2.17.2006

A VELHA SENHORA


O relato que a seguir vos apresento é a versão, num português que a minha lamentável falta de humildade me leva a dizer razoavelmente correcto, ou pelo menos entendível, de uma história sem pés nem cabeça que um velhote chanfrado me contou. Era um fulano esquisito. De vez em quando aparecia no café que frequento, sentava-se à minha mesa, cravava-me uma bica, entrava a desfiar uma conversa sem nexo e desaparecia. No dia em que me contou esta história,
pareceu-me mais chanfrado que nunca. Já se passaram dois anos e nunca mais se deixou ver.

A Velha Senhora, a quem coração secou

A sua infância foi doce e serena, a adolescência inquieta e ansiosa, a juventude louca e excitante, os primeiros tempos de casada apaixonados e ternos, os seguintes, melancólicos e infindáveis. Nascida no seio de uma família tradicional de abastados grossistas de secos e molhados – espécie de aristocratas entre os comerciantes da cidade – pode frequentar um colégio particular desde o jardim escola até ao fim do curso liceal. Aprendeu francês e piano com uma velha professora da nacionalidade que lhe ministrava conhecimentos razoáveis em ambas as matérias, aprendeu a bordar e fazer renda – habilidades que nenhuma menina da época se podia dar ao luxo de dispensar, e estava pronta para entrar no mercado matrimonial, relevesse-me a crueza da expressão..
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Aos 18 anos foi apresentada à sociedade num esplendoroso baile de debutantes em que participou a fina flor da juventude radiosa da burguesia local e a partir daí foi um desfilar de festas, tardes dançantes, idas ao animatógrafo divertir-se com as loucas peripécias dos filmes de Charlot, Pamplinas ou Mack Sennet, corsos de Carnaval, temporadas de praia na figueira da foz, namoricos de verão, até que conheceu aquele com que viria a casar, um garboso tenente de cavalaria, bonito como um deus, mas pobre como Job. O primeiro predicado estava à vista e foi do seu instantâneo conhecimento; o segundo só o veio a saber, quando já não tinha importância nenhuma. Foi num baile de máscaras que se conheceram. . Dançaram várias vezes seguidas e se ela ao cabo de uns momentos já se sentia atraída por ele, essa atracção transformou-se em paixão logo que ele tirou a mascarilha para a acompanhar ao bufete.
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Casaram pouco depois, apesar da oposição dos pais que sonhavam para a filha um homem negócios, com teres e haveres, à altura da sua fortuna e nível social. Receando que o rapaz se viesse a revelar um caça-dotes, uma coisa lhe exigiram no entanto, que o contrato nupcial contemplasse apenas a partilha de bens adquiridos após o casamento.
E assim aconteceu, com grande desgosto da moça que preferia ter dado ao noivo uma prova ilimitada de confiança. Foi um casamento de pompa e circunstância, seguido de lua de mel em Paris e instalação do casal numa espécie de palacete oitocentista no bairro da Lapa, uma das várias casas da família espalhadas pela cidade
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Claro que, apesar do fraco vencimento do tenente, o dinheiro nunca faltava em casa do casal uma vez que o pai, às claras mas mais comedido e mãe às escondidas mas mais generosos, como fazem todas as mães, não deixavam que à filhinha faltasse nada daquilo a que estava acostumada, quer em bens materiais quer em diversão. Foram, pois, de grande felicidade e divertimentos sem conta aqueles primeiros três ou quatro anos de casamento. Depois, depois começaram a vir os filhos. O tenente, que era esquentado, fez-lhe quatro - três rapazes e uma rapariga - ao longo dos seis anos seguintes.
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Maria da Glória (é este o nome da moça e peço perdão pela indelicadeza de tão tardiamente o mencionar) recebeu cada um deles como se uma dádiva do céu se tratasse, um presente que os deuses lhe tivessem enviado. A todos tratou com maior desvelo como se cada um fosse o primeiro e a eles dedicou toda a atenção e tanta que o nosso tenente (não vale a pena dizer-lhe o nome porque vai em breve desaparecer da história) sentindo-se um tanto excluído do círculo de afectos maternais passou a pular a cerca (expressão que reputo pouco elegante, mas que emprego à falta de melhor) e com a ligeireza com que saltava para cima do seu fogoso cavalo, passou a saltar de cama em cama de quanta mulher bonita estivesse disposta a ceder ao seu encanto.
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Quando Maria da Glória se apercebeu de que o entusiasmo do marido não era o mesmo, melhor dizendo, quando ela, finalmente, com os garotos já grandinhos e a precisarem de menos exclusivos cuidados, se ia dedicar mais à vida conjugal, o casamento já era. E foi então que o intenso, o cego amor maternal que devotara aos filhos (vá lá perceber-se que estranhos e contraditórios fenómenos se passam na mente humana) transformou-se num ressentimento que com o decorrer dos anos se foi tornando numa espécie de ódio…
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Tinha à volta de 45 anos o tenente quando lhe foi diagnosticada uma gravíssima e adiantada tuberculose pulmonar, doença praticamente incurável naquele tempo e menos de uma ano depois, a tísica o levou desta para melhor, como paradoxalmente se diz de quem dá o pio, ata as botas ou, mais conforme à nossa civilização cristã, entrega a alma ao criador. Por essa altura já os filhos tinham idades que oscilavam entre os 13 e os 18 anos, estudavam todos em colégios internos e o contacto com os pais era muito reduzido, limitando-se quase exclusivamente ao tempo de duração das férias..
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Não tardou muito que, primeiro pai e pouco depois a mãe de Maria da Glória, seguissem o destino que todos temos marcado mas que naqueles tempo em que o nível médio de duração de vida era bastante mais reduzido, fazia com que as pessoas defuntassem mais cedo do que agora acontece.
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Maria da Gloria tomou conta dos negócios do pai, aumentou mais a sua riqueza, adquiriu mais um poucos de imóveis e a fortuna ia crescendo na razão directa em que alma se lhe secava.
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E o tempo, voraz, foi comendo anos, os filhos formaram-se, e arranjaram bons empregos. Um fez-se diplomata, outro engenheiro numa empresa metalo-mecânica, outro cirurgião de sucesso, e a rapariga estilista de renome. E todos casaram e cada um deles teve dois ou três filhos e esses filhos casaram e dos novos casais nasceram novos filhos.
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Várias vezes os filhos reclamaram da mãe que fizesse partilhas, mas ela, cada dia mais amarga, mais empedernida, custeava-lhes as despesas, mas argumentava que ainda estava viva e o pai não lhes tinha deixado nada pois nada tinha sido adquirido durante tempo de validade do casamento, não tendo nada, portanto que fazer partilhas.
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As sua relações azedaram-se cada vez mais, os anos passaram, os filhos que sempre pouco a visitavam, foram espaçando as visitas até praticamente ninguém a vinha visitar, nem filhos nem nora, nem genro, nem netos. Acabou por se retirar da direcção dos negócios do pai, deixando tudo entregue a um gerente de confiança que também acabou por falecer, sucedendo-lhe o filho e era ele e um jovem advogado de um conhecido escritório com quem a família sempre trabalhara que assiduamente a vinham visitar para lhe prestar contas em receber instruções.
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Por fim, já muito avançada em idade começou a sentir necessidade de laços que tinha perdido, mas era demasiado tarde. Passava os dias esperando que algum aparecesse, chegou a pedir-lho expressamente, mas nunca eles tinham tempo ou disposição para a visitar. Desistiu definitivamente deles e voltou a ficar de novo mais amarga, mais ressabiada.
Estava agora com 87 anos, chamou o advogado, o encarregado da loja com quem teve por varias vezes largos conciliábulos, passou horas e horas a rasgar papeis, até que pareceu desinteressar-se de tudo.
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Chegou um dia em que, contra os seus hábitos, não passou tempo nenhum a ler depois do jantar e mal acabado este, recolheu-se ao seu quarto, para se deitar. À criada que a acompanhou para lhe ajeitar a roupa da cama e correr as cortinas como fazia todas as noites, pareceu-lhe ouvir dizer (isso contou ela mais tarde): já chega, chegou a hora. Na manhã seguinte, quando entrou no quarto para lhe levar um copo de leite morno como era de uso, encontrou-a morta, já fria, mas muito composta, expressão serena, de deitada de costas e com as mãos cruzadas no peito, como ficam geralmente os defuntos depois de convenientemente preparados por um funcionário de agência funerária ou por algum membro da família.
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Posta a notícia a circular e depois do arranjo do corpo e da colocação na urna funerária, desta vez sim por um funcionário especializado, vieram os amigos, vieram os filhos e as caras metades, vieram todos os que durante anos nunca arranjaram tempo para a visitar. Durante o velório quando alguns já cabeceavam nas cadeiras encostada em filas junto das paredes do salão transformado em câmara mortuária, com dois círios enormes arder num pequeno altar improvisado e dúzias de ramos e palmas amontoados em torno da urna, os filhos, aproximaram-se do caixão, sobre ele se debruçaram e, como era costume na época, começaram a prantear a defunta, com os lenços a limpar os olhos de lágrimas que não tinham, como todos sabemos ser representação hipocrita muito frequente. E eis senão quando, pasmem, senhores, a defunta se ergue do seu leito de morte, se senta no caixão de olhos arregalados, grita com uma voz de fazer gelar o sangue: Queriam mama, hein? Tomem, tomem e tomem!, Sendo este tomem, três vezes repetidos, acompanhado de três realíssimos manguitos, de fazer inveja ao do Zé Povinho criado por Bordalo Pinheiro, com um vigor tal, que já seria de espantar numa octogenária viva, quanto mais numa defunta com certidão de óbito passada e autenticada com selo branco e tudo.
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Isto contam os familiares que, estavam debruçados sobre o caixão e que aliás fugiram espavoridos só voltando no dia seguinte, quando se asseguraram que o caixão estava fechado e lacrado, pronto para seguir, na carruagem fúnebre, puxada por uma vistosa parelha de cavalos pretos, ajaezados com longos atafais negros e bordaduras de prata, para o antigo jazigo de família no Alto de São João. Todos os outros circunstantes, aliás na sua maioria a passar pelas brasas, como já tive ocasião de referir, negam ter visto ou ouvido qualquer coisa, apenas se espantaram com a súbita e inexplicável debandada dos filhos e netos da falecida. E mais, contam essas pessoas que, tendo-se aproximado do caixão, após a estranha fuga dos familiares, não viram nada que justificasse tanto alarido. A morta continuava mortinha da silva, serena, composta, só que, afirmam alguns, dava a impressão que a boca tinha uns trejeitos que se assemelhavam a um riso trocista. Seria?
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Após o enterro, aí sim, a família, já sem a incómoda presença de estranhos, voltou à casa da defunta para vasculhar tudo de alto a baixo, esventrar gavetas, desfazer camas, revirar colchões na mira de encontrar dinheiro, valores, títulos, algo de valioso que a senhora não podia deixar de possuir. Baldado esforço. Nada que lhes pudesse interessar foi encontrado. Nem sequer a mais pequena moeda esquecida no fundo de uma gaveta.
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Dois ou três dias volvidos receberam uma notificação da firma de advogados Martinez &Martinez, com sede na Calçada dos Cavaleiros, para se proceder à leitura das disposições testamentárias da falecida Senhora Dona Maria da Glória Gonçalves de Albuquerque. E estando a família toda reunida no vasto salão da firma, um dos advogados que não era outro senão o que nos últimos tempos vinha frequentado a casa da velha senhora, lhe leu o longo testamento em que aos filhos deixava apenas o mínimo que, por lei lhes era devido e que era muito pouco, pois que da maioria dos títulos e do dinheiro dos vários prédios e propriedades que entretanto tinham sido todos vendidos, se constituíra a Fundação Dona Maria da Glória, destinada a acolher crianças órfãs e desvalidas, sendo que a gestão de fundos ficaria a cargo de Escritório de advogados Martinez&Martinez, que a sede administrativa da fundação funcionaría na casa da falecida e que o Director seria o Dr. Carlos da Silva Meneses - o gestor da firma de D. Maria da Glória de que atrás falei, e que também assiduamente visitara a senhora nos últimos tempos.
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Esta á a história que o velhote chanfrado me contou e que vos vendo pelo preço que a comprei, com escrupuloso rigor e perfeita isenção, tendo-me limitado apenas a encorpá-la numa linguagem que pretendi literária, para que assim lograsse pode obter o favor de um pouco mais de atenção da vossa parte. Só espero que não haja quem, com a falta de humor de quem ouve uma anedota da qual espera o contador uma estrondosa gargalhada, tenha o desplante de perguntar: e depois o que é aconteceu?
A história termina aqui e pronto
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P.S. Só mais um pormenor que o velho me contou e que, imperdoavelmente, por pouco não me esquecia:
Durante anos e anos, por detrás do imponente cadeirão do Senhor Director da Fundação, esteve pendurado um quadro que o dito director, em homenagem à generosa filantropa, encomendara a um famoso pintor da época, no qual que se via, em cores deslumbrantes, uma idosa senhora soerguida de um lindo caixão e que, com o ar mais feliz e menos adequado ao seu estado presumidamente cadaveroso, exibia um manguito de todo o tamanho. Só foi retirado, desconhecendo-se, infelizmente, que destino terá levado, devido à desconfortável impressão por parte de cada um dos visitantes que entrava na sala, de que o manguito em questão lhe era especialmente dedicado.

6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Só tenho pena que o quadro tenha sido retirado.
Quanto ao resto é uma historia e peras.
Onde foste buscar esta? Memórias? Ná!!!
LG

19 fevereiro, 2006 10:41  
Blogger Cantar ao Sol e à Lua said...

António que história fabulosa. E, o apontamento sobre o quadro é um primor, pena é que se lhe tenha perdido o rasto. Parafraseando o amigo Luís Gaspar, onde é que desencantou uma tal história.
Abraços cheios de sol.

20 fevereiro, 2006 18:46  
Blogger António Melenas said...

Obrigado pelos comentários. Claro que esta história, fui-a inventando ao tempo que a ia escrevendo. Não fazia ideia nenhuma de como seria o fim.
Mas deu-me muito gozo quando a terminei.
O quadro talvez na feira da ladra, quem sabe, se possa vir a encontrar

20 fevereiro, 2006 23:40  
Blogger GUIDUB said...

Antônio, meu nome é Guilherme sou brasileiro e gostei muito dos seus textos.
Muito boa a sua forma de literatura.
www.guicarvalho.blogspot.com é a page onde você pode ver meus quadros.

21 fevereiro, 2006 02:55  
Blogger Ricardo Pereira said...

Bem António...eu que sou tão atento e tão picuinhas com as coisas até estou parvo pois este blog passou-me completamente ao lado... mas adorei...esta historia então... que delicia.
Olha, o link para o Enquanto E Não funciona e já pedi a amigos meus pa checarem e tb dá...não sei o que possa ser...
Outra coisa, como és tão moderno...se tiveres msn avisa k assim dava pa irmos falando por lá ao invés de só o fazermos pelos coments.
Um Abraço.

01 março, 2006 21:53  
Blogger António Melenas said...

Tens razão Ricardo, o link funciona. Na lista de links deste blogue há um para o site "Moscavide", Se fores a esse site encontras o meu endereço de correio electrónico. O do MSN é igual. Devo no entanto prevenir-te que não sou muto fan desse tipo de conversa ping-pong. Logo me cansa. mas uma vez por outra não me importo

05 março, 2006 00:55  

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