salta dali para o telhado da casa e desaparece na correnteza dos telhados contíguos. Quando chegámos a casa estava ele no seu canto, muito sossegado, como se nunca dali tivesse saído. Mal nos viu veio muito dengoso roçar-se pelas nossas pernas, com ternos miados que, obviamente nos deixaram derretidos.
Conclusão: desde sempre o espertalhão vinha convencendo duas famílias de que a ambas pertencia, quando na verdade não pertencia a nenhuma, limitando se a aproveitar as vantagens que cada uma delas lhe poderia oferecer. Foi aí que me convenci que, na verdade, ninguém é dono de um gato.
Só muito mais tarde, depois de casado e com casa própria, voltei a ter contacto com gatos. Uma gata mais precisamente. Só que essa preencheu grande parte da minha vida e da minha família.
Certo dia, em que a Anita, a minha filha, então com oito anos de idade, estava doente com varicela, a avô apareceu-lhe, para a entreter, com uma que gatinha que trouxe de sua casa, uma das velhas moradias, de um conjunto habitacional de uma exploração agrícola já na altura quase em vias de extinção, na Quinta das Princheiras,
Era pouco mais que um novelinho amarelado com poucos dias ainda de vida, que a menina acolheu como se, além de um brinquedo de peluche que parecia, fosse uma criança, que ela devesse tratar como mãe, à qual prodigalizava todas as atenções e lhe inspirava, ao mesmo tempo todas as brincadeiras próprias de uma menina da sua idade. Corria ao no de 1968 e a oposição democrática apesar de toda a falta de liberdade e de organização que o novo Presidente do conselho de Ministro Marcelo Caetano fingia consentir mas na prática negava de uma maneira tão feroz, por vezes, como o seu famigerado antecessor, organizava-se para poder concorrer, às eleições legislativas do ano seguinte,
Da lista de candidatos que a CDE (Comissão Democrática Eleitoral) preparava para concorrer pelo distrito de Lisboa figuravam nomes como o do jovem advogado Jorge Sampaio, que mais tarde haveria de ser um digno Presidente da República e o de José Augusto Gouveia, meu irmão que, uma vez conquistada a liberdade, haveria também de presidir aos destinos da Câmara Municipal de Loures. Dessa lista constava igualmente outro jovem advogado de nome Victor Vengoróvius, destacando eu dentre eles apenas estes três, o primeiro pela importância histórica que veio a adquirir, o segundo por razões de coração e o último porque (mal ele alguma vez sonhou) se relaciona com a história da nossa gata.
Na verdade, a Anita que, praticamente aprendeu a ler com as cáusticas e deliciosas críticas televisivas do Mário Castrim no Diário de Lisboa, na tentativa de perceber a razão das nossas gargalhadas e comentários quando lá em casa as líamos em voz alta, e que seguia com atenção as nossas conversas sobre a actualidade política, sobretudo as que à oposição ao regime diziam respeito, achava, vá lá saber-se porquê, uma enorme piada a esse nome que frequentemente ouvia citar.
Assim, quando chegou a altura de baptizar a felina criatura, reunida a família isto é – pai e mãe e filha – por proposta desta e com a solenidade adequada à importância da cerimónia, ficou decidido por unanimidade, aclamação, e com aplicação imediata, que o seu nome completo seria, para todos os efeitos Ninfa Maria da Silva Vengoróvius.
Foi assim, investida de uma dignidade pouco comum num quatro patas de tal estirpe (dignidade que ela parece ter entendido e assumido pela vida fora, à vezes de forma insolente) que a Ninfa Maria passou a fazer parte integrante da família Gouveia, não obstante o manifesto desacordo do seu apelido com o do restante colectivo. Tal desajuste não constituía, contudo, problema de maior, pois raramente era pronunciado, excepto para a apresentar aos amigos que nos visitavam – ocasiões em que a Anita não perdia a oportunidade de se exibir, nomeando-a com pompa e circunstância por nome, sobrenome e apelido com uma gravidade formal que, obviamente, provocava risos aos amigos e aos pais deixava babados, como é de praxe e incontornável costume.
E assim foi crescendo a Ninfa Maria, em tamanho, graça e virtude, como companheira inseparável da Anita que dela fazia motivo e objecto constante das suas brincadeiras, mascarando-a no carnaval e inventando para ela as mais hilariantes tropelias a que ela se submetia, regra geral, com alguma cumplicidade, mas a que por vezes se rebelava, ficando nessas ocasiões extremamente amuada, a ponto de prender o burrinho por vários dias.
Não era esquisita no comer, graças a deus. Devorava tudo o que se lhe pusesse à frente, leitinho, espinhas de carapaus fritos, e toda a espécie de restos da nossa comida, incluindo vegetais - que nesse tempo ainda não tinham inventado essa mariquice de comida especial para gatos e cães e periquitos e peixes – cada cor seu paladar – que hoje constituem a ruína dos orçamentos familiares de quem goste de ter toda essa bicharada paredes adentro de suas casas.
Em 1970, contados os tostões a avaliada a probabilidade de vir a juntar alguns outros, poupados obviamente dos nossos magros vencimentos, adquirimos um andar em Almada – Cacilhas mais propriamente – cujas prestações foram penosamente pagas durante longos vinte e cinco anos.
É onde moramos e contamos acabar os nossos dias – Eu e a Adelina – se deus nos der vida e saúde, como dizia um novo rico ao exibir para os amigos um luxuoso jazigo de família que mandara construir.
O pior problema, no que se refere à mudança era a dificuldade no transporte da madame Ninfa Maria e o receio da Anita de que, perante tal obstáculo, optássemos por devolvê-la ao local do seu nascimento, onde aliás ainda vivia a gata-mãe, isto é em casa da minha sogra, na supra citada e desaparecida quinta das Princheiras. Acabou, por vir num enorme cesto de verga, que utilizávamos para colocar a roupa suja, na qual caberia uma boa dúzia de bichanas como ela, para satisfação das exigências por parte de sua alteza, e sossego da dona quanto às condições de conforto do seu transporte. Não foi fácil, porém, fazer com que ela entrasse no cesto e menos para que lá se conservasse. O problema só se resolveu, com a habilidade de colocar junto dela duas ou três bonecas da dona. So então, depois de demoradamente as cheirar e de fungar desconfiada, se deitou sobre elas e finalmente, se aquietou.
Para mais segurança e não andar aos tombos durante a viagem, veio o cesto encaixado no meio dos poucos tarecos que possuíamos e da incrível quantidade de caixas de papelão repletas de livros que constituíam então o principal objecto do nosso desvelo. Além da gata, a Anita queria por força trazer também uma andorinha pertencente a uma família de tal espécie volátil, que havia vários anos nos dava a honra de coabitar connosco na marquise da nossa casa. Chorou baba e ranho a cachopa, por ter de deixar para trás a “sua” bela e graciosa avezinha, coitadinha, o que ia ser dela…Quando chegados à nova casa e libertámos a bichana, a sensação de ter vindo enclausurada, o encontro com áreas desconhecidas, o anárquico amontoado da tralha no meio do chão, fazendo lembrar os destroços provocados por um bombardeamento aéreo, deixaram-na tão confusa e zangada que durante dois ou três dias não falou connosco. Aos poucos porém foi-se adaptando. Foi sobretudo aqui que ganhou o hábito de dormir na cama da Anita. Com ela ou sem ela era lá que passava a maior parte do seu tempo.
Tanto em Moscavide como depois em Almada - nos prédios de construção recente em qualquer das localidades - não dispunha a Ninfa de telhados para os quais pudesse saltar, como acontecia com os felizardos dos seus irmãos de raça em casa de meus pais. Nunca, por tal razão ela pôs alguma vez os pés fora de casa, nunca namorou, nunca teve o mais pequeno contacto com qualquer outro macho ou fêmea da sua espécie. Certo dia a Anita pretendeu colmatar essa falta, tentando, pelo menos mostrar-lhe a rua, dez pisos mais abaixo. Mal o elevador se fechou e começou a descer, ela apanhou um susto tal que se assanhou, enclavinhou as unhas na blusa da dona, bufando de uma maneira tal que esta, confinada ao pequeno espaço da cabine, começou também a ficar assustada, a roçar o pânico, voltando imediatamente para cima. Só com algum esforço a Adelina conseguiu libertar a filha das garras da bicha enfurecida afundadas na blusa que vestia. Mal se apanhou no chão a bichana, cujo coração batia a um ritmo alucinante, correu a esconder-se e durante vários dias ignorou olimpicamente a sua dona. Só a Adelina, sua salvadora no episódio do elevador conseguia contactar com ela. Por fim voltou tudo ao normal.
Com o tempo foi engordando fez-se uma respeitável matrona, enorme, e sempre senhora do seu nariz. Saltava para o nosso colo - o que estivesse disponível - onde se alapardava a dormir, resmungava sempre que a gente se mexia e resistia a ser despejada sempre que o tentávamos fazer, por vezes de forma agressiva, se à força sacudíamos. Arisca, como era adorava no entanto de ficar horas inteiras, sem tugir nem mugir com o focinho enfiado entre as axilas da Adelina, ou metido dentro das suas mãos fechadas em forma de concha.
Nos dias mais frios vinha desafiar a Anita para vir deitar-se na cama com ela. Prendia-lhe suavemente a mão com dentes e caminhava puxando-a em direcção ao quarto. Quando, a meio do caminho, se convencia que a dona já tinha entendido o recado, soltava-lhe a mão e continuava sozinha, muito senhora de si, dando a impressão de uma certa ufania com o seu próprio poder de persuasão, mas meia dúzia de passos à frente, se constatava que a sua convidada não a seguia, voltava a trás e de novo a puxava pela mão, até que conseguisse seu objectivo, ficando muito abespinhada quando tal não sucedia.
Sempre que chegava alguém, refugiava-se no quarto da dona e de lá não saía enquanto pressentisse que as visitas ainda se encontravam presentes. Por vezes, quando estava tudo mais ou menos silencioso, pé ante pé arriscava-se a vir espreitar, mas logo se retirava sorrateiramente se constatava que algum estranho lá continuava.
Certa vez estava eu e a minha filha sentados num enorme sofá que então possuíamos lendo em voz alta um texto em francês (de André Gide, se bem me lembro) e ela muito sossegadinha sentado a nosso lado. A certo passo da leitura pronunciou-se a palavra effrayée, que como se sabe, significa assustada. Ao ouvir tal palavra, levantou o focinho, arreganhou a dentuça e bufou assanhada. Intrigados repetimos a palavra e de novo se assanhou e de cada vez que a dissemos ela voltou a assanhar-se, até que se chateou, se levantou e saiu porta fora. Dias depois voltámos propositadamente a pronunciar a mesma palavra diante dela para ver o que acontecia e de novo se assanhou, de cada vez que a ouviu. Bem cheia de melindres a nossa Ninfa Maria !
Entretanto os anos foram passando, ela engordando, cada vez com mais manias, mais matrona, mais senhora do seu nariz, até que a partir de determinada altura, por volta dos seus, talvez, 18 anos começou a emagrecer, a ficar com o pelo sem brilho e a sofrer de destemperos no trânsito intestinal ou, dito em português vernáculo, a borrar-se por tudo quanto era sítio. Certa vez - estando eu também a sofrer de uma diarreia de verão e tomando uns comprimidos muito conhecidos na altura para tais situações, de nome entero-viofórmio, que me davam um resultadão e que por sinal vieram, anos mais tarde, a ser retirados do mercado – lembrei-me de dar, misturado com o leite, um desses comprimidos à pobre bichana e assim fiz. Calei-me bem caladinho, pois ignorava qual fosse reacção e fui-me deitar. Altas horas da noite acordou toda a gente com um som lancinante que mais parecia o berro de uma cabra que o miar de uma gato. Foi-se a ver e lá andava a Ninfa com um ar amalucado aos berros por cima dos móveis, que era de partir o coração. Sobretudo a mim, que era o único que desconfiava de qual pudesse ser o motivo de tão insólito comportamento e receava ter dado cabo da pobre bicha que desastradamente quisera curar. Na manhã a seguinte estava calminha e, durante uns tempos, livre dos seus incomodativos destemperos intestinais. Foi contudo sol de pouca dura pois logo a eles voltou, passado que foi o efeito do entero-viofórmio, não tendo eu coragem de voltar a repetir a dose.
Os últimos tempos foram-se tornando cada vez mais difíceis,tanto para nós como para ela. Quando íamos de férias, geralmente para o campismo – lugar pouco adequado à sua invencível aversão a sair de casa, tínhamos de pedir à porteira, pagando-lhe, claro, que tomasse conta dela na nossa ausência que, coitada, a enchia de tristeza e só agravava os seus males.
Certo dia a mãe da Adelina que estava nessa altura em nossa casa, telefonou à filha, a meio da manhã dizendo que a gata estava estendida no chão, toda esticada e com ar de que estava para morrer. Claro que a Adelina estava no seu emprego, onde por azar tinha um serviço inadiável e não pode sair. Telefonava de vez em quando para saber como estavam as coisas e a meio da tarde, foi a vez de ser a mãe a telefonar aflita, dizendo ter a impressão que a gata já tinha morrido, para pouco depois voltar a dizer que não, que ainda respirava. Quando a Adelina, tendo conseguido sair um pouco mais cedo chegou a casa, por volta das seis da tarde, foi direita à bichana, estendida no meio da sala. Chamou-a pelo nome. Abriu os olhos - coisa que a Avó em todo o dia não tinha conseguido. A Adelina baixou-se, segurou-lhe o focinhito entre as mão como ela tanto gostava. Pareceu ficar consolada, deu um suspiro e ficou-se. Tinha esperado o dia inteiro que a dona chegasse para dela se despedir.
Foi no verão de 1988, ia fazer, se já os não tinha feito, vinte anos.
No dia seguinte, como também eu ainda estava ao serviço (foi aliás o meu último ano) meti uma licença e fui enterrá-la 31 quilómetros mais a sul, num pequeno terreno que havia comprado uns tempos atrás, na aldeia do Meco, lugar de Fetais. Sobre os despojos mortais da bichana, que em vida se chamou Ninfa Maria da Silva Vengoróvius, nasceu mais tarde uma nespereira, carregadinha agora, nesta Primavera que hoje começa, dos saborosos amarelados frutos que a Adelina tanto aprecia e que, em salutar harmonia, disputa taco a taco com a passarada da região.
Almada, 21 de Maço de 2007