2.24.2008

O TEMPO DAS HIENAS (2ª parte)

Sede da PIDE na Rua António Maria Cardoso
No antro das feras


Foi nessa noite que me vieram buscar...

Devia ser perto da meia noite, precisamente quando exausto da vigílias das noites anteriores, conseguira adormecer. Abertas as portas com o habitual estrondo e rangido de chaves, surgiu um dos guardas, recortado na pálida luz do corredor:
“Sr. Gouveia, prepare-se para ir à polícia”. Era a frase sacramental. Levantei-me assarapantado, enfiei os sapatos nos pés e lá me levaram para a António Maria Cardoso numa carrinha igual à que me tinha trazido, para uma luta desigual para a qual partia já fragilizado por duas noite de insónia, de ansiedade e de sofrimento.
Não era por acaso que não me tinham interrogado à chegada, quando eu vinha fresco e pimpão. Eles sabiam o que faziam.


Lá estava a mesma sala quadrada, a mesma secretária e a mesma máquina de escrever já com uma folha de papel presa nos carretos, um agente sentado em frente e desta vez acompanhado de um inspector, de nome R..., como vim depois a saber. Em frente da secretária, a meio da sala, outra cadeira onde me mandaram sentar.

Julgava eu que após a identificação, que aliás já constava na folha metida na máquina e que me foi lida para confirmação, eles entrassem directamente no assunto e me formulassem uma qualquer acusação que me caberia a mim tentar refutar. Mas não foi assim. O agente ajustou o carreto, poisou os dedos no teclado., ajeitou os óculos e o Inspector disparou:
“Pode começar, senhor Gouveia”
“Mas começar o quê? Qual é a acusação que têm contra mim?”
, retorqui genuinamente surpreso, pois não fazia ideia nenhuma de que era assim que as coisas se passavam.
“Não o acusamos de nada, senhor Gouveia, você é que deve saber as actividades em que tem andado metido e vai-nos contar tudo desde o princípio, Nós apreciaremos depois se o que nos conta coincide com o que nós já sabemos a seu respeito.
Armei-me em forte, com uma fortaleza que em nada correspondia aos meus receios interiores:
“Não tenho nada a contar. Se quiserem formulem-me uma acusação concreta e eu decidirei se tenho alguma coisa a dizer-vos.”
O inspector riu-se na minha cara. Uma gargalhada sonora, insolente, depreciativa e acrescentou:
Olhe, eu nem vou perder tempo consigo. Só lhe digo que o que está acima de si e o que está acima desse, já falaram. Agora é consigo. Deixo-o entregue aos meus rapazes. Temos todo o tempo do mundo para ouvir a sua história”.
E saiu com expressão trocista e o ar gingão que fazia gala em exibir.

O agente, do outro lado da secretária, depois de insistir, comigo para começar a “contar a minha história, que era melhor para mim e patati-patatá” e de posteriormente ter enveredado por outro tipo de conversas que nada tinham a ver com o motivo da minha prisão, face ao meu obstinado e absoluto silêncio, puxou de um livrito de banda desenhada e passou a ignorar-me por completo, instalando-se na sala um silêncio que me dava descanso por um lado, mas que acabava por se tornar enervante. De vez em quando levantava-se, ia até à janela, voltava a sentar-se, tamborilava com os dedos na secretária, bocejava e só de longe em longe voltava a insistir: “Então, Sr. Gouveia, comece lá. Só está a perder tempo!

Assim se passaram quatro horas que me pareceram ter a duração de quatrocentas. Só que muitas mais se haveriam de passar e cada vez mais custosas de suportar.

Por volta das quatro da manhã, entrou outro agente a substituir o primeiro. Era um homem de meia idade, mais velho do que os outros pides com quem tinha contactado, corado, ar de seminarista e também de óculos. Disse chamar-se não-sei-quantos Sardinha, sentou-se, insistiu várias vezes para que eu “contasse a minha história”(parecia um disco falhado), e perante o meu silêncio deixou-me em paz durante algum tempo.
A dada altura saiu da sala e pouco depois voltou acompanhado de outro. Este vinha armado em arruaceiro. Aliás era essa uma das tácticas usadas pela PIDE. Vinha um com falinhas mansas, tipo “bom rapaz”, “que estava naquela profissão porque não tinha arranjado outra melhor”, “que em todo o lado havia bom e mau”, “que ele compreendia que as pessoas não fossem afectas à “situação”. etc. e tal e logo de seguida entrava outro, com ar de ferrabrás, mata e esfola, tentando aterrorizar o preso. Vim a saber depois que eles alternam frequentemente os papéis: o que faz de bonzinho com um preso faz de vilão com outro e vice-versa. Este - combinada certamente a estratégia, cá fora - entrou logo à bruta e com grande estrondo: “Então este é que é o gajo que não quer falar”?

Quando o vi entrar, de rompante e com ar ameaçador, julguei que me ia agredir e levantei-me de um salto, numa posição instintiva de defesa. Limitou-se a dar um pontapé na cadeira, que caiu por terra com um barulho dos diabos, fazendo acorrer outros pides à porta. Levantou-a, agitou-a ameaçadoramente diante dos meus olhos e saiu vociferando perante o riso alvar dos comparsas” “Este cabrão não torna a sentar-se, enquanto não vomitar tudo cá para fora”. Tudo não passara de uma encenação para me retirarem a cadeira.

Às oito da manhã entrou um novo pide, ao meio-dia outro, outro às 16 horas, outro às 20, outro às 24 e era assim de quatro em quatro horas, cada um deles insistindo para que eu falasse - uns de mansinho, outros ameaçadores, e eu roído por dentro, no mais absoluto silêncio, andando de um lado para o outro como um tontinho, sem nunca mais me ter sentado desde as quatro horas da manhã.

Nessa segunda noite, a minha asma agravou-se de tal forma, que julguei morrer de asfixia e mesmo ali, naquela sala, me foi aplicada uma injecção. Confesso que tive receio que fosse para me liquidarem ou pelo menos para me doparem.. Sentia-me imensamente cansado. Esta era a minha quarta noite sem dormir, uma vez que nas duas noites passadas no Aljube, além do sofrimento provocado pela asma, não tinha igualmente pregado olho.
Passou-se essa infindável noite. Passou-se outro inenarrável dia. Alguns dos agentes começaram a repetir-se nos turnos e ao entrar mostrava-se surpreendidos:
O quê, você ainda aqui está? Você é que sabe. Olhe, como já reparou, nós mudamos de quatro em quatro horas. Você é sempre o mesmo. Você ainda acaba por endoidecer”.
E a verdade é que eu comecei mesmo a recear isso.
A uma dada altura, porém, eles abriram um pouco o jogo: “Diga quem o aliciou para o Partido, que actividades desenvolvia, com quem reunia, onde tinha essa reuniões...enfim, o senhor sabe e nós também sabemos, pois o seu controleiro já cantou. Só que contado por si tem outra graça”.

Na verdade eu já sabia que alguém tinha falado em mim, pois já fora avisado por um amigo e colega da CP - o senhor Homem de Figueiredo, velho socialista e homem de uma finura rara, que há dois meses se encontrava detido no Forte de Caxias. Só que eu não tinha feito grande caso do aviso. A minha actividade política era tão insignificante. Limitava-me, às vezes, a redigir e distribuir exposições ou abaixo assinados reivindicando melhores condições de vida e melhores salários na minha empresa, assinava outros, de interesse para a população em geral, participara activamente em várias campanhas eleitorais, designadamente nas do General Delgado para a Presidência da República, tudo isto de uma forma quase esporádica, e era tudo. Nada que pudesse ser considerado ilegal Só que, quando o fazia, o fazia de forma organizada e em conjunto com outras pessoas. Ora isso é que Salazar e todo o seu aparelho repressivo não toleravam

E voltou a cair a noite. A terceira naquela sala e a quinta sem dormir. O não dormir, apesar de mau, ainda não é o pior. O pior é a ansiedade, a angústia. “O que é que, exactamente, estes gajos saberão?”, “Como é que isto vai acabar?”, “Como é que me vou livrar disto sem comprometer ninguém?”. Este é que é o maior sofrimento. E a PIDE sabia-o e explorava esse sentimento com requintes de sadismo. “Ah se eles me fizessem uma acusação concreta que eu pudesse refutar ou aceitar, desde que isso me comprometesse só a mim!

Embora naquela situação não houvesse diferença entre ser dia ou ser noite, porque nunca se dormia, a verdade é que encarava com verdadeiro terror a chegada da noite. À noite os silêncios e os ruídos assumem significados que se podem tornar insuportáveis, sobretudo quando se está cansado, sobre pressão, só, fraco, e totalmente à mercê de um poder tenebroso que se sabe não recuar perante qualquer crime.

Entretanto, a falta de dormir, as horas consecutivas passadas de pé, a asma, o medo e toda a carga nervosa de que estava possuído, começavam a produzir os seus efeitos. Comecei a ter picadas nos olhos, a ver uma espécie de pirilampos imaginários que bailavam no ar, à minha frente, enquanto no chão, os inúmeros nós das tábuas do soalho se transformavam em baratas que corriam em todas as direcções, inclusivamente parecendo que começavam a trepar-me pelas pernas acima, enquanto a cabeça me estoirava, como se apertada por um capacete de aço.

Um dos pides de turno nessa noite era um tipo alto, magro, bastante novo, com um ar de malandro da noite, constantemente mascando pastilha elástica e apertando na mão uma pequena bola de borracha esponjosa, destinada a dar força na mão e ganhar músculo no braço. Aliás, gabava-se: “Como vê, não sou grande atleta, mas gajo a que eu dê um murro, vai ao chão de certeza”, e mirava-me como quem diz “Vê lá, se queres provar”.
Tendo-se cansado das suas exibições de boxeur malandro, começou a atazanar-me com a eterna lengalenga: “Então Sr. Gouveia”, “Quando é que se decide, Sr. Gouveia”. Os meus nervos estavam em franja. Não me contive e gritei-lhe: “Vá chatear a sua prima, seu pide de merda”. Veio direito a mim, numa fúria. Rezei para que ele me batesse. Isso enrijar-me ia. Encostei-me à parede, tendo apenas o cuidado de me afastar da janela, por onde já outros presos tinham “caído” e aguardei expectante. Não devia ter ordens para o fazer, pois se limitou a abanar-me com violência, ameaçando que me dava um enxugo de porrada, se voltasse a insultá-lo.
Voltou a sentar-se e sentenciou:
“Faça como entender, mas aviso-o de uma coisa. Você, daqui, só tem três saídas: Tribunal Plenário, Júlio de Matos ou Alto de São João”. E não voltou a dirigir-me palavra até ao resto do turno. Estas três únicas e sinistras saídas eram, aliás, constantemente repetidas por cada pide de turno: Tribunal plenário, Júlio de Matos ou Alto de São João... Tribunal plenário, Júlio de Matos ou Alto de São João, até a cabeça me estoirar...

À medida que a noite progredia o meu estado físico e psicológico ia-se deteriorando. Eu pressentia que qualquer coisa se estava passando que trazia os pides muito agitados. Havia vozes exaltadas e por vezes correrias nos corredores. Parecia-me ouvir gemidos e gritos e tudo isto tomava significados inquietantes e proporções desmesuradas no meu atormentado cérebro. Cá fora, depois das eleições roubadas ao General Delgado reinava grande agitação política, falava-se em golpes contra o regime. Em Cuba tinham começado por aqueles dias as execuções dos torcionários e esbirros da ditadura de Fulgêncio de Baptista, derrotado por Fidel na noite de Ano Novo, o que muito assustava a PIDE de cá e as várias PIDES por esse mundo fora. E eu sabia que, se algo fosse tentado contra eles, eles não iriam perder tempo com os presos que tivessem a pouca sorte de estar ali, no seu antro, naquela altura. Eles seriam pura e simplesmente abatidos.

A agitação que notava da parte deles, transferia-se para mim e provocava no meu cérebro cansado visões macabras e assustadoras. Tive medo. Muito medo. Como iria acabar aquele pesadelo? Vim a saber depois que nesse mesmo dia, 17 de Janeiro, o Capitão Henrique Galvão tinha fugido do hospital onde se encontrava há largo tempo sob prisão, refugiando-se na embaixada da Argentina. Era um grande revés para o regime, a juntar a outro bem próximo, ocorrido no dia 12, na véspera da minha detenção: o pedido de asilo político na Embaixada do Brasil, por parte de Humberto Delgado. Natural era, pois, que também os pides andassem desvairados e amedrontados mesmo. Tanto como eu, provavelmente.

Alta madrugada, aparece-me o inspector R... que nunca mais vira desde a primeira noite. Vinha bêbedo. Ficou especado no meio da sala mirando-me de alto a baixo, como que avaliar o estado da presa, e só depois avançou lentamente para o sítio onde eu estava, de pé, encostado à parede. Pôs-me a mão no ombro e abanou-me. Cheirava a vinho que tresandava. O cheiro a álcool exacerbava a minha asma. Fixou-me com olhos vermelhos e injectados de ébrio. encostou o rosto encarniçado ao meu - parecia que me ia beijar - e sussurrou-me ao ouvido: “Você, vê-se mesmo que está de peito feito para levar um ensaio de porrada. Não lhe damos esse prazer, ouviu? Não lhe damos esse prazer, sr. Gouveia” E não deram mesmo, tal como entrara, saiu porta fora sem mais uma palavra. Ficou por ali o seu pequeno e avinhado show.

Para cada preso eles tinham um tratamento adequado. Eles bem sabiam que, para quem está mais virado para actividades do espírito, a pressão psicológica, o esgotamento desse mesmo espírito que é afinal a sua ferramenta de trabalho, causa mais danos do que a pancada. Lembro-me de um generoso moço algarvio, o Manuel Lagos, latagão capaz de varrer meia dúzia de pides numa luta aberta, ter chegado à camarata do Aljube, para onde depois vim a ser transferido, chorando como uma criança e a dizer entre soluços de revolta: ”sacanas! Bateram-me! Bateram-me! Sacanas!. Bateram-me na cara! Na cara, sacanas!”. E não era o corpo que lhe doía, não. Era o amor próprio ultrajado. Tanto assim, que dias depois e sempre que se lembrava disso, as lágrimas corriam-lhe e repetia as mesmas magoadas palavras.

Lembro-me de outro, o João Borges, astuto camponês de Bencatel, que tendo chegado “da tortura do sono”, depois de não sei quantas noites, ele não dizia “Passei tantas noites sem dormir”. Ele exprimia assim sua revolta “Eh, camaradas! as noites que eu passei lá além, sem descalçar as botas.! “
É isso. A PIDE tinha tido bons mestres nos émulos de Hitler, primeiro, mais tarde da CIA e de outros que tais. E sabia bem onde as coisas doem, como doem e a quem doem.

Foi uma noite terrível aquela. As falsas baratas e os imaginários pirilampos eram cada vez mais numerosos e mais rápidos nos seus saltos e fantásticas acrobacias. Os pés inchavam-me, as pernas não as sentia. As dores nos rins eram atrozes. Não será por acaso que hoje tenho tantos problemas nas pernas e na coluna. Por incrível que pareça, não tinha sono. Os olhos esbugalhavam-se, ardiam-me, picavam-me, viam os tais pirilampos, mas nada de sono. E principalmente a asma, que não me dava tréguas

Não sei se haveria ali perto algum bar ou sociedade de recreio (nunca averiguei isso) mas durante boa parte da noite (era Sábado) ouvia música de um baile qualquer ao longe. O carnaval devia estar próximo e havia alguém que cantava uma canção brasileira, então muito em voga: “Ai morena, seria o meu maior prazer dançar no carnaval contigo, beijar a tua boca e depois morrer”. E depois morrer! Era o que me apetecia nessa hora, com a suavidade da cantiga. E não há contradição nenhuma - ao contrário do que possa parecer - entre o receio de ser morto e a vontade de suavemente se deixar morrer. E eu pensava na minha morena - a minha doce companheira, grávida de quatro meses - da qual nem sequer me fora permitido dar um beijo de despedida. Como ansiei beijá-la, naquela hora!

E assim continuou a noite e se fez dia. E eu ali. Eu e os meus algozes. Eles, sempre renovados e frescos e eu sempre o mesmo. E cada vez mais falto de forças. Era um jogo do gato e do rato em que este uma vez apanhado sabe que o seu destino é inexorável, Tenho assistido inúmeras vezes a esse prolongado jogo. O gato que filou um rato não o papa logo. Brinca com ele, atira-o ao ar, deixa o fugir, para logo de seguida o apanhar de novo, joga com ele de uma pata para a outra, como um jogador de hóquei, avançando com a bola, driblando o adversário em direcção à baliza, abocanha-o como se o fosse tragar, deixa-o fugir de novo e de novo se precipita sobre ele. E nestas sádicas manigâncias se diverte, tempos infindos, até que lhe dá o súbito golpe de misericórdia e regaladamente o papa. Eu era o rato. Como poderia esquivar-me ao golpe de misericórdia?

E o dia se passou, longo, sofrido, interminável. E voltou a noite. Sentia que era humanamente impossível aguentar muito mais, mas fiz um esforço para esticar as minhas resistências. No fundo era mais uma questão de amor próprio, de dignidade, de respeito por mim mesmo. Sentia que o momento de tomar uma decisão estava chegando. No meu cérebro cruzavam-se mil esquemas com vista a uma saída do labirinto infernal em que me encontrava metido. Só que uns anulavam os outros, opunham-se, cavalgavam-se, contradiziam-se. Nada fazia sentido.

Cansado do prolongado tumultuar de ideias, mergulhei, durante horas, na mais profunda apatia. O olhar ausente, o crânio uma caixa oca que parecia não fazer parte do meu corpo. Chegou a meia noite e tive consciência de ter chegado ao limite das minhas capacidades. Já que a única saída era, como se me exigia, “contar a minha história”, resolvi contá-la, à minha maneira, se fosse possível. Dependia do que eles soubessem.

Uma das suas exigências era saber quem me tinha aliciado para o Partido, como e quando. Ora, quem me tinha metido em tais andanças fora um colega e querido amigo, o Raul Reis, que trabalhava em Santa Apolónia, e eu por nada deste mundo queria incriminá-lo (mal sabia eu que ele fora preso precisamente no mesmo dia que eu, bem como outros dois colegas de Santa Apolónia, o António Reis, velho activista dos Centros Republicanos e o Mário Ribeiro Sanches, prestigiado árbitro de futebol).

Assim, já a manhã se aproximava, inventei um fulano que pretensamente tinha conhecido num piquenique de jovens do Movimento Nacional Democrático, o qual me tinha marcado um encontro num determinado sítio, e ali me propusera que eu me encarregasse de determinadas tarefas de agitação e propaganda dentro da CP e arranjasse outros colegas para comigo colaborarem em tais tarefas. Disse que sim e esporadicamente passara a fazer alguns desses trabalhos. Tudo isso era verdade, só que quem me levou até esse indivíduo, para mim completamente desconhecido foi, como atrás referi o meu colega Raul Reis - que eu deixei fora da história e que, entretanto, já faleceu há muitos anos.

Queriam saber o nome do indivíduo em questão. Aí foi fácil para mim esquivar-me. Pura e simplesmente não sabia. “Diga o pseudónimo”. Também não havia, da sua parte, qualquer pseudónimo. Referia-me a ele como “João”, mas era uma iniciativa minha. Mais tarde esse “João” afastou-se e apresentou-nos um substituto a quem eu e os meus amigos nos referíamos como “João II”. Posteriormente veio outro a quem chamámos “João III” e finalmente um último (julgo que tenha sido este que falou em nós à polícia), a quem apelidámos de “João IV”. Comentário de um dos pides presente: “Porra! Por pouco não chegavam ao João XXIII” - alusão óbvia ao simpático e carismático Papa, que então ocupava a cátedra de São Pedro.

Era tão pequeno, afinal, o “crime” que eu tinha praticado. Aliás a sucessão de “Joões” era reflexo da pouca e desligada actividade que eu e os meus colegas desenvolvíamos. Era muito maior a minha actividade cívica como cidadão não organizado (campanhas eleitorais, por exemplo) do que, organizadamente, a nível de célula de Empresa. Aliás - o que é um defeito - nunca me senti grandemente vocacionado para trabalhar em grupo.

A parte mais custosa da “minha história” - a que me fizera suportar todos aqueles dias de autêntica tortura - era revelar o nome dos colegas que faziam parte do grupo que comigo executava algumas dessas tarefas (distribuir uns panfletos, recolher assinaturas a favor de qualquer movimento de intervenção cívica, exigir a libertação dos presos políticos, ou a reposição de direitos fundamentais da constituição, constantemente violados, ... coisas desse género, naturais em qualquer regime minimamente democrático).

Mas essa era precisamente a que eles estavam, porventura mais interessados em conhecer. Aí houve um novo impasse, porque eu não queria continuar. Mas quando se começa.... Face à minha resistência ensaiaram uma falsa condescendência: “Diga ao menos os pseudónimos”. Fui tão ingénuo que caí na esparrela: Só que, tirando eu (que para os “Joões “ era André e o Artur, que para eles era Paulo, ninguém mais tinha pseudónimos. Assim, tanto me moeram o juízo que acabei por inventar mais quatro pseudónimos, acreditando, isto é, querendo acreditar - como se isso fosse possível - que tudo ficaria por ali. Como seria de esperar, depois dos pseudónimos voltaram a exigir os nomes. Era pior a emenda que o soneto, pois a existência de pseudónimos, que nem era verdadeira, poderia fazer pressupor um grau de organização que na realidade não existia. Embezerrei durante mais um par de horas, recusando-me a juntar os nomes aos pseudónimos, mas já não era possível voltar atrás.

Mesmo assim, voltaram à carga: “Só estes? Então e os de Santa Apolónia?” Neguei que tivesse algo a ver com Santa Apolónia, que o Rossio era outra organização (o que não era verdade). Insistiram, insistiram, mas acabaram por desistir, Não deviam ter a certeza, Foi um pequeno alívio para as minhas amarguras.

Já era dia claro quando me largaram, feito um farrapo. E foi só depois de todo este “tratamento” que, antes de me levaram de volta para o Aljube, me tiraram as clássicas fotos para figurar nos seus arquivos com as caras patibulares que faziam questão fosse a imagem dos opositores ao regime. O normal é um preso ser identificado e fotografado logo à chegada, porém, quanto a fotos, a pide só as tirava após a tortura do sono ou outras malfeitorias com o detido de barba por fazer e aspecto taciturno. Ciente das suas perversas intenções tentei contrariar tais desígnios esboçando um sorriso para a câmara. Mas deve ter sido um sorriso muito amarelo - o sorriso de quem trazia a morte na alma.

* * *

Mal entrei na cela, a primeira coisa em que reparei, em cima da tarimba, foi o saco, que imediatamente reconheci, que minha mulher, entretanto me tinha enviado com roupa e artigos de toilette. Ali estavam, sobre a sórdida manta de sorrobeco, o meu pijama muito bem dobradinho, roupa interior, uma camisa, tudo com o cheiro familiar e bom da minha casa, escova de dentes, pasta, pincel da barba, lâminas e sabão, caneta e papel de carta. Com que carinho e apreensão não preparara a Adelina aquela trouxinha com os meus pertences! Pensando nisso os olhos encheram-se-me de lágrimas. Foi dos momentos mais emocionantes de toda a minha vida. Lá estava também a bomba para os ataques de asma guardada em casa dos meus pais, desde que lá saira para a minha própria casa, da qual não voltara a precisar e que agora me enviavam.

Julguei que quando chegasse ao Aljube iria cair na tarimba e dormir como uma pedra, mas para grande surpresa minha e maior desespero, assim não aconteceu. Não só permaneci acordado durante o dia, como não dormi durante toda a noite, nem na seguinte. Receei ter perdido o sono para sempre. Ali estava enrodilhado na tarimba, de olhos abertos, pensando em tudo o que me estava acontecendo, extenuado, mas nada de dormir. Pedi para ir ao médico. Mandou que me dessem uns comprimidos tranquilizantes e só assim, na terceira noite, consegui dormir. Ao fim de nove dias era a minha primeira noite de um relativo e precário repouso, entrecortado o sono de terríficos e infindáveis pesadelos.
_____________
Continua

15 Comments:

Blogger Maria said...

Era assim mesmo, António.
Os esbirros sabiam o que faziam e como deviam fazer.
Este teu testemunho que só agora li tirou-me o sono, se é que tinha algum. A História recente do nosso País há-de fazer-se, um dia. Oxalá seja rigorosa com estes 50 anos, para que todos os jovens saibam e percebam melhor o que aconteceu não só aqui como também nos países de língua ofocial portuguesa.
Para que não se apague a memória. Para que NUNCA MAIS!!!

Um abraço, meu Amigo

25 fevereiro, 2008 06:12  
Blogger Luis Eme said...

Relato extraordinário, que devia ser lido pelos jovens e por quem compara a ASAE à PIDE (é mais um processo de branqueamento, como fizeram com Salazar nos grandes portugueses...)

Abraço António

26 fevereiro, 2008 10:33  
Blogger Eme said...

Na primeira parte confessei-me impressionada. Na segunda, ainda me encontro mais. Entre mais uma misturada de sentires, talvez de revolta por ter havido pessoas que tiveram de passar por um inferno destes, tentando manter até ao fim a lucidez, a honra, a dignidade, o não denunciar os companheiros de luta até não mais aguentar. Não há dúvida que mais do que a porrada, a tortura psicológica até ao limite deixa marcas mais profundas do que qualquer outra coisa. A PIDE sabia-o bem. Impressionante António. Obrigada pela partilha e venha o terceiro episódio!

Abraço muitissimo grande

26 fevereiro, 2008 19:00  
Blogger Pepe Luigi said...

Caro António,

Ninguém que não tenha passado o que tu passaste e mais outros tantos camaradas, poderá avaliar na pele quanto sofreram para que o alvorar da manhã do dia 25 de Abril de 1974 se tornasse uma realidade. O teu cuidadoso e incisivo pormenor de narração é prova disso.
Sentidamente e ao mesmo tempo com muito orgulho em me ter relacionado contigo, presto a minha homenagem aos homens teus iguais.

Um forte abraço

27 fevereiro, 2008 11:41  
Blogger Kalinka said...

Olá António
Há muito que queria cá vir deixar-lhe uma palavra de agradecimento, por teres deixado a tua história sobre doenças que sofreste ou ainda sofres, no blog da minha sobrinha, a pikenatonta...ela pedia que deixassem lá situações idênticas à dela. Ela ficou muito grata e disse noutro post que gostaria de continuar a trocar comentários contigo, mas...ela está muito em baixo, depois de 2 meses ali fechada e sem ver grandes melhoras, as forças foram-se; não a critico, no lugar dela sei lá se tinha tido tanto tempo com boa disposição e coragem, como ela tem tido...
Mudando de assunto, este País está a necessitar de passar por outra revolução, pois há muita gentinha que anda a abusar dos mais frágeis, tirando-nos os direitos que adquirimos; neste momento estou a sentir uma repressão enorme no local de trabalho, está a ser muito complicado para mim...Mudar é a minha palavra de ordem neste momento, estou a passar muito mal no meu local de trabalho, sinto-me presa de movimentos e olhares, completamente reprimida, e pergunto-me:Vou para onde?

Por vezes medito num lugar ou noutro, e registo o que medito na máquina fotográfica, queres vir espreitar?
Beijinho.

27 fevereiro, 2008 21:52  
Blogger Isabel said...

Querido amigo António, ler este relato, escrito por ti, fez-me chorar.
Tu sabes como te sinto próximo e essa proximidade faz com que sinta ainda mais as tuas palavras.
As coisas que contas são inimagináveis para quem não as viveu, quem diga que imagina, mente, porque há coisas que a imaginação não alcança.
Eu já sabia que tinhas passado por isso, não sabia o quanto tinha sido terrível e o quanto te deve ter marcado para sempre.
Sempre soube que eras um GRANDE HOMEM, ler este relato não te tornou maior aos meus olhos, porque sempre foste imenso para mim, mas ajudou-me a “tentar”perceber melhor aquilo que tu e outros como tu devem ter passado.
Sabes, eu, que sempre tenho conseguido manter-me fiel aos amigos e aos valores e ideias em que acredito, já pensei muitas vezes o que faria se um dia me encontrasse numa situação parecida com a que te encontraste, porque a verdade é que só podemos falar de fidelidade verdadeira depois de esta ter sido posta à prova.
Gosto de pensar que saberia e conseguiria ser uma grande mulher como tu foste um grande homem, mas não sei, só sabe quem por lá passou.
Tu sabes meu amigo!
Podes orgulhar-te disso.
Sabes quem és e o que vales.
Eu orgulho-me de te ter como amigo.

/ não sei o que aconteceu ao comentário que dizes ter deixado lá no meu blog. Com muita pena minha nem sequer o vi, não apago comentários pois ali a liberdade de expressão é total e muito menos apagaria um comentário teu, És das tais pessoas que por ali vão passando que sinto como amigos, e fico contente cada vez que vejo que tiraste um tempinho para me ler e me comentar, as tuas visitas e as tuas palavras tem muito valor para mim meu amigo/

Um abraço sentido

Isabel

28 fevereiro, 2008 11:45  
Blogger sofialisboa said...

que horror, que tempos estes, que estupidez...e que coragem também, a tua claro.PS: mas os tempos passaram e sabemos que muito pior existe hoje pelo mundo fora. não duvido do teu sofrimentos e de muitos, mas o que se sabe hoje é que a pide era uma criança em relação ao que se fazia nessa altura e também ainda hoje. Um horror criado pelo homem contra a humanidade. Só não percebo como aguentaste estar 9 dias sem dormir.bjs meus sofia

28 fevereiro, 2008 15:35  
Blogger Paula Raposo said...

Foi com a maior emoção que te li. Fico sem palavras. Muitos beijos.

29 fevereiro, 2008 12:59  
Anonymous Anónimo said...

Andei um pouco fugido, mas sempre soube apreciar este espaço de memória, persistência e consistência, uma mais valia indiscutível na blogosfera, que muito aprecio. Leio e não me canso de ficar agradavelmente surpreso pelas suas qualidades que se revelam, uma vez mais, aqui neste texto. Um tempo de hienas, agora que andam por aí uns aventesmas saudosos dessa fauna do passado. Encerrei os meus blogues anteriores e abri novo espaço, mas modesto. Boa semana e sempre a estimá-lo.

01 março, 2008 02:57  
Blogger Kalinka said...

Olá António
Leio cheia de emoção...
Como as visitas ainda são poucas, sento-me aqui ao pé de ti para conversarmos e peço-te:conta-me mais histórias tuas!!!
ADORO ler-te.
Pelo kalinka, recebi mais um «miminho», felizmente sou muito mimada por todos vocês.
Beijinhos.

04 março, 2008 20:56  
Blogger Maria Carvalhosa said...

Caro amigo Ant�nio,

Hoje n�o estou aqui para te deixar um coment�rio ao post, mas para divulgar um evento no qual poder�s ter interesse em participar:

Concurso de Poesia 2008

http://horabsurda.org/moodle/course/view.php?id=30

Este � o site do concurso de poesia para 2008 do �Ora, vejamos...�, administrado por Henrique Sousa e que conta com a colabora�o preciosa de v�rios dos seus amigos e amigas.
Os contactos com vista � constitui�o do j�ri do concurso j� terminaram e o j�ri est� formado, com tr�s elementos do f�rum, sendo que dois pertenceram ao j�ri do concurso de contos do ano passado.
O concurso tem sido amplamente divulgado nos espa�os pessoais de alguns membros do �Ora, vejamos...�, colabora�o muito bem-vinda para divulgar o evento.

O envio dos poemas para o concurso come�ou �s 12 horas do dia 1 de Mar�o e termina �s 12 horas do dia 31 de Mar�o, horas de Portugal Continental.

Beijos.

05 março, 2008 15:34  
Blogger Menina Marota said...

Quem esteve fora de toda esta situação, parecerá quase kafkaniano o teu relato e a maior parte dos relatos que, muitos dos que passaram por situações análogas, nos transmitem.

Descreves de uma tal forma realista que consigo visionar-te e sentir todos os receios e angústias que passaste.

Um relato de momentos que não podem ser esquecidos, antes pelo contrário, deverão ser divulgados e conhecidos, para que a memória deles, não caia no esquecimento.

Grata por esta partilha e acima de tudo, grata por aí estares, por sofreres o que sofreste, para que outros possam agora, viver em liberdade!

Um abraço carinhoso e comovido, pela excelência das tuas memórias.

05 março, 2008 17:20  
Anonymous Anónimo said...

antónio:
fui sempre deixando para amanhã os comentários que te queria fazer....
agoraé tão tarde,querido primo. partiste ontem, tão cedo! que se pode fazer com este teu blog tão importante?
Se alguns dos teus amigos ...tiverem capacidade....
amanhã estarei no teu funeral as 15horas em Almada

17 março, 2008 19:58  
Blogger Paula Raposo said...

Profundamente emocionada te deixo o meu último adeus...que descanses em paz. Beijos.

18 março, 2008 08:57  
Blogger fj said...

um abraço sentido e de pesar

19 março, 2008 19:35  

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