ESCRITOS OUTONAIS

2.26.2007

DIANA - As minhas memórias


A princípio ninguém me chamava coisa nenhuma. Achei-me numa coisa redonda e fofa com mais quatro ou cinco coisas iguais a mim, tudo ao molho uns por cima dos outros, cada um procurando safar-se o melhor que podia.

Volta não volta vinha outra coisa, também muito parecida connosco, mas muito maior, que se deitava junto de nós e todos à uma lhe saltávamos para cima, abocanhando um dos pequenos penduricalhos que mais tarde vim a aprender que têm o nome de tetas, de onde saía um líquido quentinho que eu achava muito gostoso e que chupava até que não deitasse mais e a coisa grande se afastasse. O mesmo faziam os meus companheiros e de novo voltávamos todos para a tal coisa redonda, onde dormíamos, dormíamos.

À nossa volta moviam-se outras coisas grandes, muito altas, com duas patas apenas – esqueci-me de dizer que nós, os do cesto e a outra coisa grande que nos dava a chupar as tetas, tínhamos todos quatro patas. Em boa verdade estes, os de duas patas com que andavam pelo chão, tinham outras duas mais pequenas lá mais para cima. Era com estas que às vezes me pegavam para me reconduzir para junto dos outros, quando deles me afastava, caindo aqui e além, mais rebolando do que andado, pois a verdade é que as minhas patas ainda não me serviam de grande coisa por essa altura.

A das tetas lá vinha, volta não volta, deitar-se junto de nós e além de nos deixar chupar o tal líquido quentinho nos lambia, lambia e era tão gostoso.

Um dia, já eu estava maiorzinha e já não caminhava aos tombos, um dos tais de duas patas, pegou em mim com as duas patinhas de cima, meteu-me num cesto e levou-me para um lugar que eu nunca tinha visto. Nem imaginava sequer que houvesse outros diferentes daquele chão onde até então tinha permanecido.

Era um sítio muito grande, muito limpinho, nada parecido com aquele de onde vinha, sem palhas, nem coisas esquisitas espalhadas pelo chão, com as quais muitas vezes embatia, e me deixavam até meio zonzo. Senti-me um pouco envergonhada, confesso - era muito tímida nessa altura - com uma data de duas patas à minha volta. Reparei que havia alguns mais pequenos que outros. Todos me queriam agarrar, todos me faziam passar as patinhas de cima por cima do pelo, especialmente os tais menos grandes que corriam atrás de mim e me iam buscar em cada um dos muitos esconderijos para onde eu me escapulia. E depois eram aqueles olhos todos a olharem para mim… fiquei muito envergonhada, pronto, não há como negá-lo.

Bom, é tempo de começar a dizer que esta coisa de patas de cima e patas de baixo, são expressões que utilizei apenas para, com algum realismo, transmitir as minhas impressões iniciais, de quando não sabia sequer o que eu era, quem era e onde estava. Afinal hoje tenho mais do que idade para saber o nome exacto das coisas de que estou falando.

Eles, julgam que não. Acham que nós, por termos uma fala diferente da deles, não temos memória e não compreendemos o que eles dizem, mas nós compreendemos tudo e fixamos tudo muito bem. Eu diria mesmo que, como eles dizem, temos “uma memória de elefante”, se isso não fosse desprestigiante para os da nossa raça que, em questões de memória, não precisam de comparações com ninguém e muito menos com um trombudo desses.

Ainda bem que eles acham que nós não os entendemos. Se eles soubessem o que nós sabemos deles, os disparates que dizem, as asneiras que cometem, iriam ficar muito envergonhados.

Pois foi logo que cheguei a este novo sítio que alguém, pela primeira vez me chamou alguma coisa, isto é que me deu um nome. Soube então que me chamava “fofa”, pois durante os primeiros dias era só “fofa” para aqui, fofa para ali. Durou pouco, porém, esse tratamento. Possivelmente foi só até arranjarem outro que achassem, no entender deles, mais adequado, pois a partir de certa altura passaram a chamar-me “Diana”.

A princípio não percebi que era comigo. Mas tantas vezes gritaram essa palavra nas minhas orelhas, que eu compreendi que era esse o meu novo nome. Mesmo assim, durante uns dias fazia-me de lucas e só respondia ao chamamento quando muito bem me apetecia. A verdade é que eu gostava bem mais do nome “fofa”, mas eles lá sabem. Quem sou eu para opinar a tal respeito!

Aos poucos fui-me habitando a eles, às suas falas, aos seus hábitos e até lhes decorei os nomes. Os mais baixinhos, um chama-se Gui, outro Gil e o outro Lili. Depois há um de tamanho médio a quem chamam Rodrigo e há o Zé e a Gabi que são os donos. Sei isto porque, sobretudo estes últimos, a toda a hora me dão ordens: aqui! aqui!, vem ao dono!, vem à dona!, no chão! ao lado! senta! busca!

Havia um outro, de pelo branco e um cheiro muito esquisito, que mal se aguentava nas patas, sempre a tremelicar que se chamava senhor Fernandes. Vim saber que era pai da Gabi. Esse, pouco aparecia e nas poucas vezes que o fazia era só para me ralhar e correr comigo do sofá, onde eu gostava muito de me esparramar para dormir umas gostosas sonecas. Chegava mesmo a dar-me sorrateiros pontapés e chamar-me estupor do cão – o que nem sequer é verdade pois aprendi que sou uma menina (cadela, como eles dizem). A partir de certa altura este chato do senhor Fernandes desapareceu e todos choraram muito, que é uma coisa de fungar e deitar água pelos olhos – habilidade que nós nunca fazemos, não sei porquê.

Como é que eu soube que era uma cadela? Foi quando, certo dia, um tal Correia, amigo do Zé, que veio cá a casa (havia sempre gente que eu não conhecia a chegar e a partir) trouxe outro igual a mim, o qual começou logo a cheirar-me o rabo e com umas brincadeirinhas parvas, a que não achei graça nenhuma, diga-se de passagem. Vi então que ele, apesar de muito igual a mim, tinha algumas coisas que o diferenciavam. Foi aí, quando o estupor me cheirava como um desaustinado, que ouvi o Zé dizer olha, o teu cão já engraçou com a minha cadela Diana. Assim, de só uma penada, além de saber que eu era uma cadela fiquei a saber que o atrevido parecido comigo era um cão.

Pouco depois já o cão que se chamava Mozart e era tão novo quanto eu, me desafiava para a brincadeira e juntos saímos a correr pela quinta fora. Ah, é que, ainda não tinha dito, mas a casa dos meus donos fica dentro de um grande terreno, a que chamam quinta, com muitas árvores e muito mato que eu adorava esquadrinhar. Por ali andámos tempos esquecidos, feitos doidos, até que o Correia o chamou e lá se foram os dois.

O Gui, o Gil e a Lili eram uns chatos que só me queriam pegar, me puxavam as orelhas, e me cavalgavam como se eu fosse um outro animal que havia por lá chamado cavalo. Só que esse, que vou muitas vezes visitar, é um calmeirão muito grande, bom bicho, por sinal, enquanto eu era pequenina, na altura - e ficava derreada das cruzes. Certa vez, perdi a paciência e dei uma dentada na Gabi, que era a pior dos três. Foi uma dentadinha de nada, mas a miúda fez um escarcéu tal que me assustei e desatei a fugir, escondendo-me durante umas boas horas no meio de umas moitas num recanto da quinta.

Quando voltei, muito sorrateira, já estava tudo calmo. Mesmo assim o Zé ainda me deu umas palmadas e me passou um raspanete que muito envergonhada me deixou. A partir daí nunca mais voltei a morder quem quer que fosse, limitando-me a rosnar, arreganhar os dentes e a pôr um ar feroz, que não é nada do meu feitio – processo muito eficaz, concluí, para os pôr à distância, quando via que estavam a passar as marcas.

Entretanto fui crescendo, adquiri força nas patas, ganhei corpo e deixou de me fazer mossa o peso deles em cima de mim. Confesso que até gostava. Tornei-me mesmo uma bela cadela. Todos mo diziam e os da minha raça que apareciam cá por casa faziam questão de mo demonstrarem, através de uma marcação cerrada sempre que de mim se abeiravam. Eu, porém, fazia-me rogada e não lhes dava muita cúnfia. No entanto, eles não me largavam, sempre com aquela estuporada mania de me cheirarem o rabo. Aprendi depois que isso faz parte da nossa natureza e que era uma forma de me dizer que gostavam comigo e queriam acasalar comigo

Foi então que eu própria comecei a sentir umas coisas estranhas, uns calores esquisitos e a sentir necessidade de me aproximar de amigos cães. Sempre que me aproximava da rede que cercava a quinta, aparecia logo uma data de deles, do lado de fora, desafiando-me para lhes fazer companhia.

Na zona onde moro existe um parque de campismo. No fim do verão, quando os campistas acabam as suas férias e voltam para suas casas, os cãezinhos, que lhes deu muito jeito possuírem para os acompanharem nos seus passeios pelo campo e para lhes guardarem as tendas, esquecem-se deles e deixam-nos por ali, abandonados. É um dó de alma vê-los, magros, esgalgados, de olhos tristes, vagueando pelos campos, sós ou em verdadeiras matilhas. São muito cruéis às vezes os nossos donos! Não que eu tenha razão de queixa dos meus, mas não sei que pensar desses que tão mal procedem com os meus irmãos de raça.

Quem me contou tais mal feitorias foi um desses irmãos abandonados que com muita frequência vinha conversar comigo junto à rede. Um dia convenceu-me e, ele de lá e eu de cá, cavámos um abertura por baixo da rede, pela qual me esgueirei. O que eu me diverti nesse dia! Corremos seca e meca, metemos o nariz em tudo quanto era sítio, de alguns lados fomos escorraçados e às duas por três já havia quase uma dúzia de outros companheiros ao nosso lado, todos igualmente abandonados e vivendo apenas do que caçavam ou conseguiam pilhar nas casas e quintais da vizinhança.

A princípio, fiquei muito entusiasmada com tantos amigos para brincar, mas cedo descobri que a brincadeira que eles queriam era outra, pois todos, à ufa, me lambiam me cheiravam e todos, à vez, se me encavalitavam no lombo, prendendo-me, por trás com as patas da frente, A todos sacudia e arreganhava o dente, mas eles não desistiam. Até que chegou a vez do amigo que me desafiara para o passeio. Aí não resisti e confesso (até me sinto corar de falar nisso agora, que já não tenho idade para falar nessas coisas) que bem gostei quando senti aquela coisa vermelha e quentinha a entrar dentro de mim e, sobretudo, quando uma golfada morna me inundou por dentro, deixando-me com as patas a tremer, de tal forma que julguei que ia cair por terra, sem forças. O que é que o meu amigo iria pensar de mim...

Ali ficámos, tempos sem fim, saboreando aquela sensação doce e estranha, até que uns malvados de uns garotos apareceram e tentaram à força separar-nos. Não o tendo conseguido, foram buscar um balde de água fria que, inteirinho nos despejaram mesmo por cima do local do nosso ardor. Quando ele finalmente me deixou, ambos completamente encharcados, corri a meter-me em casa, numa humilhação que só visto.

O pior foi que, tempos depois, saíram da minha barriga, quatro cachorrinhos (é o nome que eles dão às nossas crias). Logo me veio à memória a lembrança da outra, a grande das tetas, onde eu chupava, e da qual me separaram sem que nunca mais voltasse a vê-la. A lembrança dessa cena fez-me reparar nas minhas próprias tetas, muito gordas nos últimos tempos e senti um imperiosa necessidade de também eu as oferecer aos meus cachorrinhos. Infelizmente não o pude fazer porque logo mos tiraram Não sei se morreram se desapareceram. Nunca percebi bem a diferença entre estas duas palavras. Ao longo da minha vida tenho-as ouvido tantas vezes mas nunca as soube distinguir. A primeira vez foi na altura do desaparecimento do senhor Fernandes, pai da Gabi

Pelas conversas que ouvi, a Gabi queria que um dos meus cachorrinhos não desaparecesse, mas o Zé disse que não, que eles não tinham pedigree, não sei quê, não sei quê e que não os queria para nada. E falando do Zé, devo esclarecer que muitas das pessoas que nos visitam, lhe chamam doutor Martins. Já a Maria, que é uma fêmea gorda que faz a limpeza e o comer para todos e que tem sempre um petisquinho guardado para mim, só lhe chama senhor doutor, o que me faz muita confusão, tanto nome para a mesma pessoa.

Ah, e antes que me esqueça, eles têm um papel onde se diz que o meu nome é Diana, que sou filha de um tal Ladina ( a das tetas, vejo agora) e que sou labrador puro. Sempre que vou ao veterinário (é o macho de duas patas vestido de branco que trata dos da minha raça) eles levam lá o papelinho e já ouvi vezes sem conta essa conversa.

O que eu não compreendo é que, certo dia, numa festa em que vieram cá muitos meninos e trouxeram muitos embrulhos para o Gui (só o que eu brinquei atrás daqueles papeis todos que ficaram pelo chão) ouvi falar que um desses meninos era filho de um rico labrador da região. Não sei se ouvi bem, pois ultimamente o meu ouvido ( e até o cheiro) já não são o que eram. Como é que pode ser um de duas patas ser filho de um quatro patas como eu? Ná, não fiquei convencida.

Outra coisa que muito me espanta é que mais do que uma vez têm aparecido por cá, em visita, pessoas a quem chamam Diana. Tal como a mim. Afinal, isto é nome de cão ou de gente?

Houve mesmo, era eu muito novinha ainda, uma certa ocasião em que, durante largos dias não se falava noutra coisa senão na morte (ou desaparecimento? cá está, nunca sei bem) de uma Diana que era gente, de certeza. E era tudo cá em casa de nariz no ar em frente daquela geringonça com muita luz e muito barulho a que chamam televisão. Eu não consigo ver lá nada de jeito para além de umas sombras sem qualquer sentido para mim. Esta gente das duas patas é muito complicada. Mistura tudo de uma tal maneira que, por vezes me deixa, eu que até nem sou parva, extremamente baralhada.

Voltei a ter mais filhotes muitas vezes, mas todos sem pedigree, concluo eu, pois todos foram desaparecendo. Uns, logo que saiam de dentro de mim ( que os“pari”, como eles dizem) e outros, um a um, ao fim de algum tempo, sobretudo nos dias em que havia visitas cá em casa. Um dia, um amigo do Zé apareceu com um cão da minha raça, um outro labrador, que deixou ficar junto de mim alguns dias, durante os quais nos encerraram dentro da cerca, onde se situa a minha casota. Claro que vi logo o que pretendiam de mim, pois por essa altura já eu era muito experimentada na prática de acasalar (assim chamam eles àquilo que nós fazemos e entre eles designam por fazer amor ou foder, como várias vezes tenho ouvido).

Esta última palavra, presumo que não seja muito bonita pois certo dia um dos filhos pequenos de um dos visitantes levou um porradão no focinho, mesmo à minha frente por ter dito que me tinha encontrado a foder com um cão da vizinhança. Coitado, fartou-se de chorar e quando acabou comentou com os outros que até tinha visto as estrelas - coisa em que não acreditei nem bocadinho pois estava um dia de sol e as estrelas só se vêem de noite. Seja como for, fiquei sempre na dúvida se era a palavra que eles achavam feia ou se era o que ele me tinha visto fazer - que eu não acho nada feio e que, além do mais, é muito agradável. A verdade é que depois disso muitas vezes ouvi os grandes dizerem esta palavra e eu acabei por concluir que o outro é que era simplesmente estúpido, digo eu.

Mas voltando à história de me encerrarem com o outro companheiro macho. Se era isso que esperavam, foi isso que tiveram. Mas não foi logo nos primeiros dias, não, que o meu parceiro não me pareceu muito chegado a tais andanças. Quando aconteceu, devo confessar que foi uma sensaboria. Nada que se parecesse com a performance do vadio e esfomeado parceiro da minha primeira vez. As saudades que eu tenho dele! Disseram-me alguns dos companheiros daquela aventura, com quem me encontro de tempos a tempos através do buraco sob a rede, que tenho o cuidado de disfarçar com ervas e folhas velhas) que ele foi morto à paulada, quando assaltava um galinheiro da vizinhança. Esse sim, era um valente.

Ainda por cima, quando nasceram as crias (eram quatro e lindas que eram!) e eu pensava que daquela vez é que mos iam deixar, qual quê? A todos levou o dono do cão, pois a Gabi –ouvi-lhe eu – já não tinha, por essa altura paciência para mais bichos lá em casa. Bichos, imaginem! E eu a julgar que era quase da família. Foi um desgosto para mim.

Já que falei em acasalamento, aqui para nós, vá lá uma coscuvilhicezita.. O Rodrigo, a certa altura passou a vir acompanhado de uma fêmea a quem chamavam a namorada. Muitas vezes os vi, de mãos dadas embrenharem-se na mata. Certo dia, em que eu farejava umas moitas à procura de um coelhito ou qualquer outra presa a que o meu instinto de caçador me compelia, ouvi uma restolhada, aproximei-me, pata-ante-pata e depararei com a namorada deitada nas ervas, em pelo, estendida de barriga para o ar e o Rodrigo, também em pelo, com uma coisa saída que não é muito diferente da dos nossos parceiros de acasalamento, só que não é encarnada, vá de deitar-se em cima dela e zuca que zuca para baixo e para cima, para baixo e para cima… Foi nesse dia que eu aprendi como é que os duas patas (os humanos que agora já sei dizer) acasalam.

Tempos mais tarde, porém, num dia em que houve lá uma grande festa, o mesmo em que, quando o sol se escondeu, o Rodrigo partiu com a namorada para ir morar com ela numa casa que não era a nossa, passeando eu pela mata, vi também duas pessoas da festa, um macho e uma fêmea atrás de uma moita, ambos em pêlo lambendo-se um ao outro – o que me deixou muito intrigada, porque julguei que isso fosse uma característica exclusiva do nosso acasalamento. Depois de muita lambidela, (eu própria estava a ficar excitada com a cena) vi a fêmea pôr-se a quatro patas, tal como nós, e o macho acasalar por trás, exactamente como nós fazemos. Afinal, chamem-lhe fazer amor ou foder, ou outros nomes que já tenho ouvido e agora não me ocorrem, o acasalamento deles, não é tão diferente assim. É, é mais variado e com mais guinchos e gritinhos. Lá isso é.

Mas no final das contas os duas Patas não são muito diferentes de nós. Quando se zangam, e zangam-se muitas vezes, não se mordem como nós mas andam à bulha e gritam e insultam-se. Mesmo o Zé e a Gabi. Já os vi alguma vezes gritarem um com o outro. Uma coisa que me faz muita impressão é ouvir que certo ou certa duas patas - já sei o nome de quase todos que vem cá a casa - é muito mau, que é um filho de puta (deve ser uma ofensa muito grande estou certa) e quando ele ou ela aparece vão todos dar-lhe beijos, que é assim uma coisa de encostar a boca no focinho uns dos outros, mas sem lamber. Isso fazia o Rodrigo com aquela que se chamava a namorada, mas não era no focinho, era mesmo na boca

A propósito do Rodrigo, esqueci-me de dizer que a namorada, que passou a chamar-se Mulher umas vezes e outras dona Esmeralda, pariu duas fêmeas. Uma delas, soube há dias que tinha morrido ou desaparecido. Talvez como as minhas crias. Fiquei triste com isso. O Carlos sempre foi muito bom comigo. Algumas vezes houve em que me levou à caça, uma coisa com que eu sempre sonhei e que uns cães da vizinhança me descreviam com grande entusiasmo. O que eu gostei, meu deus! (Esta de meu deus é uma expressão que eles dizem a toda a hora. Não sei bem o que quer dizer, mas deve ser bom, pois até quando acasalam dizem isso).

Mas pena, pena, tive eu quando o pequeno Gui desapareceu. A Gabi e mesmo o Zé, choraram, choraram (aquela coisa de deitar água pelos olhos, sabem?) Veio muita gente. Toda igual, toda de roupas pretas. E todos choraram. E vieram muitos carros e um muito grande, preto também. Foi aí que o pequeno Gui desapareceu. Agora O Gil e a Lili, desaparecem pouco depois de o sol nascer e só voltam quando já está fraquinho, quase a a esconder-se por trás das árvores, tal como sempre fez o Zé, que nesses dias se veste de senhor Martins e não quer que lhe faça festas nem lhe ponha as patas na roupa.

Ouvi até dizer que o Gil e a Lili também já têm namorados. Um dia destes vão também desaparecer de casa como o Rodrigo e eu nunca vou ficar a saber exactamente o que é e como é desaparecer.

Qualquer dia vou ficar só com ao Zé e a Gabi. Eles sempre me trataram bem, embora o Zé seja me faça menos festas do que a Gabi. Se isso acontecer vou sentir muita falta dos meninos e das suas brincadeiras. É mais uma saudade, daqueles tempos, porque com a minha idade já não me apetece brincar como dantes. Quando era muito pequeno, às vezes , como já referi, nem sempre apreciava as suas brincadeiras, mas com o tempo passei a gostar de brincar com eles e ficámos muito amigos. O que nós nos divertíamos!

Agora, desde que estamos só os três já me deixam passar quase todo o dia dentro de casa junto do lume. Mal me mexo, perco o pelo, volta não volta lá me levam ao homem da bata branca, que me dá umas picadas no lombo ou na barriga e me obriga a engolir umas bolinhas brancas, muito mal gostosas. Passo os dias a dormir e já nem furo a rede em busca dos meus companheiros.

Estou agora deitada ao pé do lume. O Zé e a Gabi estão em frente de mim a olharem para a tal caixa com muita luz e muito barulho. De vez em quando olham para mim com um ar estranho, como se esperassem por qualquer coisa ou por alguém. Nunca os vi olhar para mim desta maneira. Parece-me um olhar triste, se é que um cão pode saber avaliar o que isso seja. Abano-lhes o rabo e eles sorriem

Há dias vi o Zé e o da bata branca a cochicharem, que tal e tal, que eu vou a caminho dos 13 anos, que um dia destes não sei quê….Não sei que caminho é esse, mas pressinto que não vai dar a nenhum lado que eu goste. Já vi passar muitos sóis, muitas chuvas, muitos dias, muitas noites e agora sinto uma grande canseira, dentro de mim e uma grande fraqueza nas pernas. Tenho a impressão que é assim que se desaparece. Quem sabe se no tal caminho não vou encontrar todos os cachorrinhos que pari …tantos, tantos….

Confesso que tenho sido feliz nesta casa. Tratam-me bem, como quanto me apetece sem andar a fossar nos quintais e ser corrida à paulada pelos donos e quinteiros, mas fica-me um desgosto. O meu instinto é ser caçadora, correr montes e vales atrás das presas, cheirar o mato selvagem, furar por entre tojos e giestas, nadar nos rios e fundões, mas só duas ou três vezes o Rodrigo me levou. Agora é tarde, que já não tenho forças para isso, mas muitas vezes senti vontade de abalar... ir correr mundo.

Mas.. não sei o que é isto, mal consigo abrir os olhos, mal distingo a Gabi e o Zé … Parece que de repente ficaram muito longe, sinto-os a desaparecer, a desaparecer… hum, que bem se está aqui ao pé do lume…….

26 de Fevereiro de 2007
Diana

2.20.2007

TERESINHA

Vermeer- jovem com brinco de pérola
baixado da net, data venia

Este poema e a sua história constituem, só por si, um curioso objecto de estudo sociológico de uma época. Foi o primeiro soneto que fiz na minha vida. Foi na segunda metade da década de quarenta e teria então 17 ou 18 anos.

A Teresinha, era uma das várias filhas de uma família pertencente a um extracto social e económico, muito, mas muito acima do meu. E no entanto apaixonei-me por ela (também, nesse tempo - gaiteiros escoceses à parte - apaixonava-me por tudo que mexesse e usasse saia, diga-se em abono da verdade).

As chances de ser correspondido, na sociedade altamente estratificada e preconceituosa de então, eram completamente inexistentes. No entanto - o coração não olha a pormenores que ao coração são estranhos - dediquei-lhe este ingénuo e juvenil poema.

Como se verifica, trata-se apenas de um retrato, de uma homenagem, tipo amor cortês, ao jeito medieval. Não se vê aqui qualquer declaração de amor, ai de mim, como me atreveria?! E no entanto ela estava lá. Disfarçada, é certo, mas muito clara e muito directa.

Prevenido que está, o leitor deste “post”, não terá dificuldade em a encontrar. Quanto à destinatária nunca cheguei a saber se dela se apercebeu. É provável que não. O poema, contudo, tenho a certeza que o leu, lá ficou nas suas mãos e aqui o reproduzo. Mas atenção, onde agora escrevo “as tuas tranças”, na época escrevi “as suas tranças” . À época o respeitinho era muito lindo, sobretudo sendo ambos quem éramos. Nunca mais soube da Teresinha. Não sei sequer se ainda vive. Já tenho, por curiosidade, tentado descobrir o seu nome em diversas lista telefónicas, mas se casou, o seu apelido ter-se-á perdido em favor do marido.

Eram assim aqueles tempos. Também isto faz parte da história. A história das relações sociais neste país à beira mar plantado.

TERESINHA

Teresinha, as tuas tranças douradas

Emoldurando o alvo rosto lindo,

Recordam frescos goivos florindo

Em verdejantes leiras perfumadas

.

Saudosos tempos de moiras e de fadas,

Incautas donzelas no bosque dormindo,

Nobres fidalgos p’rà guerra partindo,

Homens de armas, lanças e espadas,

.

Ai, tudo lembra a tua loira trança!

A voz e o gesto de pundonor

Movem na mente, trazem à lembrança

.

O vulto de antiga dama de honor.

Tem alvo e fino lenço na mão branca

E a seus pés, sentado, um trovador

2.13.2007

ENTRE DOIS AMORES

Em 11-1- 1952 escrevi um soneto a que dei o título de “Porquê?” Mas logo me arrependi, e ainda antes do dia acabar, já tinha feito outro em sua substituição, a que chamei “O Dia há-de vir” e fui a correr pedir à destinatária para me devolver o primeiro porque o segundo é que valia. Claro que ela guardou os dois.

No primeiro, o Poeta, cansado e triste, pede para dormir e esquecer no colo da Amada toda a angústia que lhe provoca a infindável noite que os envolve:
No segundo, opta por irem ambos fazer algo de concreto, para que o Dia chegue.

Naquele tempo era um dilema frequente para muitos jovens da nossa terra (os que pensavam, claro, apenas os que pensavam) acomodarem-se ou fazerem algo para que as coisas mudassem. E não era fácil trocar o colo da Amada pela incomodidade da Luta. Mas, de entre esses , muitos houve que preferiram a opção menos fácil e alguns, mesmo, de uma forma total e absoluta.

E se fosse hoje? qual das duas versões do poema eu escolheria? Hoje, a pergunta é, porventura ociosa, pois já me falta o jeito quer para uma quer para outra das opções. Ou não?

PORQUÊ ?

Porquê tão escura a noite sem estrelas

Tão triste o uivar do vento, meu Amor?...

Porquê tanta miséria e tanta dor

Nos casebres imundos das vielas?...


Porquê de fome faces amarelas,

Tanto ódio infernal, tanto rancor,

Tanta injustiça, tanta? ... Que pavor

A escuridão da noite sem estrelas!...


Sinto-me tão triste e tão cansado!...

Ah! Se esta noite negra de pecado

Mudasse em radioso amanhecer...


Enquanto se não cumpre o meu anseio

Deixa pousar a fronte no teu seio

E deixa-me dormir...dormir... esquecer...



O DIA HÁ-DE VIR

Quão longa é esta noite, este temor

Que sobre a nossa terra se abateu!

Que crimes este povo cometeu

Para ser sujeito assim a tanta dor?


Não foi a liberdade só que se perdeu

A vida acinzentou, perdeu a cor

Perdeu até sentido o próprio amor

E a própria luz do sol esmoreceu


Sinto-me tão triste e tão cansado!...

Pudesse eu, em teu peito reclinado,

Dormir, esquecer, até o Sol raiar…


Mas não, Amor, que o tempo é de labuta

O DIA não vai vir sem ser com luta

E a luta, temos nós de a travar!


2.05.2007

TEMPO DE TREVAS


Pormenor do Aljube. Porta de entrada.
Era a uma janela como estas, mas no 3º piso,
que eu acenava a minha mulher


Humilhação
também é tortura


Depois de vários dias passados nos “curros”,ou "gavetas",
a camarata para onde me levaram afigurou-se-me,
se não como um hotel de cinco estrelas, pelo menos como
um dormitório de uma colónia de férias.



Não sei se sabem o que eram aquilo a que no Aljube os presos designavam por curros – talvez pela parecença, no tamanho, com aquele pequeno compartimento, quase à medida do animal, de onde os touros são espicaçados e saem imediatamente para arena. É. pelo menos na escassez do espaço, na sua forma oblonga e no encurralamento dos presos, as celas do Aljube faziam lembrar esses tais curros.

Imaginem um longo corredor, paralelo e a todo o comprimento da grossa parede que dá para a rua da Sé. A escassa luz desse corredor que se fecha a sete chaves logo que nele se penetra é coada através de cinco ou seis janelas com grossas grades de ferro, revestidas com uma espessa e grossa rede de arame, para que da rua nada se veja do que atrás delas se passa.

Do lado direito desse corredor, uma dúzia de portas (penso que seja uma dúzia, pois nunca me deixaram percorre-lo até ao fim) cada uma delas com uma minúscula fresta, também gradeada, e um postigo que os guardas abrem e fecham por fora para que cada preso não veja quem passa no corredor. Atrás dessa porta e a cerca de um metro de distância, uma outra, com igual minúsculo fresta.
É imediatamente atrás desta segunda porta que se situa um estreito cubículo, escuríssimo como se depreende, com pouco mais de 3 metros de cumprimento - a medida exacta de dois catres (bailiques lhe chamavam os presos) – um a seguir ao outro, e uma largura pouco maior que a largura dos ditos.

A todo o cumprimento desse cubículo, a cerca de 70 centímetros acima dos catres, uma prancha com uns 30 centímetros de largura, a qual, depois de dobrada e levantada a cama, que a ela com um gancho se prendia passava a servir como uma espécie de mesa, onde se apoiava o prato de alumínio para comer ou escrever, sempre de pé, bem entendido.

Acontecia assim que, ou bem o preso tinha a cama descida e nela passava o dia deitado ou sentado - pois praticamente não se podia movimentar - ou bem que a levantava e ficava com a estreita nesga correspondente ao comprimento da sua para dar uns passinhos e desentorpecer as pernas., tendo o da cama do fundo de pedir ao companheiro que ocupava o catre da entrada para encolher as pernas, se este tivesse o seu descido e nele se encontrasse sentado com as pernas de fora. As magras e meio frias refeições, ou se tomavam sentados nas camas, ou de pé, como já referi, sobre a improvisada mesa, se a cama estivesse levantada.

Cada um dos presos dispunha de um balde para as necessidades menores. Para as maiores tinha de berrar pelo guarda de serviço, o qual quando se dignasse aparecer, conduzia o preso a um cagadouro de buraco no chão, situado num espaço aberto a meio da fila de celas, exposto aos olhares de quem passasse no corredor.

Eram estas as celas que os presos designavam por “curros” e outros por "gavetas" de triste e odiosa memória. Não admira pois que, como comecei por dizer, a camarata para onde fui transferido - não sem antes ter passado vários dias e noites em interrogatórios na chamada “tortura do sono” - constituía uma mudança qualitativa que não pude deixar de apreciar como um mal menor.

Era uma sala ampla, quadrada, com seis camas de um lado e outras tantas, encostadas à parede do lado oposto. Dispunha de uma retrete com porta que, não se podendo fechar por dentro, se podia ao menos encostar - o que constituía uma não despicienda vantagem em relação ao cagadouro dos “curros” - situada num pequeno compartimento antes de entrar na camarata e alguns lavatórios e duche num outro compartimento ao fundo sala., cuja limpeza, bem como de todas as instalações estava obviamente a cargo dos presos.

Entre as duas filas de camas havia um espaço, a todo o comprimento da sala, com talvez metro e meio de largo, que constituía, à falta de outro melhor, como que o nosso pátio de recreio.

Ali desentorpecíamos as pernas caminhando para trás e para a frente, como tontinhos, até nos cansarmos, ou até que algum mais stressado (ali os nervos estavam sempre à flor da pele) por não poder suportar a repetitiva cadência dos tacões ressoando no pavimento de cimento encarniçado da camarata e anexos, nos implorasse para pôr fim à frenética caminhada para lado nenhum.

Muitas vezes usávamos aquele mesmo espaço para disputar um animado torneio de chinquilho improvisado. Uma caixa de fósforos vazia, colocada ao alto no centro de um círculo desenhado a giz ou caliça da parede, servia de pino, enquanto as malhas eram igualmente caixas de fósforos cheias de miolo de pão amassado que se arremessavam de longe, a deslizar pelo pavimento, na tentativa de derrubar o pino ou, pelo memos marcar pontos, caso parasse dentro do círculo de giz. Também com o miolo de pão amassado havia um companheiro que moldava belíssimas peças de xadrez (as pretas obtinham-se mediante a junção de cinza de cigarros) com que alguns se entretinham. Quanto ao jogo de cartas, eu próprio, embora não jogasse, desenhei vários baralhos em cartões recortados da parte traseira dos maços de cigarros “Definitivos” ou “Provisórios”, marcas baratas então muito em voga.

Assim se tentava atenuar a passagem do tempo da melhor maneira possível, de forma a iludir a angústia constante, pela separação dos seres queridos, pela perda do emprego, pela sujeição inesperada e constante a mais interrogatórios e prováveis sevícias, pela incerteza quanto ao desfecho final dos processos.

Mas, de um forma geral, o ambiente era de grande solidariedade e espírito de entreajuda, pois idêntico era o motivo das nossas provações e semelhante o ideal que, com algumas nuances e graus de envolvimento, nos irmanava na luta contra o odioso regime de Salazar..

Para além dos passatempos que atrás referi, ocupava-se também boa parte do tempo em reuniões colectivas, onde cada um falava das suas experiências de vida e se fazia a análise da situação política (quem não percebesse de política, tinha ali a sua melhor escola) sendo outra parte destinada ao funcionamento de aulas ministradas por alguns dos companheiros habilitados em diversas matérias, tais como português, francês, Inglês, matemática, contabilidade, economia.

Havia lá de tudo. Não ao mesmo tempo, pois havia sempre gente a entrar e sair (a Pide não gostava que se criassem grandes laços entre os presos e por isso se empenhava em baralhar e dar de novo com constantes e quase sempre arbitrárias transferências de presos). Conheci naquela camarata três economistas, vários empregados de escritório, bancários e quadros técnicos, um escritor, vários operários corticeiros, químicos, um carpinteiro, ferroviários como eu, vários pescadores, camponeses e mesmo um pastor, analfabeto, de pelico e safões de pele de borrego, que nem ler sabia. Era o rescaldodas eleições do General Delgado à Presidência da República e as prisões regurgitavam de presos políticos naquele princípio de ano de 1959. O Ditador tinha ficado mesmo acagaçado…

Quanto a mim, ainda praticamente em lua de mel prolongada e com a minha mulher grávida, um dos meus passatempos era, por detrás das grossas grades e da rede de arame que se lhes sobrepunha, passar horas esquecidas a espreitar a rua, na esperança de a ver surgir, no passeio fronteiro e muito devagar descer a rua, encostada às paredes da Sé, de ventre empinado e maior a cada dia que passava, procurando com os olhos doces que as grávidas têm, a janela do terceiro andar onde, sem me ver, descortinava um vulto que sabia ser o meu, acenando e gritando o seu nome. Ela olhava, sorria, e passado um ressaltos da muralha que a ocultava dos olhares do GNR postado à porta da prisão, parava, acenava mais abertamente e sorrindo, sorrindo sempre, continuava a descer a rua, até a perder de vista, ao fundo, na dobra da rua.

Todos os dias, de manhã antes de entrar no emprego e à tarde depois de sair, a visita se repetia e com tal regularidade que todos os outros companheiros enchiam as outras duas janelas acenando também, e beneficiando indirectamente daquele sorriso que lhes suavizava as neuras e os medos que a todos corroía.

O nosso ritmo de vida poderia até considerar-se relativamente satisfatório, não fora o doloroso sentimento da perda de liberdade e o sobressalto permanente de vir a ser buscado a qualquer hora, para os terríveis interrogatórios no antro da Pide – a sinistra sede da Rua António Maria Cardoso.

Era quase sempre a meio da noite que vinham. Primeiro ouvia-se o som característico do motor diesel da carrinha de transportes de presos, no esforço de subir a rampa da Sé. Se o som continuava e aos poucos, ao longe, se extinguia, os corações sossegavam. Porém se o motor parava em frente da prisão, se ouvia um bater das portas do carro a fecharem-se, de novo se alvoroçavam. Era certo e sabido que pouco depois se ouviria, sinistro e estridente, o toque do telefone colocado ao cimo das escadas do nosso piso. Era da portaria. Era a Pide que chegava. Ai, os corações mais aceleravam. Ouvia-se o guarda lá fora: Sim, está bem, ele desce já. Logo de seguida, o ranger de sucessivas voltas da chave no ferrolho da gossa porta de entrada, esta a escancarar-se e o guarda prisional quase sempre com um sorriso bem sacaninha: Senhor Fulano, prepare-se para ir à polícia.

Pálido, lá se levantava o indigitado, lá se vestia atabalhoadamente, e saia fazendo um discreto sinal de despedida aos companheiros, estremunhados e soerguidos nos respectivos leitos. Claro que ninguém mais pregava olho na camarata. Todos sabiam que, muito possivelmente, durante vários dias não voltariam a ver o companheiro, submetido à sanha e aos caprichos dos implacáveis inquisidores.

Naquela noite foi o Manuel Lemos, meu vizinho de cama.
O Manel era um jovem operário corticeiro, algarvio, casado e com filhos. Era um latagão, bondoso e simples como são quase sempre as pessoas grandes. Algo ingénuo até. Recordo-me de uma vez, já deitado, ter desatado a rir a bandeiras despregadas, quando me viu vestir muito compenetradamente o pijama de flanela que então usava. Qual é a graça? Perguntei. É que, respondeu, ainda sem poder conter o riso, gostava de saber para que raio vestes esse fato completo, casaco e calças, para dormir, e ainda para mais com bolsos e tudo. Será para guardares a merenda se te der a fome de noite?

Acabei por rir também com ele. É claro que o Manel, que dormia de cuecas e camisola, nunca tinha visto aquela estranha e ridícula fatiota de dormir.

Passaram-se vários dias e várias noites e o Manel sem aparecer.
E nós, olhando a sua cama vazia e sofrendo com as mais que certas sevícias a que o nosso companheiro deveria estar a ser sujeito, designadamente a temível tortura do sono que a maior parte de nós já tinha sofrido e sabia avaliar quanto custava. Muito mais que a porrada, em meu entender.

No meu caso, lembro-me de, a meio da noite, ter entrado no compartimento onde um outro Pide me moía o juízo para confessar não sei o quê, o Inspector R., que eu sabia ser useiro e vezeiro a espancar pessoalmente os presos. Mal o vi entrar, com grande estardalhaço, enorme, gingão, de lacinho, bigodinho à César Romero, e ar de quem vinha “bem bebido” (devia vir de uma festa de carnaval, pois era num dos dias dessa quadra) encostei-me à parede, em ar de defesa, para melhor aguentar os golpes que viessem. Pois ele, veio direito a mim, pôs-me a mão no ombro, encostou o rosto avermelhado e a tresandar a vinho, junto ao meu – tão juntinho que receei mesmo que me fosse beijar e segredou-me ao ouvido: Vê-se mesmo que o senhor Gouveia está de peito feito para que lhe dê um enxerto de porrada. Pois não lhe vou dar esse prazer, ouviu? Não lhe vou dar esse prazer! E não deu mesmo, o sacana.

Lá continuei de pé, sem dormir - sob a ameaça constante que dali só sairia para o Tribunal Plenário, para o Julio de Matos ou para o Alto de São João - até ver os nós da madeira transformarem-se em baratas que começaram a corre em todas as direcções e subir por mim a cima.

Quando voltou, o Manel entrou silencioso e deixou-se cair em cima da cama, de rosto voltado para a parede.

Ninguém se mexeu do seu lugar. Quando um companheiro vinha dos interrogatórios, todos respeitavam o seu silêncio, sabendo-se que o seu estado de espírito era profundamente deprimente em tais ocasiões.

Ouvi-o soluçar. Como companheiro mais próximo sentei-me na sua cama, pus-lhe a mão no ombro e tentei animá-lo: Então amigo, o que foi? Desabafa! Ele virou-se, os olhos vermelhos e marejados de lágrimas. Abraçou-se a mim e repetidamente disse apenas: Bateram-me, os cabrões, bateram-me na cara, na cara. Uns merdas que eu podia desfazer com as minhas mãos. E erguia diante dos meus olhos umas mãos enormes e calejadas, que abria e fechava num gesto de esganar o que lhe aparecesse pela frente.

Os sacanas sabiam o que a cada um doía mais. Àqueles a quem podiam sacar alguma informação, porque dela eventualmente dispunham, usavam preferencialmente a tortura do sono até a extorquirem; aos mais impreparados politicamente (alguns nem chegavam a saber porque estavam presos), a violência física era mais utilizada, destinando-se sobretudo a amedrontá-los, de forma a afastá-los de eventuais participações em futuras actividades políticas; em relação a outros usavam a chantagem psicológica: a mãe velhinha, a falta que faziam à família, os filhos para criar, mulher que, enquanto ele estava ali armado em herói o corneava cá fora…Tudo servia para desmoralizar o preso.

Pois àquele bom gigante, homem rude e simples, o não dormir, e os interrogatórios cerrados afectavam muito menos do que ser desfeiteado na sua qualidade de macho corajoso por um bando de cobardes investidos de uma legalidade usurpada e criminosa.

Naquele momento, o meu ódio pelo sacripanta que, com ares de santinho e falinhas mansas espezinhava e, por mãos de sicários a expensas do Orçamento de Estado, torturava e humilhava o seu povo a partir da seu santuário de São Bento, atingiu um intensidade só comparável à imensa piedade pelo meu companheiro, de alma ferida e dignidade aviltada, a cujo choro, silencioso, me associei.


Nota: O apelido deste companheiro, do qual nunca mais tive notícias, começa efectivamente por L, mas não é Lemos. Evito assim ferir naturais susceptibilidades

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Fotos baixads , data venia , DAQUI