Em 1948, o prestigiado General Norton de Matos acede a apresentar-se como candidato da oposição à Presidência da República nas primeiras eleições que o regime se viu forçado a permitir (a fingir que permitia) e que teriam lugar no ano seguinte. O Zé mergulha de corpo e alma
na preparação da campanha que se aproxima e no movimento de massas que a sustenta. Baldado esforço.
Sem um mínimo de garantias por parte do governo, e face a toda série de obstáculos formais e persecutórios, o general desiste de se candidatar.
Seguem-se vagas de prisões.
Entretanto o Zé conhece a Ascensão, moça bonita - feições, curiosamente muito a lembrar as da princesa Soraya, mulher do Xá da persia - com quem vem a casar em 19 de Setembro de 1948, e que viria a ser a sua dedicada companheira até ao fim dos seus dias, revelando-se uma extraordinária força de carácter, capaz de, com ele, enfrentar todas as vicissitudes que a vida haveria de lhes acarretar, sem uma recriminação, sem nunca o desviar da luta pelos seus ideais.
Em 1949, calha-lhe a vez de ser preso, mas a sua militância não abranda, antes se fortalece.
Em 1951, após a morte de Carmona, novo simulacro de eleições Presidenciais, nas quais participa activamente em apoio da candidatura do Professor Ruy Luís Gomes, ao qual depois de o agredirem e de lhe racharem a cabeça, acabam por considerar “candidato inelegível”, consumando assim uma das habituais trapaças do regime.
Depois destas, não houve eleições, presidenciais ou legislativas, a que não emprestasse a sua militância activa. A sua profissão de motorista distribuidor de petróleo, em todo o concelho de Loures, facilita-lhe a actividade política e o estabelecimento de contactos, proporcionando-lhe um conhecimento profundo de todos os lugarejos do concelho, onde se torna conhecido e estimado.
Em 29 de Julho de 1954, dia dos seus anos ( a PIDE tinha lá a sua ficha e a escolha da data não foi, de todo, inocente), estava a família toda reunida à mesa, preparando-se para começar o jantar de aniversário, quando apareceram para o prender. Eram dois os pides. Meu irmão recusa-se a acompanhá-los sem que se tenha consumado o jantar familiar. Contrariados e com receio do escândalo os agentes acabam por ceder e preparam-se para se sentarem junto à mesa, mas o Zé impede-os de o fazerem, dizendo-lhes que em sua casa e junto de sua família só os amigos se sentam.
É de pé que, hirtos como sentinelas e de rosto fechado, os Pides assistem ao tenso, enervante e infindável jantar, que não deixou, mesmo assim, de culminar com os tradicionais “parabéns a você “, entoados com a raiva que se imagina. Terminado o repasto e depois de virarem a casa do avesso e de “apreender” o que lhes apeteceu, lá o levaram, por fim, indiferentes às súplicas da nossa mãe, ao choro do filho, de cinco anos, e aos veementes protestos de toda a família.
Na sequência desta prisão, que durou 10 meses e apesar de absolvido em Tribunal, perdeu o emprego, de acordo com ordens expressas da PIDE. Durante meses andou sem trabalho e sem saber que rumo dar à sua vida, até que resolveu tomar de trespasse uma drogaria, pertença do filho de um seu antigo patrão e que, embora simpatizante do regime então vigente, atendendo à consideração pessoal que por ele tinha, lhe facilitou o pagamento de uma forma bastante dilatada no tempo. Aqui presto homenagem ao Sr. Virgílio Leitão.
Mais tarde, e por minha influência, abriu uma livraria/discoteca, onde a malta de esquerda sabia que podia sempre encontrar um ou outro livro ou disco dos que a PIDE não gostava e aonde, movida por tal consabido desamor, fazia volta não volta, uma das suas selváticas incursões predatórias.
Participou de forma interveniente nos três Congressos Republicanos de Aveiro (1957, 1969 e 1973) e viveu toda a agitação que os mesmos suscitaram, por vezes, como é sabido, com a intervenção brutal da polícia de choque.
Em 1958, militou intensamente na campanha eleitoral para a Presidência da República. Primeiro em apoio de Arlindo Vicente (sendo mesmo em Moscavide que este candidato fez a sua primeira sessão da campanha, organizada, já se vê, por uma comissão à frente da qual estava o José Gouveia); depois, após a desistência de Arlindo Vicente, e com o mesmo entusiasmo, em apoio de Humberto Delgado, que galvanizou o país, obrigando o “Manholas” a recorrer à fraude generalizada para evitar a sua vitória nas urnas.
Não resisto a registar aqui o facto de a secção de voto, onde eu permaneci até ao fim e tinha como presidente da mesa o dito Virgílio Leitão, ser das raríssimas onde não houve fraude, porque o presidente ameaçou os pides presentes de abandonar a Mesa, caso estes insistissem em interferir na contagem dos boletins de voto. Nessa secção, não só a vitória coube ao General Delgado – como o resultado posteriormente afixado à porta – reproduzia preto no branco, a verdade da contagem lá dentro obtida.
Em 1969, surge a CDE (Comissão Democrática Eleitoral), em cuja criação o Zé colaborou activamente, fazendo parte da sua Comissão Nacional. Novas eleições, sendo Zé candidato à Assembleia Nacional pelo distrito de Lisboa, numa lista de que fazia também parte o então jovem advogado, Dr.Jorge Sampaio. E pela terceira vez, no rescaldo dessas eleições, no dia 1.º de Maio de 1970, voltou a conhecer as masmorras da polícia política.
Em 21 de Julho de 1973, aproximando-se novo período eleitoral, foi preso pela quarta vez, quando com um grupo de amigos (crime tenebroso!) recolhia assinaturas protestando contra o aumento das rendas de casa.
Desta vez a coisa foi mais grave. O “tratamento” foi tal, que dele resultaram gravíssimas perturbações do foro psíquico. Fugindo às suas responsabilidades, a PIDEà sorrelfa e pela calada da noite, abandonou o doente no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda. Médica amiga, que trabalhava no hospital, deu-se conta, de que alguém, em estado gravíssimo, ali tinha sido deixado pela polícia, sem quaisquer formalidades. Averiguou de quem se tratava e fez-nos chegar a notícia alguns dias depois. Tão incorrecta e ilegal era a actuação da PIDE, que apesar de o doente se encontrar debaixo de prisão, veio para casa, meses depois, sem qualquer formalidade. Ele tinha pura e simplesmente sido abandonado, sem cavaco à família, depois de inutilizado, para a luta e para a vida pensavam eles.
E de facto o Zé vinha gravemente perturbado. Só um grande choque o poderia trazer à normalidade. Esse choque aconteceu: foi o 25 de Abril - uma alegria para o país e a ressurreição para o José Gouveia.
Parecia milagre! Aí estava ele, lúcido, activo, pronto para continuar a luta, uma vez alcançado um dos maiores objectivos da sua vida - o derrube do iníquo regime que tanto mal causara ao país.
Poucos dias depois, era eleito, em assembleia popular do Concelho de Loures, para presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal, onde teve de se bater contra aqueles que não se conformavam em perder privilégios e vantagens conseguidas no regime deposto, e galvanizar a admirável iniciativa popular, naqueles dias estimulantes e inesquecíveis que se seguiram à revolução dos cravos.
Mas a actividade do Zé Gouveia não se limitou apenas à militância política. Ele esteve sempre na primeira linha de iniciativas sócio-culturais em Moscavide. Muito jovem ainda, colaborou na criação do Atlético Clube de Moscavide, a cuja direcção pertenceu várias vezes e de que viria a ser Presidente nos anos 60; criou e dirigiu várias vezes a biblioteca daquele clube; foi presidente da direcção do Ginásio dos Olivais em meados da década de 50; foi o grande impulsionador, com outros amigos, da criação, no fim dos anos 40, de um núcleo campista - movimento que se iniciava em Portugal e tinha características e cultura nitidamente de esquerda. Em todas estas actividades se empenhou sempre com o maior entusiasmo, e dedicação e mesmo, frequentes vezes, dinheiro do seu bolso.
Era outra das suas formas de luta. Contra o obscurantismo e em prol de uma consciência social e solidária...
Depois... depois é a história actual: vereador em sucessivas eleições autárquicas, membro da Assembleia Municipal, por último. Mil lutas, mil obstáculos, mil fadigas, o desgosto pela morte trágica do filho... e quando, tendo completado 70 anos se preparava para abrandar um pouco...zás: duas intervenções cirúrgicas no espaço de três meses, e por fim a fatalidade maior - um acidente vascular cerebral que o impossibilitou de voltar a andar, falar ou escrever, durante oito longos meses e até ao fim dos seus dias, em 26 de Agosto de 1
993, pouco depois de completar 71 anos.
Não foi justo. Ele, que com o seu feitio temperamental, lutador e com problemas cardíacos, teve tantas oportunidades de se ficar em pleno combate, no meio de uma das suas acesas e truculentas discussões, acabar assim, inerte e sem fala!
“Morreu José Augusto Gouveia: O poder local está de luto” dizia uma revista do Concelho, em que a sua fotografia ocupava todo o frontispício. Assim é. O mundo fica sempre de luto e mais pobre quando perde um cidadão como o José Augusto Gouveia.
Quanto a mim, sinto que perdi uma boa parte de mim mesmo, agora que o “noxo Jé ” vive apenas na imensa saudade que me deixou.
****
Nota final:
O seu desinteresse por tudo o que não fosse a causa que defendia, ia a este ponto:
Tendo perdido o seu emprego na Atlantic por motivos políticos, em 1955, se se tivesse apresentado ao serviço após o 25 de Abril, ter-lhe-iam contado todo o tempo desde essa altura e ficaria com uma boa reforma. Disse-lho vezes sem conta. Respondia-me “Que não. Que a revolução precisava dele. Que foi para isso que sempre lutou”. Acabou por fiicar sem nada.
Quando deixou a Câmara, se fosse outro, faria os possíveis e os impossíveis para ficar mais uns meses (outros o fazem e é razoável que o façam) e ficaria com uma reforma de umas centenas de contos. Ele não. Ele, veio sem nada. Tudo quanto ficou a receber, ao fim de toda uma vida de trabalho, e dos seus descontos para a Caixa dos Comerciantes, foi uma pensão de 30 e tal contos.
Era assim o Zé Gouveia.
________________
Os Amigos, aqueles q
ue com ele conviveram e o admiraram, não o esqueceram porém. Em 1999, apoiados por uma vastíssima comissão de honra encabeçada pelo então presidenta de República, Dr. Jorge Sampaio, promoveram um série de iniciativas em sua homenagem, Em resultado de tais iniciativas, José Gouveia foi agraciado com a ORDEM DA LIBERDADE, foi publicado um livro com a sua biografia e o seu nome é hoje nome de duas ruas e de um Pavilhão desportivo no Concelho de Loures, nome de uma praceta em Moscavide, e nome de uma rua em Moncorvo, esta inaugurada pelo próprio Presidente da República. Tem ainda uma placa de homenagem no prédio onde residia em Moscavide e outra, salientando a sua qualidade de maçorano e lutador pela liberdade - esta a que lhe teria dado, estou certo, maior prazer – na frontaria da Assembleia de freguesia de Maçores, a terra que o viu nascer e de onde saiu em 1934 para uma luta que ultrapassava o horizonte da aldeia, muito para além das montanhas que a cercam e a tornam tão pequenina na encosta onde se anicha, por entre amendoeiras e fragas e terras de pão.

VEJA TAMBÉM O MEU OUTRO BLOGUE,
http://enquantoenao.blogspot.com/