O PADRE HONORATO
Agora, que a seara está madura e a hora da ceifa presumidamente se avizinha, além do apego que ultimamente me tomou por este melancólico desfiar de recordações, gosto de me entreter a vasculhar gavetas, compulsar velhos papeis e amarelecidas fotos… rasgar a maior parte, catalogar alguns, desenterrar memórias e avivar afectos esquecidos em alguns outros.
..
Tenho agora entre mãos seis páginas de papel de 35 linhas amontoadas de meio sumidas garatujas. Reconheço a minha desajeitada caligrafia de adolescente. Trata-se de uma prova escrita de filosofia datado de 25 de Outubro do longínquo ano de 1946. Como o tempo passa, meu deus!
A vermelho, uma anotação do respectivo professor: Gostei muito da exposição. Clara, simples e até por vezes elegante. Cultiva a tua inteligência e põe-a inteira ao serviço do Mestre.
..
O Padre Honorato! Consigo vê-lo a esta distância. Com que nitidez ele me surge de um qualquer ficheiro que a memória manteve arquivada ao longo de todos estes anos. Aí está ele: rosto meio amulatado, carapinha bem aparada, rentinha ao crânio, modos vivos, olhos irrequietos por detrás de uns óculos de forte graduação que os ampliam. Desprende-se dele, a um tempo, a impressão de uma inteligência altiva e uma bondade modesta e serena. Reveste-o a incontornável batina de merino lustroso que o distinguia dos outros padres/professores que usavam batinas de fazenda, sem brilho portanto. Só o volumoso padre Nobre Infante, o professor de Matemática (a quem, em surdina, eu chamava sempre padre Nobre Infame) usava uma batina semelhante. Mas a esse prefiro esquecê-lo.
..
Nunca vi ninguém transmitir o que sabia com tanto empenho, tanto entusiasmo, tanta persuasão. Todo ele se transformava no endosso do prazer que ele próprio conseguia descobrir na beleza de um soneto, como na lógica fria de um silogismo. Estamos a ver, hein, estamos a ver isto? E o brilho dos olhos muito abertos e a vivacidade expressiva dos gestos, que cada um dos alunos interpretava como sendo-lhes pessoalmente dirigidos, só se apaziguavam, só diminuíam de intensidade quando, nos olhos de cada um, visse a certeza de que o aluno estava, de facto, a ver aquilo que, pedagogicamente, ele queria que fosse visto e assimilado
..
Sabendo que eu gostava muito de ler, deixava-me escolher na sua estante os livros a que o meu apetite de leitor compulsivo me induzia e que ele achasse adequado à minha idade e ao meu tipo de formação. Certa vez foi ele próprio que me aconselhou uma obra acabadinha de ser publicada, As Mais belas Líricas Portuguesas, da Portugália Editora, tendo apenas o cuidado, pasme-se, de assinalar cinco ou seis poemas com a indicação a lápis, não ler. Quanta pureza de alma a deste homem!
..
Escusado será dizer que foram esses os primeiros que corri a ler, traindo miseravelmente a sua confiança. Este meu procedimento faz-me lembrar uma história que se conta de São Tomás de Aquino, quando jovem frade, muito antes, pois, de se tornar o grande pensador que viria a ser. Era o frei Tomás um moço gordo e bonacheirão, tipo peidagadocha, como agora se diria, confiado, ingénuo e fácil de enganar pelos outros frades que a toda a hora lhe pregavam partidas. Pois certo dia, esta ele debruçado sobre os seus livros de estudo, quando um colega o chama: Tomás, corre, anda depressa para veres um boi a voar. Veio o bom do Tomás, não viu boi nenhum no céu que perscrutou durante alguns instantes e ouviu em contrapartida a caçoada dos colegas: Ó Tomás, pois acreditaste mesmo que um boi podia voar? E o Tomás, com a proverbial placidez dos gordos, respondeu: Sim, julguei que era mais difícil ver um frade a mentir do que um boi a voar. Na história dos poemas desaconselhados e lidos apesar disso, eu fui o irresponsável frade que abusou da confiança de um homem bom e confiado, sendo ele, naturalmente, o Tomás da história dos frades, só que bem mais actual e de aspecto exterior bem menos volumoso...
..
Aliás não foi só em relação aos tais poemas que eu terei defraudado as suas esperançosas expectativas. Poucos meses depois das suas palavras de incentivo na tal prova escrita de filosofia, eu abandonava o seminário. E, pela vida fora, tive ocasião de constatar que a minha inteligência não era tanta como a que ele generosamente me atribuiu; não cuidei de cultivar a que tinha, como ele me exortou; e o Mestre a que ele se referia, aos poucos, deixou de ter qualquer significado para mim.
..
Também ele, pouco depois, reconhecidas as suas qualidades pedagógicas pelas estruturas da igreja, trocou o seu magistério no seminário pela Universidade, onde passou a leccionar, julgo que na Faculdade de Letras que era a mais adequada à sua formação e ouvi falar dele, em certos meios cultos, como um professor de elevada craveira profissional.
..
Diziam os antigos que os deuses levavam cedo para junto de si aqueles que mais amavam. Assim se compreende que tenha morrido tão novo o padre Honorato, a quem nunca mais voltei a ver desde que, em Fevereiro de 1947, deixei o Seminário de Almada.
Um dia encontrei num alfarrabista um livro com a sua biografia. Não tinha dinheiro para o adquirir e lá o deixei - o que muito lamentei mais tarde.
..
Não há rapaz do meu tempo que não se lembre de uma rubrica que durante muitos anos figurava em cada número das Selecções da Reader’s Digest, intitulada “Meu tipo inesquecível”, onde sempre alguém recordava uma figura humana que lhe tivesse ficado na memória ou no coração por determinadas características físicas ou morais. Também eu encontrei na vida algumas figuras inesquecíveis. O Padre Honorato foi uma delas.
..
Natural de Óbidos – Sobral da Lagoa - existe hoje ali hoje uma rua com o seu nome: Padre José Honorato Gomes Rosa. Quanto a mim, tantos anos volvidos (e já o tenho confessado várias vezes em conversas com amigos) de entre algumas picardias que cometi ao longo da vida, uma das que mais me arrependo é não ter correspondido à prova de confiança com que aquele homem bom fez o favor de me distinguir, lendo os poemas que ele me pedia que não lesse. Julgo, no entanto, que ele sempre soube que eu o iria fazer e lá onde está, de certo já me perdoou.
Aliás não foi só em relação aos tais poemas que eu terei defraudado as suas esperançosas expectativas. Poucos meses depois das suas palavras de incentivo na tal prova escrita de filosofia, eu abandonava o seminário. E, pela vida fora, tive ocasião de constatar que a minha inteligência não era tanta como a que ele generosamente me atribuiu; não cuidei de cultivar a que tinha, como ele me exortou; e o Mestre a que ele se referia, aos poucos, deixou de ter qualquer significado para mim.
..
Também ele, pouco depois, reconhecidas as suas qualidades pedagógicas pelas estruturas da igreja, trocou o seu magistério no seminário pela Universidade, onde passou a leccionar, julgo que na Faculdade de Letras que era a mais adequada à sua formação e ouvi falar dele, em certos meios cultos, como um professor de elevada craveira profissional.
..
Diziam os antigos que os deuses levavam cedo para junto de si aqueles que mais amavam. Assim se compreende que tenha morrido tão novo o padre Honorato, a quem nunca mais voltei a ver desde que, em Fevereiro de 1947, deixei o Seminário de Almada.
Um dia encontrei num alfarrabista um livro com a sua biografia. Não tinha dinheiro para o adquirir e lá o deixei - o que muito lamentei mais tarde.
..
Não há rapaz do meu tempo que não se lembre de uma rubrica que durante muitos anos figurava em cada número das Selecções da Reader’s Digest, intitulada “Meu tipo inesquecível”, onde sempre alguém recordava uma figura humana que lhe tivesse ficado na memória ou no coração por determinadas características físicas ou morais. Também eu encontrei na vida algumas figuras inesquecíveis. O Padre Honorato foi uma delas.
..
Natural de Óbidos – Sobral da Lagoa - existe hoje ali hoje uma rua com o seu nome: Padre José Honorato Gomes Rosa. Quanto a mim, tantos anos volvidos (e já o tenho confessado várias vezes em conversas com amigos) de entre algumas picardias que cometi ao longo da vida, uma das que mais me arrependo é não ter correspondido à prova de confiança com que aquele homem bom fez o favor de me distinguir, lendo os poemas que ele me pedia que não lesse. Julgo, no entanto, que ele sempre soube que eu o iria fazer e lá onde está, de certo já me perdoou.
6 Comments:
Já me tinhas falado no Padre Honorato mas "lê-lo", assim, tem outro sabor. E sabe muito melhor. Um manjar.
Obrigado pelas tuas recordações.
LG
O prometido está agora a ser cumprido... o texto sobre o Padre Honorato é encantador de duas maneiras, pela memória límpida que o trouxe até nós e pela irreverência desse adolescente que ainda hoje põe a sua inteligência, não ao serviço de um mestre, mas de gente que se delicia com estes momentos de partilha a lembrarem as noites de conversa e conto à beira da chaminé onde a lenha crepitava e avivava as mentes.
António não é demais agradecer-lhe estes momentos.
felizmente desenvolves a vertente literária que eu mais gosto em ti... a da sensibilidade e evocação. a do padre honorato funciona em modo contínuo... não sei se já te disse mas tens sido através dos anos o meu padre honorato... não o sei dizer tão bem como tu! um abraço, beijos a elas e ao puto e até domingo. ok?
Um obrigado aos autores dos 3 comentários acima, que só hoje, 21-2-06 (azelhice minha) descobri.
E tu avozinho Rogério - o puto que vi crescer - te digo que as tuas palavras foram, na sua singeleza, do mais bonito que até hoje me disseram
António
Uma amiga, ao ser recebida no calor do lar (ou no frio de verão do jardim) deste Gouveia, apenas teve força para me sussurrar "xiça, rita, os teus primos são um espectáculo... tão inteligentes"...
Eu subscrevo!
E nem lhe mostro este blog, ou ela cai para o lado, e decerto chora!
Eu, nessa noite, e já na conversa na tenda, desabafei "quando for grande quero ser como eles..."
Será?
beijinhu grande, Tó das Cantilenas!! :D
Obrigado, Ritinha
As tuas palavras são tão lindas como quem as escreve
bjs
Enviar um comentário
<< Home