PALAVRA DE ESCUTA
Nasceram e cresceram no mesmo bairro, juntos frequentaram a primária, juntos foram escuteiros no mesmo grupo. Um chama-se Pedro e o outro Ricardo. Muita gente não saberá mas há em Portugal duas associações de escuteiros - A Associação de Escuteiros de Portugal (AEP) e o Corpo Nacional de Escutas (CNE) - A primeira, tem reduzida implantação e é laica, enquanto a segunda conta muitos milhares de membros e é de inspiração católica. Os fins que se propõem são, no entanto, os mesmos: proporcionar aos jovens uma vida sadia, em contacto com a natureza, em espírito de equipa, de fraternidade, de entreajuda e com actividades lúdicas que os ajudem a atravessar a difícil fase da adolescência e a formar o carácter.
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Ora, os jovens de que falo pertenciam a um grupo de escuteiros integrado no Corpo Nacional de Escutas, sendo “escutas”, portanto, o vocábulo que os designa e que passarei a utilizar.
Um dos aspectos mais notáveis da formação escutista é o respeito pela palavra dada. Quando um escuta diz a outro, ou ao Chefe de grupo, “palavra de escuta”, há que acreditar. Assim acontecia entre o Pedro e o Ricardo Cada um deles podia inventar as suas farroncas para impressionar o amigo ou para esconder qualquer disparate que houvesse praticado, mas se o outro lhe pedia que confirmasse a veracidade do que dizia através da palavra de escuta, aí logo o embuste desmoronava e a verdade era imediatamente resposta. Quem, como eu, foi escuteiro (escuta, neste caso) sabe bem que é assim que as coisas se passam.
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Curioso era o facto de o Ricardo, que era mais mal formado, mais doidivanas, mais dado a invencionices do que o Pedro – rapaz, sensato, recto, certinho de procedimentos – revelar, mais do que este ou de qualquer outro membro do grupo um apego quase fanático ao valor da “palavra de escuta”. Ele jamais vacilava, por muito que isso o prejudicasse, em revelar a verdade sempre que alguém, sobretudo o Pedro lhe exigia a confirmação do que dizia através da sua “palavra de escuta”. Para ele era uma questão de honra...
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Feita a instrução primária, o Pedro escolheu a área industrial e foi para a escola AfonsoDomingues enquanto Ricardo optou pela curso comercial, ingressando na escola Veiga Beirão. Acabados os respectivos cursos, o primeiro empregou-se numa oficina de reparação de automóveis e o segundo num escritório de uma firma de importações. Entretanto casaram, curiosamente teve cada um dois filhos, passaram ver-se mais raramente até que durante anos se perderam de vista.
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O Pedro muito rapidamente passou a chefe da oficina, ganhou reputação como um barra na sua profissão, dez anos depois montou o seu próprio estabelecimento e, cinco anos após, inaugurou uma Oficina de reparação de carros e estação de serviço do melhor apetrechado que há na cidade, com cerca de duas dezenas de empregados. Tem agora uma vida estável, próspera e tranquila.
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Ricardo, pelo contrário, sempre estoira-vergas e algo conflituoso, pouco tempo parou no emprego; arranjou outro dentro do mesmo ramo, de onde também foi despedido, por má prestação de contas; trabalhou como delegado de propaganda médica mas também não aqueceu o lugar meteu-se nos copos, enredou-se em histórias de mulheres, enveredou por caminhos sinuosos com pequenos golpes, até que a mulher se fartou e se foi embora com os dois filhos.
Está agora desempregado há meses, vivendo em casa dos pais. Desesperado por não encontrar trabalho que lhe agradasse lembrou-se procurar o amigo dos seus tempos de escuteiro e de escola.
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Pedro, que tinha conhecimento através de outros antigos companheiros, das “proezas” e algumas malfeitoras do amigo mas, generoso e, como todos os seres bem formados defensor da ideia de que ninguém é irrecuperável e a um amigo não se deve negar uma oportunidade de o provar, resolveu ajudá-lo.
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Depois de lhe passar um sermão e missa cantada pelos erros cometidos e advertindo-o que lhe daria uma única chance, e depois de Ricardo lhe ter jurado que ficasse descansado, que bem sabia quanto os erros lhe tinham custado caro e de forma alguma trairia a confiança do amigo, resolveu admiti-lo par o lugar de ajudante de guarda-livros – lugar que por sorte vagara dias antes. E aí estavam eles, juntos de novo, trinta anos depois. Mais dois se passaram, sem problemas, e sem que o procedimento de Ricardo desse azo a qualquer reparo menos abonatório.
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Certo dia, próximo do fim de semana, um cliente, por quem Pedro tinha grande consideração, apresentou-se com um bruto jaguar, gama alta, de um vermelho reluzente. Erra um carro do ano, mas notando-lhe uns pequenos ruídos e não precisando dele durante os três ou quatro dias que iria passar em Paris, numa viagem de negócios aproveitava para deixar o carro que viria buscar nos primeiros dias da semana seguinte, devidamente afinadinho. Não era problema de monta e quando na Sexta-feira à tarde, a oficina encerrou, todos se foram embora e Pedro e Ricardo se desejaram à saída um recíproco bom-fim-de-semana, o carro lá ficou, pronto, esperando apenas o regresso do dono.
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Quando, na segunda-feira. Seguinte Pedro chegou à oficina foi encontrar todo o pessoal em alvoroço, especialmente o encarregado: - Patrão, patrão, foi você que levou jaguar ?- Que pergunta essa ?- O carro desapareceu, pensei que o patrão…- Não levei coisa nenhuma, que brincadeira é essa. Que é do Sr. Ricardo? - Ainda não chegou, patrão.
- Assim que chegar, vão ambos imediatamente ter comigo ao escritório.
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Pouco depois, pálido, coxeando ligeiramente mas descontraído, a assobiar, chegou o Ricardo. Posto ao corrente do sucedido pelo encarregado, subiram juntos para o escritório onde Pedro os aguardava, deitando fogo pelas ventas, como é uso dizer-se.
- Ouve lá, saíste com o Jaguar?.
- Eu? Que ideia!, retorquiu Ricardo com o ar mais admirado deste mundo.
- Meus amigos, além de mim, só vocês os dois têm chave da oficina, não há sinais de arrombamento, eu não fui, logo um de vocês levou o carro e eu quero tudo esclarecido imediatamente.
Entretanto tocou o telefone. Era alguém que tinha descoberto o carro meio desfeito numa ravina lá para os lados da Malveira da Serra. No porta-luvas estava a nota da reparação, datada da véspera, onde constava o nome da Firma e o respectivo número de telefone, tendo a pessoa que o descobriu prefrido telefonar para a Oficina em vez de avisar a polícia
Pedro empalideceu com a notícia, mas como pessoa calma e ponderada que sempre fora, limitou-se a contar o que ouvira e dizer serenamente: - Meus caros amigos, um de vocês está metido num grande sarilho. Trata-se de um carro caríssimo, um de vocês armou-se em janota, saiu com ele e vai ter de o pagar até ao último tostão. Comecem a falar antes que chame a polícia. - Eu não fui, patrão, já trabalho aqui há alguns anos e o senhor sabe que eu não faria uma coisa dessas. - Eu muito menos, disse tranquilo o Ricardo, fui na sexta-feira para o Algarve com uma garina e venho directamente de lá. O outro voltou a a negar, Ricardo jurou por deus, pela saúde dos filhos, pela saúde da mãezinha que ele tanto adorava, como o Pedro sabia, e estava-se naquele impasse enervante.
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O dono do jaguar podia vir buscar o carro a qualquer hora e Pedro queria ter a certeza de que, com a comunicação do problema, pudesse apresentar de imediato e respectiva solução que, não podia ser outra senão a identificação do culpado e o seu compromisso de reposição do prejuízo, ainda que, de momento fosse ele a responsabilizar-se, como lhe competia, pela disponibilização da verba correspondente. E os dois únicos possíveis autores ali estavam, à sua frente, mudos e quedos, sem que nenhum deles assumisse a culpa da malfeitoria.
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Subitamente Pedro tomado de súbita inspiração, levanta-se num ímpeto, com uma mão forte agarra Ricardo pelo colarinho, encosta-o à parede, e com a outra mão segura-lhe firmemente o queixo, de forma a poder olhá-lo nos olhos: Ricardo, dá-me a tua palavra de escuta que não foste tu que saíste com o carro. Aí Ricardo mudou de cor, primeiro vermelho que nem pimentão e de seguida branco como a cal da parede, as pernas vacilaram-lhe e caiu de joelhos aos pés do Pedro murmurando entre dentes: a palavra de escuta, não. A palavra de escuta não! E ali ficou, longamente, por terra, pronunciando frases quase ininteligíveis, entre as quais se destacavam palavras e expressões como piso molhado, só por milagre, garinas, falta de sorte, cabrão do álcool, falta de juízo, puta da vida, no meio de um choro convulsivo e interminável...
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Ricardo tinha perdido muita coisa na vida. Estranhamente, porém, nunca perdeu o respeito pelo valor da palavra de escuta.
3 Comments:
Cá por mim, acho que devias começar a procurar editor!
Com esta qualidade, não deve ser difícil.
Um belíssimo conto com todos os matadores.
Luis Gaspar
Já conhecia o seu outro blogue, mas só agora descobri este. As suas estórias, além do notável recorte literário da escrita, são divertidas e conceptuais.
Carlos P.
Olá, Lady-S
Tenho a certeza que de todos os leitores deste texto, pelo menos dos que deixaram um comentário, foste a única que apreendeu inteiramente o ênfase que eu quis pôr no valor da Palavra de Escuteiro (ou escoteiro) Só quem pertenceu a uma associação juvenil deste tipo pode ter a noção exacta do seu significado. Também para mim os meus tempos de escuteiro foram os melhores da minha adolescência
Bjs.
António
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