2.07.2008

O TEMPO DAS HIENAS - 1



Aquele dia 13 de Janeiro de 1959


De acordo com ancestrais crendices populares, há dias azarentos em que nem sequer se deveria sair de casa (já os romanos tinham os seus dias fastos e nefastos). Um dos mais pretensamente enguiçados da nossa cultura é o dia 13 de cada mês. No que me toca, não sou particularmente ligado a esse tipo de superstições, mas a verdade (“yo no credo en brujas, pero que las hay”, hay, como dizem “nuestros hermanos”) aquele dia 13 de Janeiro de 1959 foi, de facto, um dia de muito azar para mim. E não só, já que o meu azar se reflectiu, como é de ver, na minha própria família.

Em boa verdade, o azar que tive neste dia era o mesmo a que estavam sujeitos todos os portugueses que pensavam pela sua cabeça e que, como cidadãos de direito, por palavras e actos, não perdiam ocasião de expressar as suas opiniões e de participar em todas as actividades cívicas que a Lei autorizava e a polícia reprimia.


Pouco passava das 9 horas da manhã. Ainda mal nos tínhamos sentado à secretária para mais um dos rotineiros e enfadonhos dias de trabalho nos escritórios da CP, na Calçada do Duque, quando irrompe na sala o Chefe de Serviço acompanhado de dois indivíduos, de gabardine, tão parecidos entre si no seu aspecto geral, como a famosa parelha Dupont & Dupond das aventuras de Tin-tin. Só que com uma expressão patibular que nada tinha de comum com o ar bonacheirão dos detectives saídos do lápis mágico do Hergé de saudosa memória.

Era o meu amigo e quase irmão, o Artur Vaz, quem eles procuravam. “Polícia Internacional e de Defesa do Estado”, disseram. “Considere-se preso”, acrescentaram logo de seguida. E vá de o encostar à parede e começar a revistar-lhe a secretária. Algumas das gavetas estavam fechadas e o Artur, possivelmente para lhes dificultar a tarefa, teimava que não sabia das chaves. Logo houve um colega muito colaborante (aparece sempre um simpático filho de puta muito zeloso em colaborar com as autoridades) que arranjou uma chave que servia.

Toca a esvaziar as gavetas e passar tudo a pente fino. Enquanto isso, logo que me dei conta do que estava acontecendo, corri para o pátio adjacente aos escritórios e fui de repartição em repartição dar o alarme, informando que estava ali a PIDE para prender o Artur e exortando os colegas a abandonarem os seus lugares e virem manifestar-se cá fora, o que muitos fizeram, juntando-se no pátio com grande clamor, aos gritos de “fora, fora, assassinos!”

Dali a pouco, carrancudos, saíam os dois agentes recebidos com apupos e vaias dos trabalhadores aglomerados no pátio, tendo-se rapidamente afastado, com ar rancoroso e a mão ostensivamente pousada no coldre. Para nosso espanto, porém, vinham sozinhos. O Artur não estava com eles. Teriam desistido de o prender?

Depressa soubemos o que se passara. Achando os pides entretidos a vasculhar os papéis, o Artur, aventureiro como era, meteu-se-lhe na mona que não se iria deixar prender. Dá um encontrão num dos pides que lhe obstruía o caminho, atravessa a correr a comprida sala, pelo meio das secretárias e, perante a muda estupefacção dos colegas que ali permaneciam, sai porta fora.
Os pides sacam das pistolas, lançam-se em sua perseguição. Só que eles não conheciam os cantos à casa e enquanto se dirigiam para a porta que dava para o pátio e pela qual tinham entrado, o Artur descia rapidamente uma série de escadas de caracol que, em sentido oposto, vinham dar à gare da estação do Rossio, desaparecendo no meio dos passageiros.
Nunca mais o viram. Isto é, viram-no três anos depois, quando o prenderam na noite de fim de ano de 1961, na sequência do famoso assalto ao quartel de Beja em que ele era um dos participantes.

Quanto a mim, depois de tudo acalmado, dirigi-me à minha secretária para retomar o trabalho. Qual o quê! Fui imediatamente chamado ao Chefe de Serviço que me informou terem os pides perguntado por mim logo que se lhes escapou o inicial objecto da sua caçada. Não tendo sido encontrado no meu local habitual de trabalho, uma vez que me encontrava cá fora no grupo de manifestantes, concluiu o chefe e concluíram os bófias que eu tinha aproveitado a confusão para me pirar também, pelo que desistiram de me procurar.

Ora, como a sua conclusão fora precipitada, dado que nunca me ausentei das instalações da Companhia, achei que podia continuar com o meu trabalho e os pides, se quisessem que voltassem a procurar-me, ali ou na minha residência. Aliás era isso que aconteceria se, tendo-me procurado na minha casa não me tivessem ali encontrado. Nesse caso, obviamente que eu continuaria a fazer a minha vida normal, apresentar-me-ia ao serviço, como de costume e aguardaria calmamente (para não dizer angustiadamente) o posterior e duvidoso desenrolar dos acontecimentos.

O Chefe de Serviço, porém, não era da mesma opinião. Entendia que, face ao sucedido, eu não podia continuar a trabalhar. Invectivei-o indignadamente, acusando-o de estar, objectivamente, a ser mais Pide que os pides, pois estava, no fundo, a fazer o serviço deles, sem que isso lhe tivesse sido sequer encomendado.

O homem - que até nem era má pessoa - estava tão ou mais enervado do que eu. Pálido e trémulo, hesitava entre a razão dos meus argumentos e o medo pavoroso que a PIDE lhe inspirava. Era esse medo, aliás, essa colaboração passiva, embora nem sempre consciente, que alimentava a manutenção do regime. Face à minha resistência, consultou o Director de Pessoal - esse sim, incondicional afecto ao regime - que, tal como ele, se limitou a lavar as mãos: para eles eu estava à disposição da polícia e não podia continuar ao serviço.

Que fazer? Entregar-me à bófia? Fugir, como o Artur? Só que o Artur não tinha compromissos familiares e eu era casado (recém-casado, aliás) e a minha jovem mulher, grávida, aguardava um filho. E depois, que tinha eu feito que merecesse ser encarcerado? Durante todo o resto da manhã me debati com este dilema.

Depois do almoço tomei a decisão que a situação em que fora colocado tornava inevitável. Após ter escrito um protesto que deixei nas mãos do Chefe de Serviço, contra o seu procedimento absurdo e servilmente colaboracionista, telefonei à Adelina, minha mulher, comunicando-lhe a minha intenção, despedi-me dos colegas, na sua maioria calorosamente solidários e, caminhando lentamente (a pressa não era nenhuma, está bem de ver), saí da Calçada do Duque, atravessei a Rua da Condessa - onde me apercebi, pelos olhares compungidos, que muitos dos moradores que me conheciam já estavam ao corrente do sucedido, passei rente ao Quartel do Carmo, desci a Calçada do Sacramento e subi a rua Garrett, olhando demoradamente as montras.

Demorei-me junto à vitrina da pastelaria Marques, recordando o hábito de, precisamente com o Artur, esborratarmos o nariz e a boca nas montras das pastelarias da zona, com um ar premeditada e exageradamente “gavroche”, para contemplar - como dizíamos em voz alta, de forma a sermos ouvidos pelos escandalizados frequentadores - “aquilo que os sacanas dos ricos comem”.

Saboreei, como se fosse o último da minha vida, um negro, espumante e vagaroso café na Brasileira; acenei ao meu amigo Chiado, sentado no seu eterno banquinho, indiferente, no seu ar chocarreiro, às cagadelas dos pombos que teimosamente o assediam (ainda vinha longe o tempo em que à mesa do café vizinho, mais snob, mais bem comportado, se viria eternizar em bronze o seu confrade Fernando Pessoa); entrei na Livraria Diário de Notícias, ali mesmo à esquina, onde folheei dois ou três livros; detive-me a olhar os cartazes dos filmes em exibição no Chiado Terrase, sendo o principal, julgo, referente ao “Stalag 17”, filme de resistência ao nazismo interpretado por William Holden (belos tempos em que por meia dúzia de escudos se papavam ali duas fitas na mesma sessão e ainda um desenho animado ou o jornal de actualidades): desci a Rua António Maria Cardoso, mirei ainda os cartazes do São Luís e com o coração apertado, mas já mais calmo, entrei no sinistro casarão da famigerada polícia política de Salazar.

Mal sonhava, quando saí de casa naquela manhã fria de Janeiro, beijei a minha mulher e, como sempre, lhe disse “até logo”, que aquele “até logo” iria durar exactamente noventa e cinco dias e, sobretudo, noventa e cinco intermináveis noites.

* * * *

Não era a primeira vez que entrava no antro da PIDE. Já ali tinha estado, alguns anos antes, na sequência de uma contra-fé intimando-me a comparecer para prestar declarações sobre não me lembro o quê (talvez a assinatura de um abaixo assinado contestando o aumento das rendas de casa, vituperando a carestia de vida, exigindo a libertação dos presos políticos). Tudo era proibido nesses tempos!
Nessa altura ia receoso mas calmo. A idade e as responsabilidades também eram outras. Reconheci como minha a assinatura do abaixo-assinado, justifiquei com alguma petulância, diga-se, as razões que me tinham levado a fazê-lo, e assinei tranquilamente o auto de declarações. Rosnaram-me uma série de ameaças que na altura não me deixaram muito preocupado e saí todo “inchado” por ter enfrentado a poderosa polícia política de Salazar. Já tinha que contar aos meus amigos.

Agora as coisas eram diferentes. Mal a porta se fechou atrás de mim fui tomado de grande angústia, uma espécie de claustrofobia. Parecia que o tecto me esmagava. Apeteceu-me gritar, recuar, fugir dali para fora, mas era tarde demais. “Que deseja?” perguntou-me o porteiro (julgo que policial também), com ar razoavelmente cortês. Disse ao que vinha, relatando os episódios daquela manhã. O ar amável desapareceu como por encanto. “Sente-se e espere”.

Passou-se uma boa meia hora que me pareceu uma eternidade. Entravam e saíam pides, galhofando, mas nenhum deles pertencia à brigada que me tinha procurado. Por fim lá aparecerem: “Com que então ganhou juízo e arrependeu-se de ter dado à sola! Foi o melhor que fez”. Neguei que tivesse fugido, mas isso pareceu ser-lhes indiferente. O importante, para eles, é que eu estava ali e a sua folha de serviço não ia ser afectada pelo fracasso da operação de que tinham sido incumbidos.

Fizeram-me subir, um à minha frente, outro atrás, até ao último piso do edifício, por uma íngreme escada de degraus encerados, de madeira escura, ladeada por um corrimão que me pareceu colocado a um nível mais baixo do que é usual. Conhecendo os antecedentes de outros presos que se tinham “descuidado” e precipitado daquelas escadas, subi rentinho à parede, afastado o mais possível do corrimão.

Chegados ao cimo, encafuaram-me numa pequena sala rectangular, com uma secretária, uma máquina de escrever, uma cadeira atrás e outra à frente, mais afastada, colocada ao meio da sala. Fecharam a porta e saíram sem dizer uma palavra. Tudo estudado para me provocar ansiedade. Montes de tempo se passaram. Ouvia passos nos corredores, vozes cochichando, ordens gritadas de vez em quando, passos que pareciam aproximar-se para logo diminuírem de intensidade, mas a porta permanecia fechada.

Por fim apareceram outros dois agentes. Com ar agressivo e provocador: “Então este é que é o tal? O gajo tem ar de intelectual. São os piores!” Não sei onde é que eles foram desencantar o ar de intelectual que me atribuíam. Talvez por vir razoavelmente bem vestido. Trazia um bonito sobretudo, recém estreado (ainda hoje o tenho), no qual eu tinha uma certa vaidade por ter sido eu próprio a desenhá-lo e mandado fazer, à medida, por um alfaiate amigo, uma camisa de flanela verde e preta, aos quadradinhos e um belo dum cachecol, verde também, enrolado com ar fadista à volta do pescoço. Talvez por usar óculos (nesse tempo havia muito menos gente que os usasse). Talvez pelo ar de poeta que lhes sugerisse o cabelo comprido e revolto que sempre usei.


Além da provocação - esta e outras bem piores - pouco mais adiantaram: “Sente-se. Nome, morada, profissão, estado civil, filiação, porque é que fugiu”, “não fugi, já lhes disse”, e foi tudo.

Toca a descer a mesma escada, com os mesmos calafrios e as mesmas cautelas da minha parte. Enfiaram-me numa carrinha azul escura ( marcas de carro nunca foram ciência que eu cultivasse) de caixa fechada, com uma pequena janela gradeada e revestida de rede, de cada lado, e ala não me disseram para onde.

Por uma das janelinhas, ia espreitando o caminho. Rua António Maria Cardoso abaixo, Rua Victor Cordon (lá estava o edifício da FNAT - que serve hoje de sede da CGTP), rua da Conceição, Rua de Santo António da Sé... Era para o Aljube que me levavam. Cá fora era o bulício dos fins de tarde da baixa lisboeta. Ruas cheias de transeuntes indiferentes à passagem da viatura, que só os mais atentos ou mais politizados sabiam destinar-se ao transporte de presos. E eu lá dentro, com o coração apertado, sorvendo com sofreguidão o fervilhar da vida na cidade, o cheiro das castanhas assadas dos vendedores ambulantes, e as últimas réstias de luz daquele dia soalheiro e frio, prestes a chegar ao fim.

* * * *

Aljube é uma palavra de origem árabe, que significa prisão, cárcere escuro, caverna, poço. Na verdade as antigas cadeias mouras eram subterrâneas, sem janelas para a rua - autênticos poços.

Pois o Aljube, o edifício prisional para onde me levaram, se exteriormente em nada se parece com um poço ou caverna (é um edifício rectangular - parece que antigo paço episcopal e posteriormente prisão de mulheres - com cinco pisos, sendo o último mais recuado e de construção recente). O seu segundo piso, para onde me conduziram, ocupado pelas celas, que na gíria dos seus forçados ocupantes, são conhecidas por “curros” ou “gavetas”, não teria mais conforto, nem mais luz, nem menos humidade que os poços-prisão da antiga moirama.

Entrava-se num corredor estreito, cuja pesada porta se fechava imediatamente atrás de nós. À esquerda, e a todo o comprimento, a espessa parede da frontaria do prédio com janelas de larguíssimo peitoril, protegidas por grossas grades de ferro e revestidas por uma rede de malha miúda, para reforçar a segurança e dificultar a visão; à direita, a sucessão dos pequenos cubículos - os tais “curros”, interrompida a meio por uma reentrância onde se situam os sanitários - uma pia no chão, sem qualquer resguardo e um pequeno e encardido lavatório - sem qualquer porta a separá-lo do corredor, de forma a que os presos pudessem sempre ser vigiados, mesmo no acto de satisfazer as suas mais elementares necessidades fisiológicas.

A escassa luz do corredor, que a rede e as grades filtravam, não chegava aos cubículos, pois estes não davam directamente para o corredor. Primeiro, havia uma porta com uma janeleca do tamanho de um livro vulgar; em seguida, à distância de um metro, uma outra porta com outro janelo com as mesmas reduzidas dimensões; e era atrás dessa segunda porta, fechada à chave, tal como a primeira, que ficava o cubículo onde os presos passavam os seus dias. Isto é, um tempo de lusco-fusco, onde o dia e a noite se confundiam, onde se dormitava de dia e se velava de noite, na sobressaltada expectativa de ser levado para os perigosos e temidos interrogatórios, pois era sempre a meio da noite que eles, intencionalmente, vinham buscar os presos

O cubículo tinha exactamente o comprimento de duas estreitas tarimbas, colocadas uma a seguir à outra e a largura não devia exceder em 30 ou 40 centímetros a largura das ditas tarimbas. Digamos que cerca de dois metros de comprimento, por pouco mais de um metro de largura. É claro que são valores aproximados e a partir de recordações a uma distância de 50 anos.

É fácil deduzir que era quase impossível duas pessoas mexerem-se, e muito menos circularem num espaço tão reduzido, sobretudo quando as tarimbas ou bailiques, como lhe chamavam, estivessem descidas. Assim, quando se queria desentorpecer um pouco as pernas, dobrava-se a tarimba que enganchava numa tábua com uns 20 cms de larga, colocada a meio da parede, a qual servia de base para, de pé, se engolirem, quando o estômago o permitia as mal amanhadas refeições que à hora aprazada nos traziam, em encardidos pratos de alumínio ou estanho ou coisa que o valha.

Quando entrei sentei-me acabrunhado no primeiro bailique e ali fiquei durante muito tempo virado para o pequeno janelo, de forma a ter sempre diante dos olhos um pouco de claridade, para que a sensação de me encontrar num sítio sem ar nem luz não se transformasse em pânico.
Finalmente apercebi-me que no bailique do fundo, havia alguém deitado, que até então não tinha tugido nem mugido e que só agora denunciava a sua presença através de uma estrondosa escarradela. Fui eu que tive de meter conversa. Só que o indivíduo em questão não era ou não estava nada conversador. Pouco troco me deu. Vim a perceber mais tarde: ele estava na retranca, pensando que eu fosse algum provocador posto ali pela PIDE para obter informações. Tal procedimento era, aliás, muito frequente por parte daquela polícia.

* * * *


Por volta das 19 horas um burburinho no corredor, e um abrir e fechar sucessivo de portas vieram quebrar o silêncio quase sepulcral que reinava no nosso tugúrio e nos adjacentes. Até que chegou a nossa vez. Chave a girar na fechadura, primeira porta aberta, chave a girar na segunda porta e um servente, gorducho, de fato macaco de caqui amarelo, surgiu acompanhado de um guarda. Era o nosso jantar: sopa e dois pequenos cachuchos fritos com arroz. A sopa era uma aguada desenxabida e os cachuchos vinham completamente frios. Como a apresentação era pouco convidativa e o apetite era nulo, mal toquei na comida. Foi o meu sorumbático companheiro que, mesmo sem dizer palavra, se abarbatou com o excedente, que deglutiu num fechar de olhos.

Um pouco antes das 21 horas assomou o guarda à janelinha da porta exterior, a perguntar se alguém queria ir à casa de banho. Foi um de cada vez, como era regulamentar. Pouco depois tudo se aquietou no corredor. Era tempo de dormir. Sobre o catre de madeira havia uma estreita e magra enxerga, cheia de palha moída e revestido de uma espécie de serapilheira. O mesmo tecido, aliás, que revestia a almofada encardida, cheia igualmente de palha miudinha, a desfazer-se em pó. Para me cobrir dispunha apenas de uma manta de sorrobeco, de um castanho ruço, suja das botas de anteriores ocupantes que nelas se tinham embrulhado calçados, com inequívocos vestígios de ejaculações nocturnas, cheirando a suor, a pó e a medo.


Ora, sendo eu alérgico precisamente ao cheiro da palha e ao pó, que durante toda a minha adolescência me provocavam frequentes e dramáticas crises de asma, comecei desde logo a antever o pior para aquela primeira noite de clausura. Sem pijama, sem lençóis, sem fronha na almofada, descalcei-me apenas e deitei-me vestido com a repelente manta por cima, à qual acrescentei o meu sobretudo de estimação. Para obviar um pouco a repugnância do contacto da manta, debruei a sua parte superior - a que me ficava mais perto do nariz e da boca - com um lenço lavado que por acaso trazia dentro do bolso, e foi de barriga para cima e segurando o lenço com as mãos que, recorrendo ao clássico e quase sempre improfícuo método de contar carneiros, procurei adormecer.

Não passou muito tempo sem que a asma - que nos últimos três ou quatro anos me tinha deixado sossegado - se manifestasse em toda a sua violência. Levantei-me aflito e fui colocar-me em frente à pequena janela, na ânsia de obter algum do ar que me faltava, com os brônquios a ronronar como se lá dentro tivesse uma ninhada de gatos. O meu companheiro, vendo o meu estado deve ter-se convencido que não iam pôr ali nenhum bufo para estar a sofrer daquela maneira e acorreu solícito, chamando pelo guarda e dando murros na porta, face à sua demora.

Passado algum tempo, estremunhado, a bocejar e de muito mau humor lá apareceu o guarda, assomando ao postigo e a perguntar o que é que se passava. Foi-me arranjar um comprimido qualquer, que não tinha nada a ver com a especificidade da doença, e voltou ao seu descanso dizendo que àquela hora nada mais podia fazer. Passei o resto da noite sentado, ofegante, com os brônquios numa barulheira tal, que até ao meu vizinho tirou o sono.

Logo na manhã seguinte apareceu-me o enfermeiro. Alto, obeso, pesadão, vermelhusco de cara, já entradote em anos, com um pé a pedir licença ao outro para se mover, a inquirir o que se passava comigo. Queixei-me da falta de ar que me tinha atormentado toda a noite. Responde-me o lapuz: “Ora, ora, falta de ar têm todos vocês logo que entram aqui para dentro”. Insisti que não era dessa falta de ar mas de um forte ataque de asma. Lá se convenceu, face à infernal chiadeira que acompanhava as minha palavras,

Fui levado ao médico. Chamava-se Mira da Silva e além de prestar serviço na PIDE era também médico na CP, onde eu trabalhava, como já referi. Fiz-lhe notar que o conhecia, mas ele nem pestanejou, nem o mais pequeno gesto de simpatia ou interesse perpassou no seu rosto redondo e balofo. Receitou-me umas injecções (antibiótico e aminofilina), uma das quais me foi pouco depois aplicada, com consequente, embora passageiro alívio. Pedi autorização para que os meus pais me levassem uma bomba anti-asma que eu tinha deixado com eles quando me casei e que nunca mais, até então precisara de usar - o que me foi autorizado.

Quando regressei à cela, tive então ocasião de conversar com o meu companheiro. Era um homem com mais de 50 anos, operário corticeiro e, por sinal, vestido de acordo com a sua profissão, um velho fato macaco, de ganga azul debotado por muito uso e muitas lavagens. Boa pessoa, mas um tanto rude. Lembro-me (coisa que a princípio me fez arregalar os olhos de incomodado espanto) que enquanto conversava comigo se peidava ruidosamente, com uma sem-cerimónia notável. Por outro lado, se o guarda se demorava a vir abrir-lhe a porta para ir à sanita - o que muitas vezes acontecia, com grande desespero nosso - ele não estava com meias medidas e fazia o que tinha a fazer num balde que tinha para o efeito, ali ao pé de mim, com o maior à-vontade deste mundo. Imagine-se o pivete, num cubículo fechado de tão exíguas dimensões.

A segunda noite foi igualmente passada em claro, pois embora de forma mais atenuada, a asma se mantinha. Aliás, já quando era mais novo, era sempre de noite, na cama, que os acessos asmáticos se manifestavam com maior intensidade.

Um terceiro dia se passou, apoquentado pela asma, sentado no horroroso bailique, mergulhado em permanente semi-obscuridade, sem espaço para me movimentar, sem um lápis para escrever, sem um livro para ler e sobretudo numa indescritível ansiedade sem saber o que pretendiam de mim.

Foi nessa noite que me vieram buscar...

_______________________________

Continua

21 Comments:

Blogger Eme said...

Estou absolutamente sem palavras António! Sem palavras. Deixa-me puxar-te até mim por esse cachecol verde e dar-te um abraço. Histórias assim contadas por quem sofreu os dramas em primeira mão são raras para mim como bem sabes, que não vivi em Portugal e tudo o que sei é de um ao outro que diz algo sobre o medo da PIDE mas nada tão bem contado, tão bem descrito como o que me dás a ler hoje. Extenso mas contagioso!
Como tu António, és oficialmente contagioso :)
Um beijo grande e fico a aguardar a segunda parte, que o modo como acabas deixa-me aqui um suspense (tê-lo-ão maltratado? Virá algo surpreendente.? )
Cá te espero

07 fevereiro, 2008 18:55  
Anonymous Anónimo said...

Bem-vindo, António.
Um abraço
Xico

07 fevereiro, 2008 21:44  
Blogger Bichodeconta said...

Estou sem palavras António, conheço episódias e vivencias desses tempos, mas com essa clareza, com esse sofrimento e revolta entranhado, não... Não vou perder a segunda parte, prometo..um beijinho e o desejo de que por muitos anos tenhamos o privilégio de o ler...

07 fevereiro, 2008 23:27  
Blogger Maria said...

Impossível parar de te ler, António.
Um importante testemunho para os mais jovens que te leem e às vezes até acham que nós exageramos quando falamos destas coisas....
Muito importante, para que não se apague a nossa memória colectiva.
Fico à espera do próximo capítulo.

Beijinhos, e gosto de te ver aqui, de novo.

08 fevereiro, 2008 16:36  
Blogger Menina Marota said...

Estou feliz com o teu regresso!
E ler-te é realmente um privilégio! Aguardo com impaciência a continuação da estória...

Um abraço carinhoso e bom fim de semana ;)

09 fevereiro, 2008 15:14  
Anonymous Anónimo said...

Este texto, que li de um fôlego, faz-me recordar que ainda hoje sinto a garganta seca ao lembrar-me do medo que sentia sempre que passava na rua António Maria Cardoso e na Rua Duques de Bragança local onde trabalhei como funcionária da CP quando ali temporariamente se instalou a sua Direcção de Pessoal, entre 1971 e 1974, e tantas vezes quando tinha que ir ao arquivo ouvia choro de homens, sem saber o que se passava, porque era nova e não sabia que as celas dos interrogatórios, embora em edifícios diferentes, se situavam imediatamente por trás da porta do nosso arquivo.

A primeira vez que isso aconteceu, claro que na minha ingenuidade mal cheguei à secretária disse logo o que tinha ouvido. Ficaram todos muito calados a olhar-me.

Passado algum tempo o Chefe, chamou-me de parte e avisou-me que nunca mais repetisse o que acabava de dizer, porque o que se passava nos outros prédios não nos dizia respeito.

Achei tudo muito estranho e tive que aprofundar, falando com outras pessoas que então me disseram o que lá se passava.

Ainda hoje tenho esses sons nos meus ouvidos

Um abraço

Pobieda

10 fevereiro, 2008 19:49  
Blogger Kalinka said...

Antóno
continuo adorar ler as suas histórias de Vida.

No Dia Mundial do Doente, a minha mensagem é:
Neste dia de afectos, não esquecer que a nossa saúde mental e física beneficia também da atenção e carinho que dedicarmos aos nossos mais próximos e semelhantes.

Um abraço.

12 fevereiro, 2008 00:13  
Blogger sofialisboa said...

Hoje só consegui ler metade mas volto sim, inacreditavel como as coisas corriam nesses tempos, quase que dá voltade de rir da estupidez da pide... sofialisboa

12 fevereiro, 2008 13:49  
Blogger Pepe Luigi said...

Caro António,
Magnífico relato sobre os tempos da "outra senhora" magnanimamente escrito.
A riqueza dos pormenores sobre a ambientalidade citadina da época aliado à tua opada e recheada crónica de vida fazem deste texto um autentico best seller.

Um reconhecido abraço.

12 fevereiro, 2008 21:24  
Blogger Amla said...

Soube bem ler-te. Não porque fales de coisas agradáveis, sim porque falas de um país k foi o nosso ainda há tão puco tempo, das perseguições e das torturas sequentes, de um fascismo k alguns dizem k não existiu...
Na madrugada do assalto ao Quartel de Beja acordei cedo como sempre e os ares que percorriam as ruas estavam doiferentes, mas eu não sabia porquê. Andava no entanto com o nariz no ar, sentidos em alerta, a capturar os ventos e as mensagens que traziam. meu pai acabou por me dizer: houve um assalato ao Quartel e a cidade está em "estado de sítio".
Ele marchou para o Monte onde estava sempre o caseiro e a sua família e que ficava num bom caminho a partir do quartel novo e k muitas vezes calcorreei -
Os barros da região de Beja eram classificados de 1ª, no Inverno os campos de barro agarravam-se aos sapatos ou botas e faziam-nos crescer 5, 10, 15 cm até k o peso nos n~ºao deixava andar. Parávamos e tirávamos aquelas "novas solas" até outras se formarem -
Próximo ao quartel, por baixo, passava uma linha de combóio desactivada pela qual, feita estrada,se caminhava sem ganhar kilos adicionais no calçado. Meu pai marchou aver se alguém se protegera no Monte e necessitaria apoio.
Eu saí para a cidade nua de transeuntes. Ouvia-se um ribombar forte de motores e havia GNR's com metralhadoras por toda a cidade.
Na cidade deserta, eu criança-
jovem, Caminhei como quem os afronta, seguindo o ruído que alastrava pela cidade.
Dos portões da GNR, frente e um pouco abaixo do Jardim M., qual bocarra escancarada saíam, incessantemente como se houvesse uma fábrica a produzí-los, camiões "animogues" - não sei como se escreve, era o som k ouvia chamarem-lhe, se deturpado ou não não sei. Aqueles camiões ficaram smp associados a coisas negativas.
E foi o k fiz, caminhando arrogante, parando diante deles, homens do povo armados em cães de guarda. Observei e revoltei-me mais e mais. As aldeias ao redor ficaram desertas de homens que foram carregados como nos filmes os nazis carregavam os judeus, polacosm, etc.
Da cidade muitos se foram. O delator, começou a correr dias depois, era um bejense k aderira ao movimento e k depois entregou todos delatando.
Meu pai voltou espumando. De noite os fugitivos haviam passado no Monte solicitando guarida, o caseiro não lha dera.
Se bem lembro disse-lhes k podiam beber, k lhes podia dar pão, mas guarida não. Eles alegavam k um estava ferido...
Justificava k aparecerem homens de madrugada pedindo guarida era coisa inédita e acreditou k seriam bandidos. Não sabia de nada, não poderia saber. O mOnte nessa altura só tinha luz dos candeeiros de petróleo. Não tinha rádio, tinha a mulher e um filho ainda bebé...
Apesar de zangadas fomos, a mãe e eu, que evitámos que o pai o lançasse no desemprego fazendo-lhe ver que o mal estava feito e k as razões do caseiro eram lógicas. Tristes, dolorosas, mas lógicas.
E nesse dia a minha revolta contra
a injustiça, o governo cresceumais ainda.
Lembro as fotos k publicaram mais tarde nos jornais dando daqueles patriotas uma imagem turva, suja, com fácies que Lombrosianamente o povo facilmente associava a facínoras.
Gostei de te ler porque a memória não deve morrer.
Bj
Luz e paz

14 fevereiro, 2008 12:17  
Blogger António Melenas said...

Excelente relato do dia seguinte ao Assalto ao quartel de Beja em que participou o meu amigo Artur!

Quiem sabe se um dos feridos que solicitou abrigo ao vosso caseiro não era um outro meu amigo e colega da CP, o jovem Raúl Zagalo, que levou um tiro num joelho?!

É soma destes pequenos depoimentos, este e o outro acima aasinado por Pobieda, que que ajudam a reconstruir a história desses obscuros e sofridos tempos

14 fevereiro, 2008 14:04  
Blogger david santos said...

Olá, António!
Mas ainda tens o sobretudo e andas cá connosco.

Mas os esbirros, esses (...) da (...), onde estão?
Claro que alguns ainda andam por aí e com boas reformas, mas estão muito longe de ter o teu viver e a tua consciência.
Eles hoje, embora sejam o que sempre foram, são ratazanas sem ar livre.
Mas tu és o nosso António de sempre.

Parabéns


David Santos

14 fevereiro, 2008 19:27  
Anonymous Anónimo said...

Há, grande Eça contemporâneo!

Um legado, já te disse. De facto, um tesouro!

Obrigada.

14 fevereiro, 2008 20:37  
Blogger Bichodeconta said...

António, cuidado, essas ienas continuam á solta e a ganhar força.. beijinho

15 fevereiro, 2008 19:22  
Blogger *Um Momento* said...

Meu Amigo...
Como devem ter sido dificeis esses tempos...
Abraço-te Forte desejando que estejas completamente curado da tua Pneumonia...

Beijo no teu coração

(*)

16 fevereiro, 2008 19:28  
Blogger MARIA said...

Olá António,
Fiquei feliz por revê-lo a escrever e a escrever com esta genialidade.
A história é a fantástica radiografia de um sistema e de uma época.
O texto é arte. Da melhor qualidade.
Virei ler o resto da história.

Um beijinho amigo

Maria

17 fevereiro, 2008 23:23  
Blogger profg said...

Olá
Tenho menos de metade da sua idade e adorava ter a sua vitalidade.
Gostei de ler o que escreveu, permite-me ter acesso a uma época de que infelizmente pouco se fala. Ainda não aprendemos que é sobre a reflexão dos tempos idos que se constroi o futuro. Obrigada

18 fevereiro, 2008 00:03  
Blogger Paula Raposo said...

Fantástica descrição, António. Sem palavras...muitos beijos para ti.

19 fevereiro, 2008 12:59  
Blogger Menina Marota said...

Vi-te por aí num comentário e vim a correr, julgando que já tinha a continuação do teu fantástico relato de Vida.

Aguardo então.

Entretnto, deixo-te um abraço carinhoso ;))

22 fevereiro, 2008 16:00  
Blogger Maria Oliveira said...

� sempre estimulante ler textos interessantes!
Grande abra�o

24 fevereiro, 2008 10:33  
Blogger a d´almeida nunes said...

Todos sabemos do que foi a prepotência com que nos quiseram encurralar, no regime do Estado Novo.
Mas ler histórias destas até arrepia os nossos sentidos. Admirável a forma como alguns portugueses de raça afrontaram o sistema político de então.
Tanta dor, tanto sofrimento, tanta coragem por uma causa que era de todos, mas que a maioria fazia por ignorar. Porquê? MEDO...IGNORÂNCIA...MEDO, MEDO.
É o medo que sustenta as ditaduras, sejam elas quais forem!
Um grande abraço, António
António nunes

24 fevereiro, 2008 13:53  

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