9.04.2006

A RAINHA DE SABÁ

foto: desenho a carvão de minha autoria.
Teria na altura uns 17 anos

Ela entrou como se fosse a rainha de Sabá. É evidente que não faço a mínima ideia de como seria e que formas teria essa tal rainha que, diz a bíblia, terá vindo, de terras longínquas, visitar e seduzir o poderoso e sábio rei Salomão. Mas, na minha imaginação, ela teria um aspecto que não andaria longe da figura que acabava de entrar: fria, altiva, elegante, formas opulentas, busto farto, bem proporcionado, cabelo preto bem tratado, saia preta, blusa preta de seda com um laço preto, sapatos de salto alto, pretos, e meias pretas rendadas que, mais do que para esconder, se destinavam inequivocamente a evidenciar, através do caprichoso desenho da renda, a perfeição das pernas altas e bem torneadas. Tudo nela era preto ou escuro: desde o vestuário à cor morena da pele, das bem desenhadas sobrancelhas, aos cílios longos e sedosos, dos olhos amendoados, ao blush das pálpebras, até ao fino traço com que acentuava a saliência dos lábios, carnudos e sensuais.

O café estava praticamente vazio, mas ela passou indiferente por entre as filas de mesas e foi sentar-se ao fundo, junto da larga vidraça, precisamente em frente de mim a duas ou três mesas de distância. Achei estranho, claro.

Talvez fosse porque naquele sítio houvesse mais claridade. Eu próprio o escolhera precisamente por isso, para me facilitar a leitura do livro que levava. Para os Cafés levo sempre um livro ou um jornal e escolho sempre os lugares de maior claridade, Ainda hoje, como então, sei de cor os cafés com melhores condições de luz nas áreas que frequento.

Ao sentar-se, traçou negligentemente as pernas sem sequer cuidar de evitar mostrar a cuequinha rendada, curiosamente vermelha, destoando de forma ostensiva do preto exclusivo do seu restante trajar. Era como se fosse uma negaça, um isco, um chamariz destinado a atrair uma eventual vítima indefesa.

Se era essa a intenção bem o conseguiu, pois eu não conseguia retirar os olhos daquela provocação vermelha ao fundo de umas coxas de enlouquecer, no prolongamento de umas pernas monumentais que pareciam não ter fim,

Durante alguns instantes ela permaneceu imóvel, de olhos semicerrados, alheia a tudo o que a cercava, como se mais ninguém existisse, naquele Café – talvez para que eu me sentisse à vontade, olhando-a sem constrangimento. Pediu depois um café, puxou de um cigarro longo de ponta dourada que acendeu com um isqueiro de estilo requintado, que conservou, acariciando, numa das mãos, enquanto, com os lábios estendidos em forma de beijo, se entretinha a soltar pequenas argolas de fumo que lentamente subiam, se alargavam e se desfaziam no ar.

Foi aí, no intervalo de uma dessas volutas de fumo, que se dignou olhar-me, precisamente numa altura em que, descansado com a sua aparente indiferença a tudo o que a cercava, eu me tinha atrevido a olhar, sem disfarce e já em ponto de rebuçado, a encantatória cuequinha vermelha.

Apanhado em flagrante, ruborizei e desviei o olhar de uma forma desajeitada e comprometida - pois me tinham ensinado que não era de bom tom um cavalheiro fitar uma senhora de forma insistente. Fingi, para disfarçar, mergulhar na leitura do livro que, inerme, permanecia aberto em cima da mesa. Largo tempo fiquei assim simulando uma leitura inexistente mas sem ver sequer uma letra à minha frente, tão perturbado estava, e com a sensação nítida de que ela não mais desviara os olhos de mim à espera de captar de novo o meu olhar e com isso me embaraçar. Assim foi. Mal ousei erguer os olhos, lá estava ela, com um sorriso malicioso, fixando em mim aqueles olhos enormes que pareciam encher a sala inteira.

Voltei ao livro que não lia e, sem a olhar, comecei a reconstituir mentalmente os traços e as formas que tivera ocasião de apreciar. E no meu imaginário não era ela que estava ali era alguém que, além de me parecer a rainha de Sabá, constituia um misto de Ava Gardner e Edy Lamarr, dois dos meus ídolos morenos de Hollywod, nesse tempo. E então ganhei coragem. Se ela era uma diva do cinema também eu podia ser um dos seus galãs. Porque não o Clark Gable, o Gary Cooper ou Charles Boyer? Ergui os olhos mas a minha coragem logo se desvaneceu quando vi que ela continuava a fitar-me com um sorriso meio divertido. Consegui finalmente controlar-me e enfrentar o seu olhar, que ela fazia agora questão de apresentar receptivo e cheio de promessas.

Era óbvio que ela me estava a galar e queria conversa, pelo menos, Só que eu não sabia o que fazer com um avião daqueles, tanto mais que era absolutamente inexperiente no que diz respeito a mulheres, para além do que conhecia dos filmes e dos romances. Levanto-me e vou ter com ela? Como proceder? Será uma prostituta? Ná, não ia fazer a minha estreia com uma mercenária. Horrorizava essa ideia. E se não fosse? À falta de uma resposta às minhas dúvidas permaneci quedo e mudo no meu lugar, muito embora já conseguisse enfrentar-lhe o olhar que parecia agora convidativo mesmo.

Como eu não me mexesse, ela chamou o empregado de mesa, pagou, dirigiu-se para a saída, altiva, tal como entrara. Porém, ao chegar à porta e imediatamente antes de a transpor, voltou a cabeça e fez-me um inequívoco – diria mesmo imperioso - aceno para que a seguisse. Sim, mais do que um convite, assemelhava-se muito a uma ordem.

E eu, como que hipnotizado, obedeci. Comecei a segui-la, tendo o cuidado de manter uma certa distância. Não era longe a casa dela. Era uma ampla e bonita moradia numa correnteza de outras de idêntico aspecto e altura. Meteu a chave à porta e só voltou a cabeça antes de entrar, para se assegurar de que eu a tinha seguido. Quando me aproximei, constatei que a porta estava apenas encostada. Meio receoso, transpu-la, fechei-a e comecei, lentamente e com o coração acelerado, a subir a dúzia e meia de degraus que levavam ao piso superior, onde se encontrava uma porta também entreaberta.

Franqueei-a, depois de meter a cabeça a espreitar. Ela esperava-me. Sabia que vinhas, disse. Pegou-me na mão e conduziu-me ao quarto, todo alcatifado, onde, destacando-se de outros móveis, todos de bom gosto, cadeiras e cómoda em mogno e dois maples forrados de tecido vermelho, avultava a cama – uma cama enorme, revestida também com uma colcha vermelha, que mais parecia uma arena para performances amorosas do que um simples leito para passar as horas de sono.

Pediu-me para esperar, que já voltava. Olhei em volta, mirei tudo cuidadosamente e o que mais me chamou a atenção foi o retrato de um homem, bastante jovem, numa moldura sobre a cómoda, em frente da cama. Que diabo, pensei. Quem será este gajo? Será que fui atraído a uma cilada? O homem, ao contrário dela, era alourado, talvez mesmo um pouco ruivo, boa figura, com umas grandes patilhas, nariz bem implantado, olhar penetrante, boca bem desenhada. Não sei porquê imaginei-o artista de circo, trapezista ou por aí. Entretanto a rainha de Sabá voltou. Vestia agora um neligé vaporoso, vermelho também. que mais mostrava do que escondia do seu corpo esplendoroso. Trazia duas taças na mão, tendo-me estendido uma sem sequer me perguntar se eu bebia ou se me apetecia. Eu não bebia mas aceitei. Recusar era mais complicado para mim, dado o nervosismo em que me encontrava. Julgo que seria champanhe, pela espuma e pelos piquinhos no céu da boca. Bebi feito tonto. Poderia muito bem ser uma mistela, mas eu estava positivamente seduzido pelo requinte do tratamento que me estava a ser dispensado.

Poisadas as taças, abraçou-me e foi-me empurrando com o corpo para a cama. Ali chegado, empurrou-me com as mãos fazendo-me cair de costas e começou lentamente a despir-me, olhando-me no fim com um olhar inexpressivo que me deixou sem saber se gostava ou não do que via. Comecei a ficar incomodado e sem jeito, perante a despudorada inspecção. É que se ela era a rainha de Sabá eu estava bem longe de ter a sabedoria e a experiência do rei Salomão.

Só depois se despiu, limitando-se para isso a deixar cair o negligé com um gesto displicente e que me pareceu mesmo algo entediado. Antes de saltar para cima de mim, porque foi isso que ela literalmente fez, voltou-se para trás e murmurou: desculpa, Rodrigo. Confesso que fiquei estupefacto e algo intrigado. Seria que a mulher era uma bruxa e que eu estava sendo objecto de um qualquer feitiço?

Perguntei então timidamente: Rodrigo? como é que a senhora sabe o meu nome? Ela pareceu tão espantada como eu. Tu chamas-te Rodrigo? Pelo vistos é uma agradável coincidência. Rodrigo é o meu marido. Aí, fiquei sem pinga de sangue: - Mas o seu marido está aqui? - Não, tolo, o meu marido é aquele do retrato em cima da cómoda, que eu bem te vi a olhar para ele. - E se ele aparece? - Não aparece, foi de viagem. - E quando volta? - Não volta. Da viagem que ele empreendeu, faz hoje três meses, ninguém volta. Fiquei gelado. O que ela pretendia de mim, pensei eu, já não vai levar. Só que ela tinha uma sabedoria e uma técnica capazes de ressuscitar um morto. E eu, senhores, tinha apenas 18 imberbes, inexperientes mas fogosas primaveras. Como por artes mágicas, aí estava, de novo, pronto a funcionar. E ela aproveitou bem. Não vos vou descrever tintim-por-tintim o que se passou. Se querem excitar-se leiam o Kama-Sutra ou os Jardins do Paraíso, ou os Segredos de Alcova ou outra obra do género. Só vos digo que me comeu de toda a maneira, posição e feitio. Só nunca me deixou, afastando-me suavemente com a mão, beijá-la na boca. Seria certamente uma promessa feita ao Rodtigo.

Quando a acabou, vestiu o negligé, virou-se para o retrato, fez uma vénia como se estivesse diante de um santo e pronunciou com um ar de pessoa consolada, Obrigada, Rodrigo. Perante o meu espanto, tive a ilusão que o homem do retrato sorriu com um ar feliz, mas quando eu, completamente desvairado com tudo o que via e ouvia, voltei a fixar o retrato para me certificar de que tinha sido uma ilusão, a minha imaginação já febril, certamente, levou-me a ver o sorriso que o homem tinha dirigido à mulher transformar-se num esgar de ódio e num olhar torvo que me eram, um e outro, obviamente endereçados.

Vesti-me à pressa e desajeitadamente. Ela deu-me então um beijo na face e ciciou-me ao ouvido. Agora vai e esquece-te de que alguma vez tenhas estado aqui.

Saí sem uma palavra.

Quando cheguei a casa, ia pálido como a morte, no dizer de minha mãe. Não quis jantar - o que mais ainda a preocupou, pois sofria por esses anos de um fastio devorador, e fui de imediato para a cama, com a sensação de arder em febre. Passei a noite num sono intermitente e agitado, parecendo-me ver no negrume do quarto os olhos torvos e o riso malévolo do tal Rodrigo do retrato. E assim andei uns dias meio esquisito, a ponto de minha mãe por força me querer levar a um médico. Por fim tudo passou. Era uma idade com uma grande capacidade de recuperação e eu não fugia à regra.

Durante anos e anos, nunca passei na rua onde tão insólito encontro me aconteceu e quando muito mais tarde tive a oportunidade e a coragem de ali passar já a bonita moradia e toda a correnteza adjacente tinha sido substituída por imóveis de cinco pisos, vulgaríssimos e inestéticos. Que terá sido feito da dama e do retrato do olhar torvo? Não sei, nem estou interessado, mas, pela idade que tinha na altura, a Rainha do Sabá certamente que já foi fazer companhia ao seu querido marido de que eu, durante cerca de uma hora fui substituto inesperado e involuntário.

12 Comments:

Blogger RD said...

Oh senhor António Melenas... que maravilha, que maravilha. Digno de um filme com Omar Sharif e Sophia Lauren (aliás, foram as figuras que me ocorreram à mente)!

Espero que o Luiz leia isto um dia!

Obrigado e um Abraço!
Diniz

05 setembro, 2006 09:15  
Blogger Ricardo Pereira said...

Ai avô António... se tu falas da sensualidade da minha escrita então que dizer deste teu ultimo post, simplesmente genial e delicioso... cada palavra, cada descrição e cada situação que me chegaram a colocar o coração aos saltos tal como o teu estava. cada vez mais gosto de ler os teus posts e sou deslumbrado pela tua escrita clara e objectiva-subjectiva. Um grande abraço vô.

06 setembro, 2006 17:12  
Anonymous Anónimo said...

É Tó sim senhor, grande aventura...

Imagino a sensação de um encontro como esse e adorei a forma como descreveste toda a situação.

Estou com o Diniz, espero que um dia o Luis leia isto!!!

Bjs e grande abraço
Vasco

06 setembro, 2006 22:23  
Blogger Ricardo Pereira said...

Muito melhor este desenho da tua autoria (que está optimo) do que a foto pequenininha que tinhas aqui em primeiro lugar. sem dúvida que tem muito mais relação com o texto. xaxau Vô António.

07 setembro, 2006 17:11  
Anonymous Anónimo said...

Quem deras pudesse eu ter uma "Rainha de Sabá" na minha vida. Como não tenho, pelo menos por enquanto, fico com este emocionante texto.
Interessante como ele prende a nossa atenção e nos enche de expectativas.
Victor Hugo (Brasil)

10 setembro, 2006 19:00  
Anonymous Anónimo said...

Quem deras pudesse eu ter uma "Rainha de Sabá" na minha vida. Como não tenho, pelo menos por enquanto, fico com este emocionante texto.
Interessante como ele prende a nossa atenção e nos enche de expectativas.
Victor Hugo (Brasil)

10 setembro, 2006 19:00  
Blogger Menina Marota said...

Ai...mas olha-me que ele era bem corajoso! Se fosse hoje, se calhar não fazias isso, seguir a morenaça até casa! Com os ladrões que andam para aí, ainda te raptavam!
Excelente o texto! Consegui mesmo imaginar a cena...eheheh

Mas olha, quanto à Rainha do Sabá o meu Avô era um doido pelas histórias dela! Filme que estivesse em Lisboa que falasse dela, lá ia ele... e, eu fui com ele algumas vezes, ver filmes de que nem sei o título... era tão pequena! As matinés de sábado, eram uma perdição para ele...

Gostei muito de te ler. Parabéns pelo texto.
Um abraço e boa semana ;)

12 setembro, 2006 14:47  
Blogger Poesia Portuguesa said...

Está soberbo este texto. Gostei muito de o ler.
Um abraço e boa semana ;)

12 setembro, 2006 14:48  
Blogger ROADRUNNER said...

Mais um texto fabuloso, caro António! Quanto ao desenho está muito bom, nota-se que o meu amigo tinha engenho para a pintura. Continuou a pintar? Saudações!

13 setembro, 2006 22:17  
Blogger Cantar ao Sol e à Lua said...

Depois do mail pessoal, fica aqui somente os vestígios de um sentir, para alguém especial...

13 setembro, 2006 22:46  
Blogger sofialisboa said...

como gosto da tua escrita, dos teus contares, das tuas aventuras, volto sempre...obrigada pelas palavras ternas sofialisboa

15 setembro, 2006 14:34  
Blogger Amita said...

Como escreves bem, amigo António! Esta "estória" de vida prendeu o meu olhar num único sopro, intercalado, aqui e ali, por um sorriso que o teu leve e sábio humor criou.
Agradeço-te a ternura das palavras que sobre meu canto espalhaste.
Com carinho te deixo um abraço

15 setembro, 2006 18:05  

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