1.31.2006

UM DIA NA VIDA DE SUA EXCELÊNCIA

Sua excelência acordou bem disposto esta manhã. Dois comprimidos de serenal tomados antes de deitar asseguraram-lhe um sono tranquilo. Fica escutando as vozes na sala. É Dona Micá, mais madrugadora, dando ordens à criada, para que o senhor encontre tudo como gosta, quando se levantar. Sabendo-se só, Sua excelência alivia-se ruidosamente dos gases acumulados durante a noite, saboreia a cama por mais uns momentos, até que, espreguiçando-se se levanta e se dirige â casa de banho.
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Despe-se e fica-se olhando no grande espelho biselé que lhe devolve a sua rotunda imagem em pelota. Lá estão os pés enormes deformados por joanetes, as pernas cambadas e peludas, ventre saliente que, que de frente o obriga a curvar-se ligeiramente para que possa ver o berloque, o peito semeado de cabelos esbranquiçados, o pescoço atarracado que no Liceu lhe valeu a alcunha de “Berloquinho sem pescoço” pela qual durante muitos anos foi tratado e a cabeça meio careca ladeada de um par de orelhas enormes, vulgarmente conhecidas por orelhas de abano.
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Sua excelência, contudo já se habituou ao corpo que tem e não se mostra desagradado com o que vê.” não está mal, não está mal, para a minha idade não está mal.! Faz meia dúzia de flexões de pernas, levanta e baixa repetidamente os braços, estica-os para os lados, em simultâneo, com gestos vigorosos, numa espécie de ginástica que não dispensa todas as manhãs.Coça demoradamente os testículos – hábito compulsivo que já lhe acarretou alguns dissabores e reprimendas do Partido por diversas vezes as câmaras de televisão o terem captado em frenético coçadouro, mas não consegue controlar o feio vício. Senta-se na sanita e, sem esforço, sua excelência produz uma monumental larada,. daquelas que só se encontram no campo atrás de um muro velho ou num valado atrás de um silvado, deixadas por robustos e saudáveis camponeses – o que só abona a favor dos hábitos alimentares e higiénicos de Sua excelência.
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Toma depois o seu banho, (não sem antes puxar o autoclismo, é evidente). Longo tempo permanece debaixo da água, quentinha, quentinha que até dá gosto. Ensaboa-se com um champô “for men”, caríssimo que trouxe de uma das suas viagens de serviço a Nova York, volta a abrir o duche e só volta a fechar depois de toda a espuma desaparecer do seu corpo e do fundo da banheira. Dantes tinha o hábito de urinar no banho, mas agora que se habituou a ir primeiro à sanita, não sente mais necessidade de o fazer.Depois de seco, vestido e penteado e barbeado, dirige-se à sala onde se encontra já preparado o pequeno almoço. Bebe um sumo de laranja, come uma tigela de cereais com leite, um ovo escalfado. ao qual retira com mestria o pedacinho de casca que lhe permite introduzir a colher a fim de retirar a gema quentinha e remata com um café forte e cremoso. Está pronto o guerreiro para o combate.
Pega na volumosa pasta que sempre o acompanha e que é como que o seu ex-libris, a sua imagem de marca, beija a dona Micá (melhor dito, aflora-lhe com os lábios a face, pois beijar, beijar “y otras cositas màs” são termos e actos que há muito desapareceram do vocabulário íntimo de Sua excelência e dona Micá).
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Dirige-se ao elevador que o leva directamente à garagem, onde com a porta do Audi aberta, o espera já, devidamente uniformizado o seu motorista particular..Ouve de Sua excelência uma espécie de grunhido que interpreta como “bom dia” e sem necessidade de qualquer palavra de ordem põe o carro a trabalhar e sai em direcção à Directoria-geral, que ele sabe ser o destino certo de Sua excelência às 10,30 todas as manhãs.
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Quando Sua excelência entra no seu sumptuoso gabinete, depois de ter sido mimoseado, através de vários corredores por dúzias de reverenciais, “bons dias, Excelência” e de acrobáticos dobras de colunas lombares e cervicais, que ele não dispensa ) “estes filhos de puta, a seguir ao 25 de Abril tornaram-se muito arrogantes, mas agora já voltaram a entrar nos eixos”, resmungava entre dentes sempre que recebia estes mimos. são agora exactamente 11.00 horas, marcadas no vistoso relógio incrustado na parede fronteira à sua enorme secretária, que ele faz questão de designar sempre por mesa de trabalho., provavelmente para não se confundir com a secretária de carne e osso (mais carne que osso, suponho) que lhe presta assistência...
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E aí está ela, a secretária. Vem trazer o correio e os jornais do dia. Não só tem muita carne, como eu adiantei, mas, sobretudo muito bem distribuída. Farto seio, que um decote ousado faz salientar, cintura fina, nádegas roliças e firmes, pernas gordas e bem lançadas. Sua excelência pede lhe para pôr tudo no lado mais à direita e mais ao fundo da mesa, aquele que a obriga a curvar-se, proporcionando-lhe uma melhor visão dos seios que quase saltam de dentro da blusa. Outras vezes, Sua excelência manda-a colocar tudo em cima do sofá ao fundo, em frente da mesa, afim de que, ao curvar-se, lhe possa, encher o olho concupiscente com a visão das suas coxas e da curva empinada da nádegas...
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Despede-a com um sorriso complacente, dá uma vista de olhos pelos jornais e, de entre o correio, começa por abrir o do seu Banco. Sabe que hoje traz o extracto dos seus saques e depósitos. O que vê, ilumina-lhe o rosto: mais 20 mil euros, referentes ao seu vencimento mensal, engrossam a partir de hoje a sua conta. Neste nem sequer toca. fica para juntar à grossa maquia de que já dispõe, bem recatada num Banco estrangeiro. Na verdade a pensão que recebe pelo tempo em que foi deputado e membro do governo, dá-lhe, só por si, para viver à grande...
Pouco depois volta a secretária com a pasta do expediente para assinatura de Sua excelência. Sua excelência nem olha, assina tudo com um displicente e enjoado, que canseira, meu deus!.
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Despacha tudo num quarto de hora e prepara-se para recomeçar a leitura dos jornais, quando a secretária anuncia. Está aqui o Sr. Edmond Smith. V.Excelência que recebe-lo? Que porra! quer uma pessoa trabalhar e estes gajos não me largam, mas de repente Sua Excelência lembra-se do nome e do negócio chorudo que lhe pode proporcionar. Sim, sim, posso dispor de uns minutinhos para receber o Sr. Smith. O Sr. Smith vem recordar o assunto da renovação de todo o material informático (hardware e software, com exlusivo por dez anos, à sua Direcção-Geral e a todas as empresas associadas, que dependem directamente de Sua excelência. Isso já foi tudo combinado, só quer saber se sua Excelência já obteve o parecer favorável dos seus Serviços Técnicos. Sua excelência não tinha ainda (isto é uma vida do catano, sabe?) mas trocou dois ou três telefonemas, chamou dois ou três colaboradores e tudo ficou resolvido num instante.
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Quando saiu o Sr Smith levava um sorriso de orelha a orelha e sua Execlência esfregava as mãos de contente. Mais um reforço para a sua conta. E pronto assim se passa a manhã e está na hora de almoçar. Francamente não deixam uma pessoa trabalhar. Menina, telefone aí para o Grill do Meridien e marque mesa para duas pessoas. Hoje faço questão que vá almoçar comigo. Mas, excelência… não há mas, nem meio mas, você merece e quero que me faça companhia.E lá foram, pouco depois.
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Regressam agora, são quase 15,30. ele meio bebido, de charuto nos lábios e ela corada que nem um pimentão e com o cabelo algo mais desarrumado.Mal se sentou e já a secretária interrompe. Excelência, a dona Mizé ao telefone. Só faltava esta! A Mizé é uma boazoana com quem ele anda envolvido há dois ou três anos e a quem até montou casa ali para o Restelo. Diz querida, que se passa? Tens saudade, também eu minha jóia. Agora? Agora não, querida, tenho aqui muito que fazer Quando sair passo por aí. Sim prometo. Ora, ora, como pode um pobre director geral fazer promessas com uma vida tão atribulada. O telefone toca de novo. O quê? participar no jantar de apoio ao nosso candidato, o professor Silva? Onde? Sei onde é. Claro, às 20 horas, por causa dos noticiários. E um donativo? Tanto? Sim, compreendo a campanha é dispendiosa. Claro que temos de ganhar isto, são os nossos interesses que estão em jogo. Então até logo.
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Lá se vai o encontro com a Mizé. Telefona-lhe a comunicar o inoportuno jantar que o impede de se verem hoje, Oh filha, não chores, fica para amanhã… querias muito que fosse hoje? (esta puta quer-me cravar algum vestido ou alguma jóia). Tá bem filha, são 5 horas, até âs 7 e meia dá muito tempo para a gente se divertir. Eu vou já para aí, quero-te com aquela lingerie cara que te comprei e o perfume que eu gosto. Que vida! Coitado de sua Sua Exelência.
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Passados 15 minutos estava no carro a caminho do Restelo. Vou poupar-vos a mais este sacrifício a que Sua excelência se vê forçado. Tudo se passou como previsto. As delícias que a boazona lhe proporcionou acabaram por lhe custar, como sempre, os olhos da cara, mas Sua excelência encara todas estas contrariedades com espírito de missão.Depois da tarde de sexo, ainda a estopada do jantar, onde teve de apertar a mão a uma data de idiotas, dar e levar umas quantas pancadas nas costas, cumprimentar o Professor, e bater frenéticas palmas durante a sua patriótica intervenção.
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Quando chegou a casa, dona Micá já estava deitada, mas acordada ainda: - Então querido, que tal te correu o dia? - Uma maçada, querida, venho mais morto que vivo! Sua excelência foi ainda à casa de banho, onde se deliciou bom tempo no seu indispensável coçar de tomates, fez mais uma larada em tudo semelhante à da manhã. tomou um duche rápido, deitou-se e adormeceu imediatamente. O caso não é para menos, depois de um dia tão fatigante. Este foi, pois, um dia como tantos outros na vida de Sua Excelência.
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Alguém notou alguma diferença entre sua Excelência e o comum dos mortais? Em minha modesta opinião a única diferença é que, por menos trabalho, ganha muito mais do que a grande maioria dos seus concidadãos, mas sua Excelência, precisa, coitado, não é?...