JOSÉ GOUVEIA, MEU IRMÃO (2ª parte)
O apego do Zé à liberdade, e às ideias progressistas deve ter começado logo na instrução primária e julgo não andar longe da verdade se afirmar que a isso não deve ter sido estranha a influência da professora, de quem, como atrás referi, falava sempre com a maior admiração e carinho.
Quando, finalmente, o nosso pai achou que tinha algumas condições (bem poucas eram!) para nos receber em Lisboa, mandou-nos vir.
Lá viemos pois de escantilhão, a mãe e os três filhos, “pouca-terra,pouca-terra” num dos ronceiros comboios a vapor da época, durante um dia e uma noite inteirinhos.
Foi em Maio de 1934. Ia o Zé fazer 12 anos e eu acabava de fazer cinco.
O pai esperava-nos na estação dos Olivais onde o comboio chegou de manhãzinha. A Lisboa de que nos falavam era afinal um simples lugarejo nos arrabaldes da capital, de nome obscuro e para nós totalmente desconhecido, Moscavide. Lá veio a tropa-fandanga, sacos às costas, mais de um quilómetro, até à casa que o meu pai alugara havia poucos dias, para nos alojar pois que, antes da nossa chegada, como estava sozinho, dormia dentro de um carro, numa garagem onde se ocupava da guarda e lavagem dos veículos. Ali apanhou uma bronquite asmática de que não mais se livrou e vezes sem conta o levou ao hospital.
Só chegados à porta de casa - um sótão na Travessa do Cauteleiro - os meus pais se aperceberam, com grande consternação, que o Zé, que vinha mais atrás, não aparecia. Passou o dia inteirinho, passou a noite interminável (os pais desesperados, procurando-o por todo o lado, eu e o Tino berrando de fome e desconforto, pois não havia tempo nem cabeça para se ocuparem de nós) e só a meio do dia seguinte nos chegou a informação de que o desaparecido estava na esquadra da polícia dos Olivais, aguardando que o fossem buscar.
O que é que tinha acontecido? O bom do Zé, acabadinho de emergir do estudo da história de Portugal, nutria uma incontida admiração pelo Marquês de Pombal (devido talvez ao que ele julgava ser o seu carácter progressista e à sua notória aversão aos jesuítas) e uma das suas aspirações, imperiosas, pelos vistos, era visitar a estátua do polémico estadista, acabadinha de inaugurar, a 5 de Maio desse ano de 1934, isto é, dois ou três dias antes da nossa chegada. Assim, ao supostamente desembarcar em Lisboa, quando na verdade era na estação dos Olivais que tínhamos descido, imaginou que o Marquês ficava logo ali ao virar da esquina. E como o casario se orientava mais para o sul - já que para Moscavide nós seguíamos por uma azinhaga paralela à linha do comboio e desprovida de qualquer habitação - vá de começar a andar no sentido oposto ao nosso, julgando talvez que dava uma espreitadela à estátua e voltava a correr atrás de nós.
Andou, andou, andou, pergunta aqui pergunta ali, até que lá para o fim da tarde contemplou extasiado a estátua imponente do seu ídolo que, de leão ao lado, o contemplava altivo e majestoso do alto do seu pedestal.
Só então chegou a fome, o cansaço e a angústia de se ver sozinho, num meio completamente estranho e abissalmente diferente da aldeia serrana de onde fora subitamente desenraizado.
Tentou o caminho de regresso mas as ruas pareciam-lhe agora todas iguais e subitamente hostis. Vários transeuntes se aperceberam da perplexidade daquela criança. Um houve que lhe deu de comer.
-“Onde moras?” -
-” Cá em Lisboa”
- “Em que rua?”
- ”Não sei, é cá em Lisboa”
- “Mas em que sítio de Lisboa?”
- “ Não sei, é aqui em Lisboa”
Não havia hipótese. Assim andou deambulando, até que alguém tomou a iniciativa de o levar a uma das esquadras da cidade.
Já era noite. Por fim, lá se lembrou que o pai trabalhava numa sapataria de um senhor chamado Lavado. Sapatarias em Lisboa eram às dúzias. E fora de Lisboa? Só no dia seguinte a conseguiram identificar. Era em Moscavide - que nessa altura queria dizer em casa do diabo mais velho. Lá veio o rapaz para a esquadra dos Olivais, de onde contactaram o Sr. Lavado.
Terminava assim a rocambolesca aventura da visita ao Marquês e o desespero da família.
O Zé vira realizado um dos seus sonhos de menino de aldeia. A realidade viria depois. A grande luta ia começar.
Primeiro, a difícil ambientação a um meio completamente diferente. Depois, a rejeição, a troça, às vezes cruel, dos outros rapazes em relação à forma de vestir, à postura e à pronúncia transmontana, inclusive, do recém-chegado.
Lá vinham as púrrias, as brigas, e lá voltava eu de novo e noutros lugares a atirar-me às canelas dos seus opositores, berrando que estavam a bater no “nosso Zé” (que eu pronunciava, claro, “noxo Jé”) para gáudio da pandilha. Tão frequentes eram as minhas intervenções e os meus berreiros, que alguns passaram a meter-se com ele só para me ouvirem, passando eu, que já tinha a alcunha de “Ruço” a ser também tratado por “Noxojé”.
Depois, em casa, as dificuldades económicas. Como o pai não ganhava o suficiente para sustentar a família, que entretanto se viu aumentada com o nascimento do Lau e mais tarde da Alice, a mãe (que passava o tempo a invectivar a“malvada crise” que se vivia - expressão que me deixava atemorizado, sem saber quem era essa megera dessa crise, que tanto mal nos fazia), comprou ao volumoso Zé da Carolina uma máquina de costura que ia pagando em infindáveis prestações, aprendeu a bordar e passava os dias e parte das noites a bordar para lojas e armazéns que lhe pagavam uma ridicularia. Já nós estávamos deitados há muito e ainda ela bordava, bordava, à luz do petróleo, noite fora...
O Zé, tão novo, tão magricela e tão desambientado, teve também de dar o seu contributo. Começou como marçano na drogaria Fénix, perto da nossa casa, na Avenida de Moscavide (pomposo nome dado ao que era, na época, uma simples estrada lamacenta.
Levar as compras a casa dos fregueses. Caixote de madeira ao ombro, calcorrear ruas, subir escadas, descer escadas, enquanto os garotos da sua idade brincavam na rua, jogavam à bola, à bilharda, à rolha, ao eixo, ao pião, ao bílas ou se empolgavam com desenfreadas corridas de arco pelas ruas fora.
E depois dessa drogaria, outra: a drogaria Leitão. E depois a taberna e casa de pasto do Manuel Soares. E depois uma mercearia. E outra. E muitas outras. E servente na oficina do Raul Serralheiro. E servente de pedreiro nas obras de construção do Bairro da Encarnação (nessa época o sítio chamava-se Panasqueira). Lembro-me de lhe ir muitas vezes levar o almoço a pé, 3 ou 4 quilómetros através de azinhagas, com os meus sete ou oito anos. Uma vez, era arroz de lombardo com toucinho e eu, guloso, papei-lhe o toucinho todo pelo caminho, tendo o pobre do Zé, estafado de trabalhar, de se contentar com o arroz e o pão.
E depois, trabalho na fábrica dos amidos, a descarregar pesadíssimas sacas de batatatas. E depois, debaixo do chão, escavando o túnel para instalação do colector de água ao longo da estrada nacional nº 10. À medida que os trabalhos iam avançando cada vez se afastava mais de casa. Assim, teve de alugar uma bicicleta, que pagava à semana, e além do esforço do trabalho extremamente violento, tinha ainda de pedalar vinte ou mais quilómetros para ir e outros tantos para voltar.
Não ganhava para a bicicleta. Acabou por desistir porque teve um acidente em que se ia esfarrapando, ele e o velocípede.
E depois, mais mercearia e mais serventia, que o pai moía-lhe o juízo se ele ficava um dia sem emprego como se a culpa fosse dele, o que sobremaneira o exasperava e o levava muitas vezes a sair porta fora, rosto fechado, e num estado de espírito que deixava a nossa mãe em grande inquietação.
Toda esta labuta, a intolerância do pai, as leituras e os contactos nos diversos locais de trabalho fizeram aumentar o seu espírito de revolta e as suas preocupações de ordem social. Datam desta época, adolescente ainda, os seus contactos políticos e a sua militância nesse campo. Por volta dos dezoito anos trabalhava numa mercearia e casa de comidas, o “Beleza”, num sítio chamado Sentieira, junto a Cabo Ruivo, em cujas proximidades morava uma espanhola fugida à guerra de Espanha, onde perdera o marido, assassinado pelos franquistas. O Zé era, nessa altura um belo moço. Não era mais o lingrinhas que chegara a Moscavide. Tinha fortalecido e era o que se chama um rapagão.
De pronto a viúva, jovem ainda mas mais velha e mais madura que ele, por ele se apaixonou e durante algum tempo viveram um romance que, não só teve o condão de transformar o rapazote em homem feito, como aprofundou os seus conhecimentos políticos que a espanhola, comunista convicta, lhe foi inculcando.
Lembro-me do interesse e preocupação com que ele tinha seguido as vicissitudes da guerra de Espanha, assinalando com bandeirinhas as batalhas de que os jornais davam conta e a sua enorme tristeza quando os defensores da legalidade democrática tiveram de debandar frente às hordas fascistas de Franco apoiadas por Hitler e Mussolini, perante a passividade, que bem cara lhes iria sair, das nações ditas democráticas. Logo de seguida, encorajado pelo êxito conseguido em Espanha, Hitler empreende agressões no centro da Europa que levam ao desencadear da Segunda Guerra Mundial.
Entretanto o Zé faz o serviço militar no Trem-Auto (na Avenida de Berne – no espaço onde hoje funciona a Universidade Nova de Lisboa e onde, curiosamente, estudou e se veio a licenciar a minha filha). Aí aprende a conduzir e tem ocasião de alargar as suas actividades políticas nas suas deslocações com carros da tropa. Ao sair, arranja trabalho na Atlantic (empresa petrolífera antecessora da actual BP), onde a sua tarefa era fazer rolar pesadíssimos bidões de crude descarregados dos navios, cais fora, até à refinaria situada a umas centenas de metros. Lembro-me que chegava a casa ao fim da tarde e se atirava para cima da cama, completamente exausto.
Como lá na tropa andassem a empatá-lo e nunca mais lhe dessem a carta de condução, foi lá e fez um tal barulho que, depois de o ameaçarem de prisão, acabaram por lha dar, finalmente.
Passou então a motorista da empresa. Entretanto tinha acabado a guerra, com a derrota do nazi-fascismo.
A paz e a vitória dos aliados foi acompanhado de gigantescas manifestações. Grande entusiasmo por todo o mundo, inclusive no nosso país, onde se pensava que o salazarismo tinha os dias contados. Criação do MUD (Movimento de Unidade Democrática) e do MUD Juvenil, a que o Zé aderiu imediatamente e de que foi entusiástico militante. Mais tarde, o MND (Movimento Nacional Democrático), onde sobressaia o Professor Ruy Luís Gomes, Virgínia de Moura, José Morgado e outros e a cuja Comissão Nacional o Zé pertencia.
Lançado enfim, na luta política, activa e consequente. inconformado com um regime opressor, tacanho e para o qual o simples acto de pensar era um crime que levava à prisão, à perda de emprego e ao ostracismo político e social.
Continua...
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14 Comments:
António!! Gostaria de dizer algo de original...Não sei. Comoveste-me e deixaste-me à deriva na imensidão intensa das tuas memórias. Bem Hajas. Um grande beijo.
... e eu cá fico à espera de mais...
Uma estória dentro da nossa História, que era bom que todos conhecessem...
Um abraço enorme para ti, António.
Meu querido amigo António, estou comovida e cada vez mais surpreendida pela positiva contigo.
Que grande homem que tu és!
Que grande escritor que tu és!
Que grande historiador, politico, sociólogo, analista, especialista da mente humana que tu darias!
Que puto incrível e engraçado que tu deves ter sido!
Que grande ajuda deves ter tido do teu irmão mais velho para te tornares o homem que és hoje!
Que ser humano fantástico revelas ser nessa forma bonita de recordar e contar a história do teu irmão!
Que belíssima critica social fazes aqui neste teu sentido relato!
Que belo é ver aqui transparecer a saudade do teu irmão Zé!
Que grande homem foi o teu irmão Zé que aqui nos deixaste ver através dos teus olhos de menino e de homem, hoje ao escreveres sobre ele.
Que admirável relato da época em que eras mais miúdo, tanto o relato da tua terra como o da Lisboa desses tempos.
Sabes, tenho muito, mesmo muito, orgulho nesta relação que nós dois criamos aqui.
Tenho orgulho em ser tua amiga.
Tenho orgulho em partilhar histórias com alguém com a tua vivência e com todo esse teu riquíssimo historial de vida.
Eu também tenho a sorte de ter como irmão um ser maravilhoso que no entanto apesar de já ter 34 anos ainda pouco sabe da vida, é ao contrário o meu irmão foi sempre super protegido porque quem ia á frente era eu e porque os meus pais sempre tiveram algumas possibilidades financeiras e acabaram por o mimar demasiado e ele nunca teve de fazer pela vida.
Ainda assim podia ter-se tornado num menino altivo mimado mas não tornou-se num dos seres mais bonitos que conheço.
Mais uma vez António obrigada por seres a pessoa maravilhosa que és, por escreveres como escreves, por partilhares tanto connosco e por seres meu amigo.
Quanto ao teu irmão Zé Gouveia quem me dera ter tido a oportunidade de o conhecer.
Um grande, grande abraço para ti
Isabel
Hehe, meu querido ruço noxojé, assenta-te carinhosamente bem, sobretudo a sabotares a lancheira com o almoço do mano esfomeado. Tsss, tiraste-lhe a energia quando papaste o toucinho. Que história! Vagueia-me na mente um filme a preto e branco, delicioso. Mas ao mesmo tempo sinto-me solidária com o Zé, privado assim da juventude a trabalhar tão duro, e admiro-lhe a volta que deu à vida e como defendeu os seus ideiais.Mas falta o desfecho para saber como acaba. Aguardo. E agradada como sempre!
*
o meu forte e sentido abraço
fazes muito bem divulgar o carácter e a dignidade do José Gouveia. um exemplo de vida.
e todas as dificuldades de uma época. e a detrminação em resistir.
Estou sem palavras, tal é a dimensão qualitativa do que acabo de ler..Parabéns António, mais uma vez.. Que grandeza de ser humano se esconde por detrás das suas palavras... em silencio, e sem que por vezes se aperceba, desnuda-se , e de dentro de si, saiem palavras de encanto..um abraço e bom fim de semana...ell
Não queria ser repetitiva nem reforçar o que outras opiniões já expressaram, mas esta tua escrita... é soberba.
Sensibilizou-me a parte da estátua do Marquês de Pombal. Não tenho mais palavras. Dou-te os parabéns, apenas.
Um dia de Inverno feito tarde de verão assim começa este dia na entrada da tarde.
ola Zé, nao podendo deixar em claro este escrito, pela beleza das palavras e lugares de outrora, quero deixar aqui o meu testemunho de que isto de sabotar o lanche do mano, nao é nao o unico.
menino reguila mas ingenuo, nao é que a quando de uma festalora em casa dos tios (Alfrivida) ja nao me lembro do quê..
Uma dita cervezinha sobrou (mini) ao cuidado da prima Alzira que muito gostava do sabordo malte rsrsrs.
Nada mais engano o tio Joaquim foi na apreciaçao do caso, pois o rapaz que sou eu (silverio)de golo em golo, e sem que tivesse a noçao de que a dita garrafinha , pois era so uma mini, la se ia esvaziando a medidada que o dia decorria, e claro quando a prima chegou dos Cebolais de Cima depois de mais um dia de trabalho nas fabricas (lanificios) bem que a garrafinha tinha tampa e bem apertada, mas do dito liquido, ja ele à muito tinha passado pelo estreito do silvério, nem é preciso o dizer o tio Joaquim ficou muito zangado, e la acabei a apanhar uns tabefos da prima Palmira que na altura já mulher era a minha protectora, mas que tinha mão pesada la isso tinha rsrsr.
um abraço e que o tempo nao se apague na memoria das pessoas
sic: nao serao os outros menos ricos, mas a historia do toucinho a fugir sem que o Zé disso fizesse questao (em o impedir) pela guela abaixo rsrsrsrsrsrsr, deixa sem duvida recordaçoes bem amigas de outros tempos bem mais amigos na vivencia entre seres humanos.
Caro Amigo,
Tanto o anterior texto como este e sobremaneira os vindouros, porque se adivinha, são riquíssimos em enredo. Não te limitas a contar a história de um Lar. Manténs o pilar principal do tema que é a Liberdade, com toda a sua narrativa dos acontecimentos da guerra de Espanha bem com das invasões Hitlerianas na Europa. Ao redor deste belíssimo romance real está bem patente o quotidiano da vida de uma família, sendo o protagonista principal o Zé Gouveia.
Tenho a certeza que irás ter matéria mais do que suficiente para publicares o gradioso romance da tua vida.
Tenho pena que mais uma vez não tenhas dado conta que em 2/Nov já postei outro poema, este agora um pouco mais triste.
Um abraço.
Eu fico, quietinho, à espera de mais, é bom ler coisas, histórias reais que nos deixam à espera de mais.......
Bonito, bem escrito e principalmente emocionante. Promete!
Leio atentamente o memorial que ergues a teu Irmão.
Deixo-te um beijo de muita Amizade.
Meu bom amigo António,
Como o tempo nem sempre se estica como queremos, optei por imprimir este texto e o anterior e ler depois.
Assim fiz. Tenho que lhe dizer que o meu amigo, para além de ser um óptimo cronista, é sem margens para dúvidas, um acérrimo defensor de valores que perfilho, entre eles o valor indubitável raro da Liberdade.
Lerei atenta as suas crónicas e os seus poemas.
Deixo-lhe os votos de uma excelente semana.
Obrigada pela partilha, um abraço
Mel
Antonio,
Obrigada pelo comentário ternurento deixado lá no blog de Flavia, sobre a fotografia onde ela aparece comigo e meu outro filho. É sim querido Antonio, essas fotos onde ela aparece quase sempre sorrindo, eu as guardo como um tesouro pois que o sorriso, já não o vejo por quase 10 anos.
Sobre seu texto, como sempre bem escrito,precioso,INTENSO.
Um abraço forte.
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