4.16.2007

O FALMEGAS

Foi mesmo à porta do prédio onde moro, aqui em Almada, que o encontrei. O homem, alto, corpulento, andrajoso, barba esquálida e longa cabeleira de um branco sujo, debruçava-se sobre o recipiente do lixo de onde retirava restos de comida que levava directamente à boca, com os dedos, longos, nodosos e encardidos. Sobejos das festas de Natal, por certo, dos moradores dos prédios vizinhos.

Aproximei-me para ali depositar o saquito de lixo que levava. O homem olhou-me com olhos coscorantes, enviesados, e rosnou-me como um cão a quem se aproximasse para lhe tirar o bocado que deglutia. Não foi a primeira vez que vi gente a comer do caixote do lixo, mas este homem provocou-me uma reacção estranha. Recuei algo assustado, com uma sensação de algo déjà vu inexplicável e eis que um rápido flashback da minha memória me fez recuar cerca de setenta anos, até aos remotos tempos da minha infância em que uma figura assim povoava de medos e tecia fantasias acerca de uma figura como esta. Era o Falmegas.

De entre as estranhas personagens com que tenho deparado ao longo da minha vida, uma das mais insidiosas, mais enigmática e que mais retenho na memória e na retina, é a de um vagabundo que de tempos a tempos surgia em Maçores – a minha aldeia natal – nos meus tempos de criança.

Andaria eu por volta dos meus cinco anos, quando o vi pela última vez, mas a sua figura, o mistério que o rodeava e o fim trágico da sua vida não mais se me varreram da memória, como aliás acontece com tudo o que se refere aos anos que vivi na minha aldeia, de onde saí há tantos anos, tantos... que, embora mensuráveis na sua contagem aritmética, não há medida afectiva que os possa avaliar.

O Falmegas!

Quando o seu vulto surgia no cimo do anfiteatro da serra - o Monte Ladeiro – ao fundo de cujas encostas acachapadas negrejava o aglomerada de casas xistosas que constituíam a aldeia e o conjunto de casebres que formavam os palheiros, logo os “raparigos” corriam a esconder-se no recôndito das suas casas, para de seguida o vir espreitar de costas, atirando-lhe pedras e açulando-lhe cães, após a sua passagem, rua abaixo, até ao “lagar do meio”, junto à “Pracinha”, mesmo em frente da casa onde morávamos. Ali se amodorrava junto ao fogo, sentado num tronco, rilhando uma das côdeas duras que tirava do bornal, silencioso, cabisbaixo e, não raras vezes catando piolhos, gordos ganaus que atirava para o lume, onde estralejavam como castanhas a estoirar na brasa.

De dia, ainda eu me aventurava a segui-lo, de longe, no meio da outra garotada, associando-me ao coro de vaias e arremesso de pedras. À noite, porém, tapava a cabeça com os cobertores para fugir à visão da sua temível figura que teimava em se insinuar, ameaçadora, no negrume do pequeno quartinho em que dormia. Aliás, a simples evocação do seu nome era remédio santo que a minha mãe utilizava para me obrigar a comer as pobres migas de centeio, ou a ficar quietinho no meu canto, quando ela precisava de sossego para fazer as nunca terminadas lides da casa.

Forte, espadaúdo, alto, de uma altura que a nossa pequenez fazia avolumar, cabeleira branca e hirsuta esvoaçando ao vento, barba grisalha descendo sobre o peito largo, empunhando um nodoso e monumental cassete que atirava aos cães e aos garotos que, por trás e de longe o apupavam, e soltando impropérios e ameaças de gelar o sangue, toda a sua figura lembrava às vezes um profeta bíblico e outras um temível foragido das galés.

Calcorreando as serranias transmontanas, o Falmegas era visto hoje numa aldeia, no dia seguinte noutra a léguas de distância, grimpando um cabeço, descendo a curva de um vale, atravessando pinhais, cortando por soutos, atalhando por vinhas e courelas, dormindo em palheiros e desaparecendo tão repentinamente como surgia.

Ninguém lhe conhecia o poiso, a origem. a família, ou qualquer outro nome, que não fosse “Falmegas” - alcunha de que ninguém sabia o significado ou origem.

A seu respeito corriam as mais desencontradas versões: herdeiro de fabulosa fortuna a quem os irmãos, aproveitando-se da sua congénita loucura haviam escorraçado, diziam uns; virtuoso pároco de aldeia a quem o diabo tentara na lasciva figura de uma das suas confessadas, que o levara a esquecer os votos religiosos e mais tarde o trocara por um tenente da guarda, opinavam outros; moço de lavoura que ousara erguer os olhos para a filha dos seus amos, os quais além de lha negarem o tinham mandado zurzir, deixando-o como morto e para sempre perdido da razão, juravam outros ainda; brasileiro de torna viagem que, voltando à terra podre de rico, encontrara a mulher amasiada com o seu melhor amigo, matando um e outro e abalando tresloucado, não se sabendo o paradeiro da enorme fortuna amealhada no seu longínquo mourejar, teimavam alguns.

Conjecturas apenas.

De concreto, ninguém sabia nada, além da troça ou medo, conforme as ocasiões, que o pobre inspirava nos mais longínquos povoados onde a sua presença se fazia notar de tempos a tempos, como que obedecendo a um calendário cíclico que a sua cabeça doente engendrava e misteriosamente geria.

A última vez que o vi remonta, pelo menos, ao distante ano de 1934, pois foi nessa altura que os meus pais deixaram a aldeia, em demanda de condições de vida que ali não lhe eram então propiciadas.

Ele, no entanto, continuou na sua enigmática peregrinação por vales e serras, cujo périplo nunca ninguém desvendou e que de tempos a tempos incluía Maçores no seu percurso, até que nunca mais voltou a ser visto por aquelas paragens.

Há quem diga que apareceu enforcado no ramo de um pinheiro bravo, lá mais para o norte, no meio de um descampado, já meio comido por aves de rapina.

Há quem afirme, pelo contrário, que foi encontrado num poço velho abandonado, na várzea da Vilariça.

Numa coisa parecem estar todos de acordo. Por baixo das surradas e esfarrapadas vestes de mendigo andarilho, ter-lhe-á sido encontrado, pendente do pescoço negro da sujidade de anos e de sóis escaldantes, um grosso e valioso cordão de ouro, com um finíssimo medalhão de esmalte, onde figurava o retrato de uma jovem senhora, linda... linda de morrer...

E tanto... que, por ela, matou e morreu o Falmegas.

Se gostou deste conto, o FALMEGAS,
pode ouvi-lo na voz de Luís Gaspar
AQUI

NOTA: O final desta história é uma total invenção da minha parte. A única verdade é eu ter visto à minha porta um mendigo a comer do contentor do lixo e que, nos meus tempos de menino, aparecia frequentemente em Maçores um mendigo errante, a quem chamavam Falmegas, que ia, de facto aquecer-se no Lagar do Meio, quase em frente da casa onde eu morava, e de quem os garotos tinham medo que se pelavam e que um dia deixou de aparecer para sempre naquelas aldeias, sem que nunca mais dele se ouvisse falar


Foto baixada do google, data venia

33 Comments:

Blogger Kalinka said...

Uma história bela mas comovente.
Parabéns pela suave escrita sempre cheia de sentimentos profundos.

Tenho alegria...por ter estado presente. Tenho sonhos...
Que as palavras sejam capazes de transformar em sentimentos.
Tenho esperança...
De a todos voltar a encontrar.
Tenho prazer...
De compartilhar convosco as emoções e sentimentos.
Tenho vontade...
De aprender com todos vós a expressar-me melhor.
Tenho amor...
Para compartilhar a todo o momento.
Tenho a agradecer...
A todos os presentes no jantar pela partilha de momentos agradáveis
Tenho um convite...
Compartilhar com todos este blog e voltem sempre…

Boa semana.

16 abril, 2007 00:49  
Blogger Maria Carvalho said...

Mais uma memória tão bem descrita por ti. Muitos beijos.

16 abril, 2007 09:30  
Blogger Cusco said...

Olá! Aproveito para desejar uma boa-semana, cheia de sol, saúde e tudo de bom.
E pronto mais uma bela história. Melhor ainda porque através dela eu cheguei a outras: O Breldos, A Trovoada, as Teias e aranhiços… Pois é! Eu não sou Cusco só de nome, sou Cusco mesmo.
Li praticamente tudo, sobre Maçores e sobre tudo o resto e a minha admiração não parou de crescer. Um abraço maior ainda…!
E até sempre
SE DEUS QUISER

16 abril, 2007 14:57  
Anonymous Anónimo said...

olá meu querido António; mais uma vez dás voz, imagem, cheiro e essência a uma personagem tipica de todas as terras; e a vivencias sempre tão profundas do nosso crescimento.E sempre d'uma maneira tão terna como a tua alma, a tua paz e a tua tranquilidade. E depois queres que acabe tudo em amor, o amor sublime pelas damas e camélias do teu pátio tão florido e perfumado.Ahh..como eu gosto de ti meu poeta..(decerto sería nos teus tempos mais uma das tuas inumeras admiradoras..decerto..) smak!
my beautiful flawer in the country..

17 abril, 2007 00:47  
Blogger Menina Marota said...

Excelente narrativa! Consegui imaginar... e, sabes ainda tenho em mim uma certa dose de romantismo para acreditar mesmo que ele morreu por amor...

Prefiro esta ideia, a qualquer uma das outras...

(sobre o comentário que me deixaste um dia destes, sabes que o aroma do jasmim é um dos meus cheiros e flor preferidos? Pois é... adorei o teu versinho. Obg)

Bj e boa semana ;)

17 abril, 2007 08:58  
Blogger sofialisboa said...

Olá antonio, sugestionada pela tua historia lembrei-me de uma velha historia que a minha avô me contava e que acreditava que era a origem do nome Caparica, espero que gostes. sofialisboa

17 abril, 2007 13:57  
Blogger Unknown said...

Mais uma história maravilhosa e comovente, talvez tirada do teu baú!

*♥*´¯`*Beijinhos*´¯`*♥*

17 abril, 2007 17:46  
Blogger LurdesMartins said...

Mas é tão bom inventar finais para as histórias inacabadas, não é António?!?
Pobre Famelgas...

Beijinhos

18 abril, 2007 14:24  
Blogger Amita said...

Querido amigo
Deixei-te uma surpresa com carinho no meu blog. Passa por lá, sim?
Um bjinho e um lindo dia para ti e para os teus

18 abril, 2007 15:28  
Blogger zé lérias (?) said...

Isto é um belo conto que qualquer escritor poderia muito bem subscrever.
Um abraço

18 abril, 2007 20:03  
Blogger Eme said...

Ficou-me uma sensação estranha no ar; o Falmegas tinha algo para contar, a história da Senhora lindissima cuja fotografia estava no medalhão de ouro.. apetece saber não é? Apetece saber com que memórias vagueava ele de terra em terra sobrevivendo como só ele sabia.. Gostei imenso. Se souberes algo mais sobre ele , comta por favor..

18 abril, 2007 21:31  
Blogger Cris said...

Tenho o hábito de inventar histórias romaceadas sobre personagens que vejo, e faz-me sempre confusão quando vejo sem abrigos, porque tenho sempre a mesma pergunta, Quem foram ou são Eles? todos tiveram uma história antes de se tornarem invisiveis para a sociedade.

Bjo
C.

19 abril, 2007 14:38  
Blogger Manuel Veiga said...

cada um traz os seus "fantasmas". cada um exorciza-os como sabe.tu em belíssimos textos...

... e a (des)propósito: como foram as amendoeiras este ano, vistas de Moncorvo?

abraços

19 abril, 2007 15:10  
Blogger Cusco said...

Tomo a ousadia de solicitar uma breve passagem pela minha casota.
Obrigado e até breve!
SE DEUS QUISER.

19 abril, 2007 16:06  
Blogger MEHC said...

Bela história. Ainda bem que avisas no fim que é fruto da tua imaginação, pelo menos a maior parte, porque senão eu ia acreditar piamente, de tal modo a tua escrita é convincente.
Abraços.

19 abril, 2007 16:59  
Blogger António Melenas said...

NOTÍCIA
A todos os amigos que tendo comentado ao longo dos últimos dias, só hoje viram aqui publicados os seus comentários peço desculpa pelo atraso. Acontece que, por um lado, tenho andado adoentado e por outro, tive o computador a formatar nuna loja da especialidade
A TODOS MUITO OBRIGAD0 E UM ABRAÇO AMIGO

19 abril, 2007 19:39  
Blogger Licínia Quitério said...

Apedrejar os loucos: o medo deles ou o medo de virmos a ser (ou já sermos) um deles? Tão ténues estas fronteiras...

Um beijo e o desejo de rápidas, muito rápidas melhoras.

19 abril, 2007 21:43  
Blogger Ana Prado said...

Ah António, pudera eu ter metade desse seu dom de contador. Um grande beijinho.

19 abril, 2007 22:39  
Blogger Páginas Soltas said...

O meu António...li num comentário que esteve adoentado, espero que esteja melhor, para nos enlevar com as suas escritas...
Eu bem tento, pensar que é tudo fruto da imaginção do António. O Falmegas existiu e era um mendingo...
Mas a sua narrativa, está de tal maneira espectacular, que me deixou emocionada!

Peço desculpa... de só agora aqui vir, para ler com atêncão esta linda e comovente narrativa, mas tal como o meu amigo António, também tenho estado adoentada...mas já estou melhor Graças a Deus!
Um bom fim de semana e um beijinho desta sua amiga

Maria

20 abril, 2007 00:40  
Blogger sofialisboa said...

Olá antonio, já me tinha apercebido do teu silêncio, poem-te bom sim! e não é que mais uma vez tens razão? é isso mesmo bjs sofialisboa

20 abril, 2007 09:22  
Blogger LurdesMartins said...

Pronto, já fico mais descansadita!
Beijinhos e as melhoras.

20 abril, 2007 09:52  
Blogger Teresa David said...

Começo por desejar que estejas melhor e elogiar esta magnifica história, que como todas, tão bem sabes contar. E, embora suspeita na matéria acho que todos os que viveram acontecimentos ou se cruzaram com pessoas peculiares cujas histórias de vida, mais ou menos alegres, ou mesmo dramáticas como esta, que me lembra em termos de tristeza a do sempre noivo, as deveriam partilhar e publicar para não se perderem no limbo do tempo.
Gostei muito, como sempre, aliás.
Que continues sempre a partilhar connosco e de saúde é o que desejo.
Bjs
TD

20 abril, 2007 15:45  
Blogger Kalinka said...

Esta blogoesfera anda muito agitada, ele é prémios para aqui, distinções para acolá...os agradecimentos do costume, as lágrimas vertidas e as alegrias escondidas por detrás de um olhar tímido.

Eu sei, eu sei...
Eu parti, Tu ficaste
ou será o inverso?
Penso...vou partir,
mas juntos estamos...
a tentar construir...
uma amizade sólida,sincera...
e verdadeira!.
Será mesmo?
Haja Esperança em cada
segundo da nossa Vida.

Bom fim de semana, meu Amigo António.

21 abril, 2007 02:05  
Blogger Vladimir said...

Refere François Chateaubriand que “não somos nada, sem felicidade”.

Qual é a sua opinião sobre este tema?

21 abril, 2007 17:07  
Blogger Cris said...

Fica aqui os desejos de um óptimo fim de semana... e espero que computador já tenha regressado a casa...

Beijinho
Cristina

21 abril, 2007 17:55  
Blogger ROADRUNNER said...

Enfim, a triste história de tantos Falmegas que por aí abundam...
Saudações!

21 abril, 2007 19:12  
Blogger Arauto da Ria said...

Caro António,
espero que já estejas bom.
A história do Falmegas dentro da sua tristeza, está escrita divinalmente.
O mundo é muito pequenino, quem havia de dizer que o meu amigo era de Maçores, entre Urros e Felgeiras, é uma honra para mim ter um vizinho e agora amigo com esta qualidade.
Um abraço e bfs.

21 abril, 2007 23:20  
Blogger Páginas Soltas said...

Como até agora...ainda não soube nada de si...venho desejar um Bom Domingo!

Beijinhos da

Maria

22 abril, 2007 02:26  
Anonymous Anónimo said...

Perdão pela minha ausência de quinze dias, pelos muitos afazeres, mas hoje das primeiras visitas que fiz foi, como não podia deixar de ser, a este maravilhoso e sempre interessante blogue. Boa semana e até breve.

22 abril, 2007 19:51  
Blogger foryou said...

Ainda não o li todo mas é fantástico este blog :)

(gosto daquela parte lá em cima: O que aqui escrevo é para mim.) :)

22 abril, 2007 22:50  
Anonymous Anónimo said...

Tantas vezes António, coisas banais, tristes ou não como esta do mendigo, faz-nos avivar a memória e correr a imaginação. Esta do mendigo/falmegas foi bem complementada pela sua imaginação. E deixe-me dizer-lhe que você escreve lindamente! Abraço.

23 abril, 2007 06:02  
Blogger M. said...

Que escrita fantástica! De enorme vivacidade. Gostei muito.

24 abril, 2007 19:09  
Blogger Isabel said...

Deliciosa história a do Falmegas, como são deliciosas todas as tuas histórias.

Gosto de te ler especialmente neste tipo de narrativa... deixo-me encantar e ir contigo aos tempos e aos locais de que falas.

Não os conheci, não estive lá, não vivi estes tempos... mas vivo-os de mão dada contigo.

Sabes António, sinto como se me pegasses na mão e me dissesses anda lá Isabel, vamos passear e vou-te contar de outras épocas, outros seres, outros sitios. Anda dai Isabel, agarra-me a mão com força e vamos caminhar na minha história.

E eu, confiante, segura pela segurança da da força da tua mão, e da ducura da tua voz... vou contigo para dentro da tua história.

É maravilhoso meu amigo, acredita!

E o Falmegas muito melhor que o Papão, mete medo mas está humanizado, o Papão não, dele apenas sabemos que depois de meter os meninos nun saco os come ao pequeno almoço... nada imaginativo, pois não?

Um beijo gigante.

Isabel

04 maio, 2007 10:48  

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