7.02.2007

TROVOADA NA ALDEIA



No negrume da tarde, tornada repentinamente noite pelo espesso manto de nuvens que o vento arrastou por cima das montanhas, envolvendo as cristas dos cumes mais altos, um relâmpago fuzilou palidamente, por detrás da encosta sobranceira à aldeia.

Foi esse o primeiro sinal da trovoada, seguido um pouco depois pelo ribombar cavo de um trovão longínquo.

Dava a impressão que a tormenta vinha ainda longe e que nem passasse por cima da aldeia.

De repente, porém, o vento começou a soprar com mais força; o fuzilar dos relâmpagos tornou-se mais intenso e mais imediato e assustador o estrépito dos trovões. Se o trovão vem de Mós, ai de nós, diz-se na aldeia. Mós é uma pequena aldeia, situada a nordeste, lá para os lados de Carviçais. E o som destes trovões, por detrás da serra, era de lá que provinha.

As árvores começaram a ser sacudidas furiosamente, despindo-se das últimas folhas ressequidas, que esvoaçavam como bandos de pombos bravos perdidos na tormenta.

A chuva, que a princípio começara com uns pingos pesados e raros, aumentou subitamente de intensidade e de ritmo, até se tornar em cordas de água, compactas e ininterruptas.

As ruas inclinadas transformaram-se em autênticos riachos por onde corria impetuosa a água barrenta das encostas vizinhas, arrastando ramos de árvores, pedras, tábuas, palhas, bugalhos e mesmo, de longe em longe, alguma ratazana ou galinha colhida pela enxurrada.

Os garotos (os raparigos, como se diz na aldeia) esconderam-se por detrás dos vidros das janelas ou recolheram-se nas lojas, no quentinho das palhas, cantando intermináveis lengalengas para esconjurar a trovoada. Outros, mais afoitos, como eu fazia quando era pequeno, descalços e de calças arregaçadas corriam pela água barrenta, que para eles representava o mar nunca visto mas sempre sonhado.

Os burros zurraram inquietos no fundo das lojas, enquanto as galinhas em cacarejante algazarra corriam assustadas para os seus poleiros.

Velhinhas de cabelos brancos e negros xailes recitam em voz alta as suas orações contra a trovoada e os seus efeitos maléficos, interrompidas a cada passo por admoestações a alguns dos garotos que, indiferentes à chuva dão largas ao seu entusiasmo, encharcados até aos ossos.

Entretanto é noite cerrada. Calaram-se os ruídos da rua. Os burros aquietam-se nas lojas. O rapazio, exausto, dorme agora quentinho, a barriga empanturrada com transbordante malga de migas de centeio ou caldo verde e o coração cheio de sonhos ou de medos. Só as velhas continuam com as suas rezas e esconjuros: “Santa Bárbara bendita, que no céu estais escrita, com papel e água benta, livrai-nos desta tormenta e que o raio vá cair onde não haja eira nem beira, nem raminho de figueira, nem mulher parideira ...” e por aí fora, numa cantilena monocórdica e interminável.

Indiferente às rezas da mulheres, a tempestade atingiu agora o auge.
A cada descarga eléctrica que incendeia a negrura do céu, um ronco terrível e imediato se lhe segue, estremecendo os casebres em volta e ecoando nas quebradas dos montes, mesmo por cima da aldeia.

A chuva, cada vez mais intensa, fustiga furiosamente os vidros e postigos das janelas, canta monótona nas telhas velhas e musguentas, e cai em catadupas rumorejantes pelas goteiras.

Chegam até mim gemidos lamentosos das árvores açoitadas pelo vento que assobia por todas as frestas uma canção dolorosa e terrível.

Nas casas vizinhas já tudo se deitou. Só eu, que não estou habituado a deitar-me cedo, persisto em continuar acordado a ler o romance policial que trouxe da cidade. De repente, quando mais entusiasmado eu estava com as investigações do cínico detective Philipe Marlowe, um golpe de vento apaga-me a candeia, deixando-me mergulhado na mais completa escuridão.

Às apalpadelas, consegui despir-me e enfiar-me no meio dos lençóis. Lá fora, o temporal continua rijo e inclemente.

Por longo tempo permaneci acordado, aterrado com o fuzilar contínuo dos relâmpagos que, através das frinchas dos postigos, punham reflexos lívidos nos móveis e nas roupas penduradas, dando-lhes um aspecto de fantasmas infernais, dançando à minha volta um cancan diabólico, marcado a compasso pelo rugir medonho do trovão.

Aos poucos, porém, um doce torpor, proveniente do sono e do calor da cama, se foi apoderando de mim e acabei por adormecer profundamente, no conforto de uns inesquecíveis lençóis de linho caseiro, mau grado a dureza do colchão de palha centeia. Naquele tempo, não havia trovão que despertasse os meus sonos de adolescente descuidado.

28 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Meu bom amigo António, em 1º lugar, espero que esteja completamente restabelecido do problema de saúde que o afectava.
De seguida, por favor, jamais se sintas constrangido por não retribuir de imediato a visita que lhe faço. Claro que me sinto muito honrada de ter a visitar-me nas minhas modestas casinhas de poesia, pessoas como o António, com princípios e valores. Mas eu própria não tenho possibilidade de visitar, todas as semanas que seja, as casas dos amigos … vou quando posso e sempre que posso. Vou quando o coração me chama, sei lá …
Vim! Estou aqui.
Desta crónica: Uma vez mais me senti a deslizar para a minha infância, para o âmago das minhas próprias vivências… dos lençóis de linho na casa da minha bisavó Maria, na Quinta da Oliveirinha… os colchões de palha centeia (e a poeirada, amigo???) … as rezas a Stª Bárbara …
Por esta viagem, por dentro da tempestade, o meu imenso obrigada. Um abraço, um beijo, continuação de boa semana.

Mel
www.noitedemel.blogs.sapo.pt
www.maresiademel.blogs.sapo.pt

03 julho, 2007 10:13  
Blogger Bichodeconta said...

Aqui estou eu novamente António, deslumbrada com este texto que de repente me transportou para muitos anos atrás, ás minha infancia, á minha terra.. Escrver assim é um dom sagrado António.. E agora ? Sabe que não encontro mais aquele blog arrumadinho de que lhe falei e que queria visitar com mais tempo... Um abraço, claro que vou voltar António..

03 julho, 2007 19:06  
Anonymous Anónimo said...

Li ontem.. deu azo a uma conversa ao jantar em casa dos meus pais, quando lhes perguntei se as trovoadas de antigamente assustavam as pessoas. Acabamos a ouvir histórias hilariantes sobre os cagaços da malta perante esta força da natureza. Reunidos à volta da fogueira e à luz das velas punham-se a rezar o terço,soluçando as avé-marias em cada ribombar de um trovão. Ainda hoje mete respeito embora eu goste imenso de ver, acho a trovoada uma beleza, sobretudo quando apanhada numa bela fotografia. Mas com respeito, sempre com respeito, que o poder que está num raio é inacreditável..
Um abraço ao meu António preferido :)

03 julho, 2007 19:20  
Blogger LurdesMartins said...

António, não me canso de lhe dizer: lê-lo é maravilhosamente delicioso!
Tirando um ou outro pormenor, sim que eu sou uma rapariga bem mais nova e, felizmente, não sei o que é isso de colchas e colhões de palha, por exemplo, revi algumas trovoadas da minha infância...
É isto que a sua escrita tem de mágico, faz-nos, se não reviver, imaginar!

Beijinhos

03 julho, 2007 20:30  
Blogger foryou said...

António já achava bonitos os seus poemas mas... não pensei que me desse tanto prazer ler a sua prosa.

Vi no comentário ali em cima que esteve doente, desejo sinceramente que já se encontre bem e esteja realmente de volta a sua escrita.

03 julho, 2007 21:50  
Blogger Matvi. said...

Te he premiado como uno de los blogs que me hacen pensar. Lo verás si me devuelves la visita.
Un abrazo

03 julho, 2007 21:56  
Blogger Teresa David said...

A ilustração do texto deu-me cá uma vontade de pintar umas aguarelas com trovoadas!
Quanto ao texto direi que tb eu me lembrei quando houve o tremor de terra nos anos 60 que dormia a sono salto e por nada teria dado se a minha mãe não me tivesse acordado completamente histérica de medo, aos berros.
Hoje, até o manso caminhar do gato a entrar no meu quarto me acorda.
Diz-se que as mães ficam com o sono leve, eu fiquei!
Mas no que concerne ao post propriamente dito só posso dizer que o li com grande prazer.
Bjs
TD

03 julho, 2007 22:25  
Blogger Hainnish said...

António:

Mais uma vez uma bela viajem no tempo, a um Portugal que já não é o nosso, bem escrita e com um português belo e límpido. Gostei muito.
Um abraço, António, e as melhoras (também eu li nos comentários anteriores que andou adoentado).

03 julho, 2007 23:38  
Blogger Páginas Soltas said...

Querido amigo,

Espero que já esteja completamente restabelecido...porque sem as suas narrativas não posso passar!

Mais uma vez, transportou-me no tempo, em que vivi a minha infãncia e adolescência. Senti, o mesmo pavor, ouvi as rezas a Stª Bárbara e até ouvi o riso do meu irmão, por cada relâmpago que rasgava o céu!

E eu, amedrontada, acompanhava as pessoas que me rodeavam... naquela ladainha a Stª Bárbara!

Ainda hoje... eu sinto pavor das trovoadas!

Fico a meditar... naqueles tempos da minha infãncia...

Obrigada meu querido amigo.

Beijinhos da

Maria

04 julho, 2007 03:52  
Blogger Cris said...

Antes de mais, espero que a sua saúde esteja melhor. A sua escrita é sempre uma delicia, fez-me lembrar os meus tempos de menina, que ficava feita parva a olhar os circulos de trovadas secas, tão frequentes no alentejo, pelos menos há uns 30 anos atrás, e a minha bisavó, aflita, a querer que eu entrasse em casa.....

Mil beijinhos
C.

04 julho, 2007 09:45  
Blogger Paula Raposo said...

Excelente descrição da trovoada!! Muitos beijos.

04 julho, 2007 11:35  
Blogger LurdesMartins said...

Ó baaaalha-me Deus... isto de não se ler o que se escreve é o que dá! É claro que eu queria escrever colChões!!!!! A língua portuguesa pode ser tão traiçoeira...
Bem, serviu o engano para dar uma valente gargalhada!!

Beijinhos António

04 julho, 2007 14:28  
Blogger LurdesMartins said...

Ah, parece que esteve adoentado, foi?!?! Folgo em sabê-lo melhor!!! Cuide-se, ok?! Beijinhos

04 julho, 2007 14:30  
Anonymous Anónimo said...

este meu António querido do coração, deixa-me sempre assim..deliciada, tranquila e com um sabor campestre..
És tão bonito!..
..és o meu idolo..
..inda bem que não te vais na enchurrada,
inda bem que te encontrei,
nesta grande encruzilhada.
abraçããããããããããããããõooo!!!!!!

05 julho, 2007 17:08  
Blogger António Melenas said...

Eena, ena, a NENA voltou a dar um ara da sua graça. Que saudades já tinha. Sempre bem humorada. mas Amiga. Eu sei.
Obrigado, Amiga
Um abração

05 julho, 2007 20:41  
Blogger Bichodeconta said...

aQUI ESTOU EU RENDIDA MAIS UMA VEZ AO ENCANTO DAS SUAS PALAVRAS aNTÓNIO.. iSTO ESTÁ A TORNAR-SE UM CASO MUITO SÉRIO, ESTA PAIXÃO PELO QUE ESCREVE.. OBRIFADA PELA VISITA AO MEU MODESTO MAS ACOLHEDOR CANTINHO DO BICHODECONTA.. Hoje estou triste, como se um vendaval me anuncie uma tempestade.. Um abraço..e peço desculpa, eu sou uma nabiça, confundi blog com site...Coisas da idade.. um abraço...

05 julho, 2007 22:15  
Blogger António Melenas said...

O meu Amigo MATVI (Matias Vieira Guevara) teve a gentileza de me nomear par a menção "Blogues que que fazem pensar". Foi a 8ª que recebei. Procedi como em relação às anteriores, Educadamente agradeci, sem lhe dar qualquer sequência. Esta porém emocionou-me particularmente por vir de tão longe e de um país - O Chile - que tanto prezo

06 julho, 2007 14:29  
Blogger Rosa Brava said...

Ao ler-te, trouxeste-me memórias da minha infância e de uma célebre noite que, apesar de ser Verão (lembro-me do meu vestidinho de flores azuis, que estreei nesse dia) começou a chover durante a tarde, estragando o passeio que estávamos a dar, regressando a casa do meu Avô, em plena Serra, onde tínhamos ido passar uns dias. Um imenso trovão deitou a luz abaixo, mas o meu Avô estava prevenido e vai de acender candeeiros (creio que três) que deu uma luz difusa à sala e aos quartos. Acabámos por ir todos para a cama mais cedo e ficou um candeeiro aceso no corredor longe das mãos dos “meninos” (eu e dois dos meus primos). A meio da noite fui despertada por um tal barulho, que resolvi ir ao quarto dos meus Pais. Ia precisamente a atravessar o comprido corredor, quando um relâmpago o ilumina projectando uma imagem na parede, parecendo um homem enorme! Aos gritos de que estava lá um fantasma, alvoracei toda a casa e a família que vieram acudir-me e sossegar-me de que não era nada, era só o reflexo de uma imagem (que hoje guardo com carinhos) projectada na parede. Acabei na cama dos meus pais, entre os dois, muito agarradinha.
Os meus primos… não acordaram, nem de nada se aperceberam…o que levou a que durante muitos anos se dissesse: “Eles, nem que a casa viesse abaixo, acordariam”… tal a gritaria que eu fiz e eles não acordaram…

Foi bom recordar. Grata pela partilha

Beijinhos (espero que esteja já tudo bem contigo)

06 julho, 2007 14:41  
Blogger Matvi. said...

Magnífica descripción de la tormenta. Espero que estés mejor de salud. Y gracias por tus palabras. Para el pensamiento no hay distancias que valgan.

06 julho, 2007 16:01  
Blogger Bichodeconta said...

António nos meus 54 anos eu própria sabia todas essas orações que rezava com a avó quando era criança... Muito honestamente acho que nem uma nem outra sabia muito bem porque rezava.. Exactamente onde não haja eira nem beira nem raminho de figueira, nem vaca com bezerrinho, nem mulher com menino...Um abraço António..

06 julho, 2007 20:43  
Blogger Maria said...

Espero que estejas melhor, António.
Este teu texto fez-me sentir, de repente, o corpo a roçar os lençóis de linho caseiro, que até arranhavam....

Beijinho, António

07 julho, 2007 03:20  
Blogger Páginas Soltas said...

Passei para desejar um bom fim de semana.

Beijinho da

Maria

07 julho, 2007 04:31  
Anonymous Anónimo said...

Mais uma excelente narração de momentos vividos António. Eu vivo na cidade do Porto onde o ribombar dos trovões não são muito diferentes do que nas serras para o interior. Já estive debaixo de uma valente tempestade numa aldeia perto de Vila Real e, que me lembre, só o eco mais prolongado e a barulheira agoniante das árvores são diferentes, até assustador! É um prazer lê-lo António. Abraço.

07 julho, 2007 06:12  
Blogger LUIS MILHANO (Lumife) said...

Uma visita tardia mas que se impunha. Esticamos o tempo mas mesmo assim não dá para tudo o que desejamos.

Fiquei mais uma vez encantado com o que acabo de ler. Reviver tempos que nunca esquecemos.

Um abraço

07 julho, 2007 19:08  
Anonymous Anónimo said...

Caro António: sempre imenso o meu prazer em visitar o teu blogue, um hino de liberdade e criatividade que tanto estimo e aprecio. Um abraço e tudo de bom.

07 julho, 2007 22:26  
Blogger a d´almeida nunes said...

Tenho menos 20 e tal(?) anos a menos, na idade do tempo do homem vivo.
Este seu relato é um filme nítido das sensações que vivi também na aldeia do Casal, lá para os lados de Ribafeita,em Viseu.
Senti-me transportado a variadíssimos momentos de tempos idos. Parece que já se passaram Tempos imemoriais e, afinal, não foi há tanto tempo assim. Era importante que as gerações que já não passaram por esses momentos se lembrassem, de vez em quando, que a vida já foi muito diferente do que é hoje. E que nós sobrevivemos. Muitos de nós até conseguem ter belíssimas e imorredoiras recordações!
Um grande abraço, António Melenas
António

08 julho, 2007 11:17  
Blogger *Um Momento* said...

Espero que esteja restablecido , e melhor do mal que o atormenta
Como já lhe disse é maravilhoso vir ate aqui
Se não puder comentar não se preocupe com isso... digo-lhe de coração.
Com carinho lhe peço , que aproveite esses momentos em que lhe é permitido vir até aqui, e nos delicie com a sua escrita
Sei que está ai... em pensamento.
Do coração , as minhas sinceras melhoras, e virei aqui sempre...pois é um sitio onde me sinto extremamente bem
Um beijo , um sorriso... sentido:)
Bom Domingo (*)

08 julho, 2007 18:56  
Blogger Páginas Soltas said...

Querido amigo,

Tenho saudades de ler as tuas narrativas.

Deixo- te um beijinho com mt carinho..

Maria

09 julho, 2007 00:59  

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