Foi mesmo à porta do prédio onde moro, aqui em Almada, que o encontrei. O homem,
alto, corpulento, andrajoso, barba esquálida e longa cabeleira de um branco sujo, debruçava-se sobre o recipiente do lixo de onde retirava restos de comida que levava directamente à boca, com os dedos, longos, nodosos e encardidos. Sobejos das festas de Natal, por certo, dos moradores dos prédios vizinhos.
Aproximei-me para ali depositar o saquito de lixo que levava. O homem olhou-me com olhos coscorantes, enviesados, e rosnou-me como um cão a quem se aproximasse para lhe tirar o bocado que deglutia. Não foi a primeira vez que vi gente a comer do caixote do lixo, mas este homem provocou-me uma reacção estranha. Recuei algo assustado, com uma sensação de algo déjà vu inexplicável e eis que um rápido flashback da minha memória me fez recuar cerca de setenta anos, até aos remotos tempos da minha infância em que uma figura assim povoava de medos e tecia fantasias acerca de uma figura como esta. Era o Falmegas.
De entre as estranhas personagens com que tenho deparado ao longo da minha vida, uma das mais insidiosas, mais enigmática e que mais retenho na memória e na retina, é a de um vagabundo que de tempos a tempos surgia em Maçores – a minha aldeia natal – nos meus tempos de criança.
Andaria eu por volta dos meus cinco anos, quando o vi pela última vez, mas a sua figura, o mistério que o rodeava e o fim trágico da sua vida não mais se me varreram da memória, como aliás acontece com tudo o que se refere aos anos que vivi na minha aldeia, de onde saí há tantos anos, tantos... que, embora mensuráveis na sua contagem aritmética, não há medida afectiva que os possa avaliar.
O Falmegas!
Quando o seu vulto surgia no cimo do anfiteatro da serra - o Monte Ladeiro – ao fundo de cujas encostas acachapadas negrejava o aglomerada de casas xistosas que constituíam a aldeia e o conjunto de casebres que formavam os palheiros, logo os “raparigos” corriam a esconder-se no recôndito das suas casas, para de seguida o vir espreitar de costas, atirando-lhe pedras e açulando-lhe cães, após a sua passagem, rua abaixo, até ao “lagar do meio”, junto à “Pracinha”, mesmo em frente da casa onde morávamos. Ali se amodorrava junto ao fogo, sentado num tronco, rilhando uma das côdeas duras que tirava do bornal, silencioso, cabisbaixo e, não raras vezes catando piolhos, gordos ganaus que atirava para o lume, onde estralejavam como castanhas a estoirar na brasa.
De dia, ainda eu me aventurava a segui-lo, de longe, no meio da outra garotada, associando-me ao coro de vaias e arremesso de pedras. À noite, porém, tapava a cabeça com os cobertores para fugir à visão da sua temível figura que teimava em se insinuar, ameaçadora, no negrume do pequeno quartinho em que dormia. Aliás, a simples evocação do seu nome era remédio santo que a minha mãe utilizava para me obrigar a comer as pobres migas de centeio, ou a ficar quietinho no meu canto, quando ela precisava de sossego para fazer as nunca terminadas lides da casa.
Forte, espadaúdo, alto, de uma altura que a nossa pequenez fazia avolumar, cabeleira branca e hirsuta esvoaçando ao vento, barba grisalha descendo sobre o peito largo, empunhando um nodoso e monumental cassete que atirava aos cães e aos garotos que, por trás e de longe o apupavam, e soltando impropérios e ameaças de gelar o sangue, toda a sua figura lembrava às vezes um profeta bíblico e outras um temível foragido das galés.
Calcorreando as serranias transmontanas, o Falmegas era visto hoje numa aldeia, no dia seguinte noutra a léguas de distância, grimpando um cabeço, descendo a curva de um vale, atravessando pinhais, cortando por soutos, atalhando por vinhas e courelas, dormindo em palheiros e desaparecendo tão repentinamente como surgia.
Ninguém lhe conhecia o poiso, a origem. a família, ou qualquer outro nome, que não fosse “Falmegas” - alcunha de que ninguém sabia o significado ou origem.
A seu respeito corriam as mais desencontradas versões: herdeiro de fabulosa fortuna a quem os irmãos, aproveitando-se da sua congénita loucura haviam escorraçado, diziam uns; virtuoso pároco de aldeia a quem o diabo tentara na lasciva figura de uma das suas confessadas, que o levara a esquecer os votos religiosos e mais tarde o trocara por um tenente da guarda, opinavam outros; moço de lavoura que ousara erguer os olhos para a filha dos seus amos, os quais além de lha negarem o tinham mandado zurzir, deixando-o como morto e para sempre perdido da razão, juravam outros ainda; brasileiro de torna viagem que, voltando à terra podre de rico, encontrara a mulher amasiada com o seu melhor amigo, matando um e outro e abalando tresloucado, não se sabendo o paradeiro da enorme fortuna amealhada no seu longínquo mourejar, teimavam alguns.
Conjecturas apenas.
De concreto, ninguém sabia nada, além da troça ou medo, conforme as ocasiões, que o pobre inspirava nos mais longínquos povoados onde a sua presença se fazia notar de tempos a tempos, como que obedecendo a um calendário cíclico que a sua cabeça doente engendrava e misteriosamente geria.
A última vez que o vi remonta, pelo menos, ao distante ano de 1934, pois foi nessa altura que os meus pais deixaram a aldeia, em demanda de condições de vida que ali não lhe eram então propiciadas.
Ele, no entanto, continuou na sua enigmática peregrinação por vales e serras, cujo périplo nunca ninguém desvendou e que de tempos a tempos incluía Maçores no seu percurso, até que nunca mais voltou a ser visto por aquelas paragens.
Há quem diga que apareceu enforcado no ramo de um pinheiro bravo, lá mais para o norte, no meio de um descampado, já meio comido por aves de rapina.
Há quem afirme, pelo contrário, que foi encontrado num poço velho abandonado, na várzea da Vilariça.
Numa coisa parecem estar todos de acordo. Por baixo das surradas e esfarrapadas vestes de mendigo andarilho, ter-lhe-á sido encontrado, pendente do pescoço negro da sujidade de anos e de sóis escaldantes, um grosso e valioso cordão de ouro, com um finíssimo medalhão de esmalte, onde figurava o retrato de uma jovem senhora, linda... linda de morrer...
E tanto... que, por ela, matou e morreu o Falmegas.

Se gostou deste conto, o FALMEGAS,
pode ouvi-lo na voz de Luís Gaspar
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