DIANA - As minhas memórias

A princípio ninguém me chamava coisa nenhuma. Achei-me numa coisa redonda e fofa com mais quatro ou cinco coisas iguais a mim, tudo ao molho uns por cima dos outros, cada um procurando safar-se o melhor que podia.
Volta não volta vinha outra coisa, também muito parecida connosco, mas muito maior, que se deitava junto de nós e todos à uma lhe saltávamos para cima, abocanhando um dos pequenos penduricalhos que mais tarde vim a aprender que têm o nome de tetas, de onde saía um líquido quentinho que eu achava muito gostoso e que chupava até que não deitasse mais e a coisa grande se afastasse. O mesmo faziam os meus companheiros e de novo voltávamos todos para a tal coisa redonda, onde dormíamos, dormíamos.
À nossa volta moviam-se outras coisas grandes, muito altas, com duas patas apenas – esqueci-me de dizer que nós, os do cesto e a outra coisa grande que nos dava a chupar as tetas, tínhamos todos quatro patas. Em boa verdade estes, os de duas patas com que andavam pelo chão, tinham outras duas mais pequenas lá mais para cima. Era com estas que às vezes me pegavam para me reconduzir para junto dos outros, quando deles me afastava, caindo aqui e além, mais rebolando do que andado, pois a verdade é que as minhas patas ainda não me serviam de grande coisa por essa altura.
A das tetas lá vinha, volta não volta, deitar-se junto de nós e além de nos deixar chupar o tal líquido quentinho nos lambia, lambia e era tão gostoso.
Um dia, já eu estava maiorzinha e já não caminhava aos tombos, um dos tais de duas patas, pegou em mim com as duas patinhas de cima, meteu-me num cesto e levou-me para um lugar que eu nunca tinha visto. Nem imaginava sequer que houvesse outros diferentes daquele chão onde até então tinha permanecido.
Era um sítio muito grande, muito limpinho, nada parecido com aquele de onde vinha, sem palhas, nem coisas esquisitas espalhadas pelo chão, com as quais muitas vezes embatia, e me deixavam até meio zonzo. Senti-me um pouco envergonhada, confesso - era muito tímida nessa altura - com uma data de duas patas à minha volta. Reparei que havia alguns mais pequenos que outros. Todos me queriam agarrar, todos me faziam passar as patinhas de cima por cima do pelo, especialmente os tais menos grandes que corriam atrás de mim e me iam buscar em cada um dos muitos esconderijos para onde eu me escapulia. E depois eram aqueles olhos todos a olharem para mim… fiquei muito envergonhada, pronto, não há como negá-lo.
Bom, é tempo de começar a dizer que esta coisa de patas de cima e patas de baixo, são expressões que utilizei apenas para, com algum realismo, transmitir as minhas impressões iniciais, de quando não sabia sequer o que eu era, quem era e onde estava. Afinal hoje tenho mais do que idade para saber o nome exacto das coisas de que estou falando.
Eles, julgam que não. Acham que nós, por termos uma fala diferente da deles, não temos memória e não compreendemos o que eles dizem, mas nós compreendemos tudo e fixamos tudo muito bem. Eu diria mesmo que, como eles dizem, temos “uma memória de elefante”, se isso não fosse desprestigiante para os da nossa raça que, em questões de memória, não precisam de comparações com ninguém e muito menos com um trombudo desses.
Ainda bem que eles acham que nós não os entendemos. Se eles soubessem o que nós sabemos deles, os disparates que dizem, as asneiras que cometem, iriam ficar muito envergonhados.
Pois foi logo que cheguei a este novo sítio que alguém, pela primeira vez me chamou alguma coisa, isto é que me deu um nome. Soube então que me chamava “fofa”, pois durante os primeiros dias era só “fofa” para aqui, fofa para ali. Durou pouco, porém, esse tratamento. Possivelmente foi só até arranjarem outro que achassem, no entender deles, mais adequado, pois a partir de certa altura passaram a chamar-me “Diana”.
A princípio não percebi que era comigo. Mas tantas vezes gritaram essa palavra nas minhas orelhas, que eu compreendi que era esse o meu novo nome. Mesmo assim, durante uns dias fazia-me de lucas e só respondia ao chamamento quando muito bem me apetecia. A verdade é que eu gostava bem mais do nome “fofa”, mas eles lá sabem. Quem sou eu para opinar a tal respeito!
Aos poucos fui-me habitando a eles, às suas falas, aos seus hábitos e até lhes decorei os nomes. Os mais baixinhos, um chama-se Gui, outro Gil e o outro Lili. Depois há um de tamanho médio a quem chamam Rodrigo e há o Zé e a Gabi que são os donos. Sei isto porque, sobretudo estes últimos, a toda a hora me dão ordens: aqui! aqui!, vem ao dono!, vem à dona!, no chão! ao lado! senta! busca!
Havia um outro, de pelo branco e um cheiro muito esquisito, que mal se aguentava nas patas, sempre a tremelicar que se chamava senhor Fernandes. Vim saber que era pai da Gabi. Esse, pouco aparecia e nas poucas vezes que o fazia era só para me ralhar e correr comigo do sofá, onde eu gostava muito de me esparramar para dormir umas gostosas sonecas. Chegava mesmo a dar-me sorrateiros pontapés e chamar-me estupor do cão – o que nem sequer é verdade pois aprendi que sou uma menina (cadela, como eles dizem). A partir de certa altura este chato do senhor Fernandes desapareceu e todos choraram muito, que é uma coisa de fungar e deitar água pelos olhos – habilidade que nós nunca fazemos, não sei porquê.
Como é que eu soube que era uma cadela? Foi quando, certo dia, um tal Correia, amigo do Zé, que veio cá a casa (havia sempre gente que eu não conhecia a chegar e a partir) trouxe outro igual a mim, o qual começou logo a cheirar-me o rabo e com umas brincadeirinhas parvas, a que não achei graça nenhuma, diga-se de passagem. Vi então que ele, apesar de muito igual a mim, tinha algumas coisas que o diferenciavam. Foi aí, quando o estupor me cheirava como um desaustinado, que ouvi o Zé dizer olha, o teu cão já engraçou com a minha cadela Diana. Assim, de só uma penada, além de saber que eu era uma cadela fiquei a saber que o atrevido parecido comigo era um cão.
Pouco depois já o cão que se chamava Mozart e era tão novo quanto eu, me desafiava para a brincadeira e juntos saímos a correr pela quinta fora. Ah, é que, ainda não tinha dito, mas a casa dos meus donos fica dentro de um grande terreno, a que chamam quinta, com muitas árvores e muito mato que eu adorava esquadrinhar. Por ali andámos tempos esquecidos, feitos doidos, até que o Correia o chamou e lá se foram os dois.
O Gui, o Gil e a Lili eram uns chatos que só me queriam pegar, me puxavam as orelhas, e me cavalgavam como se eu fosse um outro animal que havia por lá chamado cavalo. Só que esse, que vou muitas vezes visitar, é um calmeirão muito grande, bom bicho, por sinal, enquanto eu era pequenina, na altura - e ficava derreada das cruzes. Certa vez, perdi a paciência e dei uma dentada na Gabi, que era a pior dos três. Foi uma dentadinha de nada, mas a miúda fez um escarcéu tal que me assustei e desatei a fugir, escondendo-me durante umas boas horas no meio de umas moitas num recanto da quinta.
Quando voltei, muito sorrateira, já estava tudo calmo. Mesmo assim o Zé ainda me deu umas palmadas e me passou um raspanete que muito envergonhada me deixou. A partir daí nunca mais voltei a morder quem quer que fosse, limitando-me a rosnar, arreganhar os dentes e a pôr um ar feroz, que não é nada do meu feitio – processo muito eficaz, concluí, para os pôr à distância, quando via que estavam a passar as marcas.
Entretanto fui crescendo, adquiri força nas patas, ganhei corpo e deixou de me fazer mossa o peso deles em cima de mim. Confesso que até gostava. Tornei-me mesmo uma bela cadela. Todos mo diziam e os da minha raça que apareciam cá por casa faziam questão de mo demonstrarem, através de uma marcação cerrada sempre que de mim se abeiravam. Eu, porém, fazia-me rogada e não lhes dava muita cúnfia. No entanto, eles não me largavam, sempre com aquela estuporada mania de me cheirarem o rabo. Aprendi depois que isso faz parte da nossa natureza e que era uma forma de me dizer que gostavam comigo e queriam acasalar comigo
Foi então que eu própria comecei a sentir umas coisas estranhas, uns calores esquisitos e a sentir necessidade de me aproximar de amigos cães. Sempre que me aproximava da rede que cercava a quinta, aparecia logo uma data de deles, do lado de fora, desafiando-me para lhes fazer companhia.
Na zona onde moro existe um parque de campismo. No fim do verão, quando os campistas acabam as suas férias e voltam para suas casas, os cãezinhos, que lhes deu muito jeito possuírem para os acompanharem nos seus passeios pelo campo e para lhes guardarem as tendas, esquecem-se deles e deixam-nos por ali, abandonados. É um dó de alma vê-los, magros, esgalgados, de olhos tristes, vagueando pelos campos, sós ou em verdadeiras matilhas. São muito cruéis às vezes os nossos donos! Não que eu tenha razão de queixa dos meus, mas não sei que pensar desses que tão mal procedem com os meus irmãos de raça.
Quem me contou tais mal feitorias foi um desses irmãos abandonados que com muita frequência vinha conversar comigo junto à rede. Um dia convenceu-me e, ele de lá e eu de cá, cavámos um abertura por baixo da rede, pela qual me esgueirei. O que eu me diverti nesse dia! Corremos seca e meca, metemos o nariz em tudo quanto era sítio, de alguns lados fomos escorraçados e às duas por três já havia quase uma dúzia de outros companheiros ao nosso lado, todos igualmente abandonados e vivendo apenas do que caçavam ou conseguiam pilhar nas casas e quintais da vizinhança.
A princípio, fiquei muito entusiasmada com tantos amigos para brincar, mas cedo descobri que a brincadeira que eles queriam era outra, pois todos, à ufa, me lambiam me cheiravam e todos, à vez, se me encavalitavam no lombo, prendendo-me, por trás com as patas da frente, A todos sacudia e arreganhava o dente, mas eles não desistiam. Até que chegou a vez do amigo que me desafiara para o passeio. Aí não resisti e confesso (até me sinto corar de falar nisso agora, que já não tenho idade para falar nessas coisas) que bem gostei quando senti aquela coisa vermelha e quentinha a entrar dentro de mim e, sobretudo, quando uma golfada morna me inundou por dentro, deixando-me com as patas a tremer, de tal forma que julguei que ia cair por terra, sem forças. O que é que o meu amigo iria pensar de mim...
Ali ficámos, tempos sem fim, saboreando aquela sensação doce e estranha, até que uns malvados de uns garotos apareceram e tentaram à força separar-nos. Não o tendo conseguido, foram buscar um balde de água fria que, inteirinho nos despejaram mesmo por cima do local do nosso ardor. Quando ele finalmente me deixou, ambos completamente encharcados, corri a meter-me em casa, numa humilhação que só visto.
O pior foi que, tempos depois, saíram da minha barriga, quatro cachorrinhos (é o nome que eles dão às nossas crias). Logo me veio à memória a lembrança da outra, a grande das tetas, onde eu chupava, e da qual me separaram sem que nunca mais voltasse a vê-la. A lembrança dessa cena fez-me reparar nas minhas próprias tetas, muito gordas nos últimos tempos e senti um imperiosa necessidade de também eu as oferecer aos meus cachorrinhos. Infelizmente não o pude fazer porque logo mos tiraram Não sei se morreram se desapareceram. Nunca percebi bem a diferença entre estas duas palavras. Ao longo da minha vida tenho-as ouvido tantas vezes mas nunca as soube distinguir. A primeira vez foi na altura do desaparecimento do senhor Fernandes, pai da Gabi
Pelas conversas que ouvi, a Gabi queria que um dos meus cachorrinhos não desaparecesse, mas o Zé disse que não, que eles não tinham pedigree, não sei quê, não sei quê e que não os queria para nada. E falando do Zé, devo esclarecer que muitas das pessoas que nos visitam, lhe chamam doutor Martins. Já a Maria, que é uma fêmea gorda que faz a limpeza e o comer para todos e que tem sempre um petisquinho guardado para mim, só lhe chama senhor doutor, o que me faz muita confusão, tanto nome para a mesma pessoa.
Ah, e antes que me esqueça, eles têm um papel onde se diz que o meu nome é Diana, que sou filha de um tal Ladina ( a das tetas, vejo agora) e que sou labrador puro. Sempre que vou ao veterinário (é o macho de duas patas vestido de branco que trata dos da minha raça) eles levam lá o papelinho e já ouvi vezes sem conta essa conversa.
O que eu não compreendo é que, certo dia, numa festa em que vieram cá muitos meninos e trouxeram muitos embrulhos para o Gui (só o que eu brinquei atrás daqueles papeis todos que ficaram pelo chão) ouvi falar que um desses meninos era filho de um rico labrador da região. Não sei se ouvi bem, pois ultimamente o meu ouvido ( e até o cheiro) já não são o que eram. Como é que pode ser um de duas patas ser filho de um quatro patas como eu? Ná, não fiquei convencida.
Outra coisa que muito me espanta é que mais do que uma vez têm aparecido por cá, em visita, pessoas a quem chamam Diana. Tal como a mim. Afinal, isto é nome de cão ou de gente?
Houve mesmo, era eu muito novinha ainda, uma certa ocasião em que, durante largos dias não se falava noutra coisa senão na morte (ou desaparecimento? cá está, nunca sei bem) de uma Diana que era gente, de certeza. E era tudo cá em casa de nariz no ar em frente daquela geringonça com muita luz e muito barulho a que chamam televisão. Eu não consigo ver lá nada de jeito para além de umas sombras sem qualquer sentido para mim. Esta gente das duas patas é muito complicada. Mistura tudo de uma tal maneira que, por vezes me deixa, eu que até nem sou parva, extremamente baralhada.
Voltei a ter mais filhotes muitas vezes, mas todos sem pedigree, concluo eu, pois todos foram desaparecendo. Uns, logo que saiam de dentro de mim ( que os“pari”, como eles dizem) e outros, um a um, ao fim de algum tempo, sobretudo nos dias em que havia visitas cá em casa. Um dia, um amigo do Zé apareceu com um cão da minha raça, um outro labrador, que deixou ficar junto de mim alguns dias, durante os quais nos encerraram dentro da cerca, onde se situa a minha casota. Claro que vi logo o que pretendiam de mim, pois por essa altura já eu era muito experimentada na prática de acasalar (assim chamam eles àquilo que nós fazemos e entre eles designam por fazer amor ou foder, como várias vezes tenho ouvido).
Esta última palavra, presumo que não seja muito bonita pois certo dia um dos filhos pequenos de um dos visitantes levou um porradão no focinho, mesmo à minha frente por ter dito que me tinha encontrado a foder com um cão da vizinhança. Coitado, fartou-se de chorar e quando acabou comentou com os outros que até tinha visto as estrelas - coisa em que não acreditei nem bocadinho pois estava um dia de sol e as estrelas só se vêem de noite. Seja como for, fiquei sempre na dúvida se era a palavra que eles achavam feia ou se era o que ele me tinha visto fazer - que eu não acho nada feio e que, além do mais, é muito agradável. A verdade é que depois disso muitas vezes ouvi os grandes dizerem esta palavra e eu acabei por concluir que o outro é que era simplesmente estúpido, digo eu.
Mas voltando à história de me encerrarem com o outro companheiro macho. Se era isso que esperavam, foi isso que tiveram. Mas não foi logo nos primeiros dias, não, que o meu parceiro não me pareceu muito chegado a tais andanças. Quando aconteceu, devo confessar que foi uma sensaboria. Nada que se parecesse com a performance do vadio e esfomeado parceiro da minha primeira vez. As saudades que eu tenho dele! Disseram-me alguns dos companheiros daquela aventura, com quem me encontro de tempos a tempos através do buraco sob a rede, que tenho o cuidado de disfarçar com ervas e folhas velhas) que ele foi morto à paulada, quando assaltava um galinheiro da vizinhança. Esse sim, era um valente.
Ainda por cima, quando nasceram as crias (eram quatro e lindas que eram!) e eu pensava que daquela vez é que mos iam deixar, qual quê? A todos levou o dono do cão, pois a Gabi –ouvi-lhe eu – já não tinha, por essa altura paciência para mais bichos lá em casa. Bichos, imaginem! E eu a julgar que era quase da família. Foi um desgosto para mim.
Já que falei em acasalamento, aqui para nós, vá lá uma coscuvilhicezita.. O Rodrigo, a certa altura passou a vir acompanhado de uma fêmea a quem chamavam a namorada. Muitas vezes os vi, de mãos dadas embrenharem-se na mata. Certo dia, em que eu farejava umas moitas à procura de um coelhito ou qualquer outra presa a que o meu instinto de caçador me compelia, ouvi uma restolhada, aproximei-me, pata-ante-pata e depararei com a namorada deitada nas ervas, em pelo, estendida de barriga para o ar e o Rodrigo, também em pelo, com uma coisa saída que não é muito diferente da dos nossos parceiros de acasalamento, só que não é encarnada, vá de deitar-se em cima dela e zuca que zuca para baixo e para cima, para baixo e para cima… Foi nesse dia que eu aprendi como é que os duas patas (os humanos que agora já sei dizer) acasalam.
Tempos mais tarde, porém, num dia em que houve lá uma grande festa, o mesmo em que, quando o sol se escondeu, o Rodrigo partiu com a namorada para ir morar com ela numa casa que não era a nossa, passeando eu pela mata, vi também duas pessoas da festa, um macho e uma fêmea atrás de uma moita, ambos em pêlo lambendo-se um ao outro – o que me deixou muito intrigada, porque julguei que isso fosse uma característica exclusiva do nosso acasalamento. Depois de muita lambidela, (eu própria estava a ficar excitada com a cena) vi a fêmea pôr-se a quatro patas, tal como nós, e o macho acasalar por trás, exactamente como nós fazemos. Afinal, chamem-lhe fazer amor ou foder, ou outros nomes que já tenho ouvido e agora não me ocorrem, o acasalamento deles, não é tão diferente assim. É, é mais variado e com mais guinchos e gritinhos. Lá isso é.
Mas no final das contas os duas Patas não são muito diferentes de nós. Quando se zangam, e zangam-se muitas vezes, não se mordem como nós mas andam à bulha e gritam e insultam-se. Mesmo o Zé e a Gabi. Já os vi alguma vezes gritarem um com o outro. Uma coisa que me faz muita impressão é ouvir que certo ou certa duas patas - já sei o nome de quase todos que vem cá a casa - é muito mau, que é um filho de puta (deve ser uma ofensa muito grande estou certa) e quando ele ou ela aparece vão todos dar-lhe beijos, que é assim uma coisa de encostar a boca no focinho uns dos outros, mas sem lamber. Isso fazia o Rodrigo com aquela que se chamava a namorada, mas não era no focinho, era mesmo na boca
A propósito do Rodrigo, esqueci-me de dizer que a namorada, que passou a chamar-se Mulher umas vezes e outras dona Esmeralda, pariu duas fêmeas. Uma delas, soube há dias que tinha morrido ou desaparecido. Talvez como as minhas crias. Fiquei triste com isso. O Carlos sempre foi muito bom comigo. Algumas vezes houve em que me levou à caça, uma coisa com que eu sempre sonhei e que uns cães da vizinhança me descreviam com grande entusiasmo. O que eu gostei, meu deus! (Esta de meu deus é uma expressão que eles dizem a toda a hora. Não sei bem o que quer dizer, mas deve ser bom, pois até quando acasalam dizem isso).
Mas pena, pena, tive eu quando o pequeno Gui desapareceu. A Gabi e mesmo o Zé, choraram, choraram (aquela coisa de deitar água pelos olhos, sabem?) Veio muita gente. Toda igual, toda de roupas pretas. E todos choraram. E vieram muitos carros e um muito grande, preto também. Foi aí que o pequeno Gui desapareceu. Agora O Gil e a Lili, desaparecem pouco depois de o sol nascer e só voltam quando já está fraquinho, quase a a esconder-se por trás das árvores, tal como sempre fez o Zé, que nesses dias se veste de senhor Martins e não quer que lhe faça festas nem lhe ponha as patas na roupa.
Ouvi até dizer que o Gil e a Lili também já têm namorados. Um dia destes vão também desaparecer de casa como o Rodrigo e eu nunca vou ficar a saber exactamente o que é e como é desaparecer.
Qualquer dia vou ficar só com ao Zé e a Gabi. Eles sempre me trataram bem, embora o Zé seja me faça menos festas do que a Gabi. Se isso acontecer vou sentir muita falta dos meninos e das suas brincadeiras. É mais uma saudade, daqueles tempos, porque com a minha idade já não me apetece brincar como dantes. Quando era muito pequeno, às vezes , como já referi, nem sempre apreciava as suas brincadeiras, mas com o tempo passei a gostar de brincar com eles e ficámos muito amigos. O que nós nos divertíamos!
Agora, desde que estamos só os três já me deixam passar quase todo o dia dentro de casa junto do lume. Mal me mexo, perco o pelo, volta não volta lá me levam ao homem da bata branca, que me dá umas picadas no lombo ou na barriga e me obriga a engolir umas bolinhas brancas, muito mal gostosas. Passo os dias a dormir e já nem furo a rede em busca dos meus companheiros.
Estou agora deitada ao pé do lume. O Zé e a Gabi estão em frente de mim a olharem para a tal caixa com muita luz e muito barulho. De vez em quando olham para mim com um ar estranho, como se esperassem por qualquer coisa ou por alguém. Nunca os vi olhar para mim desta maneira. Parece-me um olhar triste, se é que um cão pode saber avaliar o que isso seja. Abano-lhes o rabo e eles sorriem
Há dias vi o Zé e o da bata branca a cochicharem, que tal e tal, que eu vou a caminho dos 13 anos, que um dia destes não sei quê….Não sei que caminho é esse, mas pressinto que não vai dar a nenhum lado que eu goste. Já vi passar muitos sóis, muitas chuvas, muitos dias, muitas noites e agora sinto uma grande canseira, dentro de mim e uma grande fraqueza nas pernas. Tenho a impressão que é assim que se desaparece. Quem sabe se no tal caminho não vou encontrar todos os cachorrinhos que pari …tantos, tantos….
Confesso que tenho sido feliz nesta casa. Tratam-me bem, como quanto me apetece sem andar a fossar nos quintais e ser corrida à paulada pelos donos e quinteiros, mas fica-me um desgosto. O meu instinto é ser caçadora, correr montes e vales atrás das presas, cheirar o mato selvagem, furar por entre tojos e giestas, nadar nos rios e fundões, mas só duas ou três vezes o Rodrigo me levou. Agora é tarde, que já não tenho forças para isso, mas muitas vezes senti vontade de abalar... ir correr mundo.
Mas.. não sei o que é isto, mal consigo abrir os olhos, mal distingo a Gabi e o Zé … Parece que de repente ficaram muito longe, sinto-os a desaparecer, a desaparecer… hum, que bem se está aqui ao pé do lume…….
26 de Fevereiro de 2007
Diana