10.06.2007

O TITO LÍVIO


O Júlio Barragán é um amigo que, apesar de alguns anos mais novo do que eu, conheceu também a realidade do Moscavide do meu tempo, pois ali passou a sua meninice e ali viveu até ao final dos anos cinquenta.

De quando em vez escreve-me com achegas de alguns pormenores não referidos nas minhas crónicas sobre Moscavide antigo.

No email que agora me escreve e a seguir transcrevo, lembra-me que na rubrica “Figuras de Moscavide Antigo” me esqueci de mencionar o nome de um tal Tito Lívio, figura então tristemente conhecida na localidade e hoje totalmente esquecida.

Amigo Gouveia:

Ao percorrer mais uma vez a sua página e recordando alguns nomes lá expressos, veio-me à lembrança um muito conhecido e que aqui não encontrei. Você vai lembrar-se dele quando lhe disser o nome, - Tito Lívio mais conhecido por Tito e que era uma figura falada por toda a gente que o conhecia. Não direi o motivo, por óbvio, mas tinha outras características. Quando nós garotos, nos metíamos com ele, logo nos ameaçava dizendo que era da União Nacional. Recordo que numa ocasião em que estava pendurado numa escada encostada à parede do prédio em que o seu irmão, José Gouveia tinha a livraria, eu o invectivei por estar a colar cartazes do Carmona. Disse-lhe: Não tens vergonha ? Imediatamente desceu, puxou da carteira e mostrou-me um cartão com duas listas vermelha e verde e encimado pelas letras da União Nacional. Ameaçou-me que tivesse juízo porque senão já sabia o que ia acontecer. Estou a escrever e estou a ver tudo como se fosse hoje. Curioso, não é ? como a nossa memória é incrível. Dizia-se na época muita coisa dele e até lhe fizeram algumas coisas inadmissíveis. Esta é mais uma nota para o seu reportório de estórias.
Um abraço

Barragán

_______________________________

E daí nasceu esta crónica :

Sim, lembro-me perfeitamente do Tito Lívio: Foi meu companheiro na escola primária. Era um puto meio “destravado”, como nós dizíamos ou “marado”, como se diz agora.A garotada da escola gostava às vezes de brincar às personagens históricas e ele tinha preferências por encarnar sempre, não sei porquê, a figura de Egas Moniz, e era por este nome que nós o tratávamos. Havia outro aluno – O Abreu, também meio desatentuado - a quem chamávamos D. Afonso II, por ser do tipo peidagadocha, isto é um gorducho mal amanhado, como o gordo rei da nossa primeira dinastia. Mais tarde haveria, por sinal, de se tornar um moço muito alto e magro e perder um braço ao descer de um comboio em andamento. Destravado, como sempre.

Pois o Egas Moniz e o D. Afonso II, sentiam uma embirração mútua um pelo outro, que os levava a engalfinharem-se a toda a hora, quer no recreio da escola, quer fora dela, sempre que se encontravam. Na escola, as brigas não duravam tanto, pois o professor Clarinha de pronto lhes acalmava os ânimos mediante uma bem equilibrada dose de palmatoadas que não deixavam nenhum a rir-se do outro. O pior era cá fora, pois aí elas se transformavam em intermináveis correrias, ora dás tu, ora dou eu, perante o gáudio dos circunstantes que, em vez de os apartarem, maldosamente os incitavam a intensificar a briga em que cegamente se envolviam. Não se tratava de uma verdadeira luta pois eram ambos suficientemente desastrados para tanto. Era antes uma rinha de galos que se arrepelavam, se arranhavam e se rebolavam no chão poeirento das ruas então ainda não alcatroadas, de onde um se levantava e o outro o perseguia para se pegarem mais adiante.


Acabada a instrução primária, eu fui para o Seminário e só voltei a ver o Tito em 1947, quando de lá saí, por volta dos 18 anos ou, quando muito, esporadicamente durante as férias. Quanto ao Afonso II, só o tornei a ver já sem o braço, manga vazia enfiada no bolso do casaco, alto, magro, bigodinho à Clark Gable (dado que este nome não dirá nada aos mais novos, adianto que era um galã de Hollywood, intérprete de dezenas de filmes, por exemplo “E tudo o vento levou”). Negociava agora em livros usados. Encarreguei-o de vender pelo melhor preço uma obra bastante valiosa que possuía. Nunca mais lhe pus os olhos em cima, tal como não vi dinheiro algum que compensasse o prejuízo da perda. Vezes sem conta insisti com ele para me devolver o livro ou o produto da venda. Dizia-me que sim mas que também, e ia sucessivamente adiando a data de prestação de contas até que ele próprio desapareceu da minha vista, e do meu pensamento, até hoje, que aqui o evoco, a propósito do Egas Moniz que se chamava Tito Lívio. Era fresco este D. Afonso Segundo!

Voltando ao Tito. Pertencia a uma família da classe média muito equilibrada, muito respeitada no Moscavide de então. O pai era militar de carreira, tinha duas irmãs muito recatadas e morava no último piso de um prédio de dois andares, muito interessante, pois a passagem do primeiro piso para o segundo se fazia por uma escada exterior, de ferro, tão ao gosto da época. Bem gostaria eu de possuir fotos dessa construção e de outras muito interessantes que havia lá na terra. Situava-se na esquina da Avenida de Moscavide com a rua que hoje se chama 25 de Abril, sobressaindo de uma correnteza de casas baixinhas que o ladeavam nos dois lados do ângulo recto, de que ele era o vértice, formado pelo cruzamento das duas ruas. Em frente ficava o velho casarão do cinema, onde hoje se ergue a igreja paroquial. Claro que esse prédio há muito foi substituído por outro que em nada se distingue dos incaracterísticos irmãos gémeos que o rodeiam.


Quando voltei a encontrá-lo, por volta dos dezoito anos, como atrás referi (meus e dele, pois éramos da mesma idade) era um moço mais para o baixo que para o alto, franzinote e o mesmo ar desengonçado que tinha em garoto. Não me lembro se chegou a concluir a instrução primária (quatro anos, nessa altura) mas se concluiu deve ter-se ficado por ali, pois nunca lhe conheci um emprego razoável – o que seria natural se tivesse mais habilitações, sobretudo tendo como pai um militar de carreira – vantagem nada despiciente na época.


Ao cruzarmo-nos na rua, o nosso cumprimento (o primeiro que se lembrasse de o fazer) era sempre, “destas favas nem em Paris, Melchior amigo” – frase com que o deslumbrado Jacinto de “A Cidade e as Serras” , se atirava à rescendente pratada de favas ,no seu regresso de Paris à pacata Tormes da sua infância no Douro. Reminiscências do nosso tempo de escola e do professor Clarinha que muito cuidava da nossa iniciação no apreço pela prosa dos nossos vernáculos escritores. E sem mais palavras seguia cada um o seu caminho.


Aos poucos, porém fomos deixando de nos falar. Ele sabia que eu não apreciava o governo de Salazar e ele, que entretanto tinha aderido à União Nacional, passou a evitar-me e raramente nos víamos. Lá aparecia de tempos a tempos - sobretudo em época das fingidas campanhas eleitorais que, de longe em longe, o Estado Novo se via obrigado a tolerar para estrangeiro ver - a colar cartazes de propaganda do governo, ou fazendo parte de um grupo de legionários ou arruaceiros contratados, a rasgar os cartazes da oposição ou a sabotar e fazer provocações nas raras sessões que esta conseguia organizar. A mim, pessoalmente nunca me provocou. Evitava-me simplesmente e eu a ele.


Tirando estes trabalhos , pelos quais receberia, julgo, alguns tostões, nunca lhe conheci emprego certo. Durante algum tempo terá exercido a profissão de varredor por conta da junta de freguesia, mas foi sol de pouca dura. Penso que depois disso, pelo modo de vestir, trabalharia ocasionalmente como servente de pedreiro ou coisa do género e lá ia vivendo, provavelmente com o que as irmãs lhe davam, após o falecimento do pai. A sua desgraça maior foi outra. É que o pobre do Tito tinha um defeito que a sociedade de então não perdoava: era homossexual. Quanta desgraça junta para um homem só! Adepto de práticas sexuais que a moral vigente abominava, bufo e defensor de um regime que a população detestava e pobre ainda por cima (sim, porque rico sempre arranja dinheiro para comprar discretamente os serviços que a satisfação das suas necessidades sexuais exige) reunia em si um conjunto de factores negativos que só podiam levar a uma situação dramática, nesse tempo de repressão, obscurantismo e intolerância. Para o Tito e para quantos tivessem a infelicidade (infelicidade, digo bem) de, não tendo dinheiro, terem tendências sexuais consideradas desviantes .É que, se por lado era perigoso revelá-las, por outro lado não podiam deixar de o fazer - de forma atabalhoada quase sempre - para o estabelecimento de contactos que permitissem a satisfação das necessidades que a sua natureza lhes impunha.

A vida do Tito virou um inferno. A sua aproximação aos contactos que lhe podiam interessar do ponto de vista dos seus mal-vistos impulsos situava-se, fatalmente, a um nível que nada tinha a ver com a sua educação de infância e com o estrato social a que pertencia. Os seus parceiros passaram a ser gente desqualificada, sem escrúpulos, de baixo nível moral e social, que dele se serviam mas que odiavam. Além do mais o Tito começou a beber e andava sempre bêbedo e vestido de forma descuidada, sujo mesmo. Todos o usavam, todos lhe batiam, todos o humilhavam. Contra ele se praticaram as maiores sevícias, chegando ao ponto, diz-se, de lhe enfiarem um rabo de porco pelo recto. Até que um dia apareceu morto, moído de pancada. Não se sabe se da última sova se resultado das inúmeras sovas e maus tratos com que constantemente era mimoseado. Ninguém se importou. Ninguém quis saber. Era apenas o Tito

Pobre Tito Lívio! A esta distância, não sou capaz de pensar nele sem uma imensa piedade, pelo menino que foi meu companheiro de escola e que teve uma vida tão desgraçada e um fim tão trágico .

Nunca fiz qualquer alusão a seu respeito. Se não o incluí na lista da “figuras” de Moscavide, não foi por que não me lembrasse dele. A omissão foi propositada. É que o Tito não foi figura preponderante, não foi um benemérito, não foi comerciante, não foi um conhecido proprietário, não foi um herói, não praticou nenhum acto digno de louvor, não foi um boémio engraçado, não foi uma figura “gira” de Moscavide dos meus tempos. O Tito foi simplesmente um infeliz e achei que a infelicidade não havia interesse em expô-la.


A carta deste meu amigo, recordando-me esta vida esquecida, fez-me, contudo, reflectir e mudar a minha maneira de pensar. É que o Tito, infelizmente não pelas melhores razões, foi uma “figura” local por volta dos anos cinquenta. Uns o ignoraram, uns o desprezaram, uns o usaram, uns o maltrataram, mas todos em Moscavide o conheciam...Foi, pois, uma “figura” que não posso ignorar na lista de figuras que elaborei. E acho que pode ser pedagógico recordar de forma crítica como funcionava a sociedade falsamente moralista dos tempos do “Deus Pátria e Família”. Convém até recordar o mal que se fez no passado, para que a repulsa da evocação de factos tão tristes como este, leve as pessoas a tomar consciência de que ninguém tem o direito de interferir na vida e nas opções de cada um. É que a intolerância pode mesmo levar ao crime.


Felizmente a mentalidade de hoje começa a mudar, mas que longo caminho ainda a percorrer! Basta recordar o sucedido na cidade do Porto com o travesti brasileiro, Gisberta, assassinado com requintes de crueldade por um grupo de adolescentes.

__________________

PS: Quando digo que o Tito era homosexual, estou a usar a linguagem actual, que aliás acho correcta. No entanto, em relação ao espírito da época que nesta estória evoco, tal designação não é minimamente rigorosa. Com efeito e para que conste, nunca, nem uma só vez, ouvi chamar homosexual ao Tito, mas sim e sempre, paneleiro, em frases como “0lha ali vai o paneleiro do Tito”.
Naquele tempo, os epítetos usados para designar o homosexual eram paneleiro, panasca, rabicho, rabeta, larilas, apara-lápis, azeiteiro e outros quejandos. Já as lésbicas eram apelidadas de fressureiras e fufas.
Esta é a verdade histórica e ao descrever aqueles tempos é meu dever registá-la. Outra coisa que naquele tempo ainda não tinha sido inventada nem sonhada, era a curiosa e para mim inexplicável expressão “orgulho gay”. Tenho muito respeito pelas opções da cada um, mas este apregoado orgulho, confesso, nunca percebi.

22 Comments:

Blogger ROADRUNNER said...

Excelente, como sempre. As suas crónicas deviam ser imortalizadas em livro. O que aqui vai narrando é pura história que caracteriza na perfeição a sociedade portuguesa dos anos 40 e 50.
Eu, pela minha parte sempre que o tempo me permite (infelizmente não é muito) não deixo de por cá passar para me deleitar com os seus escritos.
Saudações e FORÇA!

06 outubro, 2007 22:15  
Blogger Maria said...

Perco-me aqui, a ler-te....
Quantas memórias ainda para nos deliciares...

Beijinho, António

06 outubro, 2007 23:24  
Anonymous Anónimo said...

Outra crónica, outra estória que li até ao fim. As lembranças e recordações de anos idos têm lucidez que me espanta.

Dizem os entendidos (psicólogos, psiquiátras) que a memória como filme que é, está mais viva nos anos e tempos mais antigos... e concordo com esta visão!

Concordo plenamente consigo António que a vida, as opções de vida, pertencem a cada um!

E este reparo sobre o que se passou aqui na minha cidade, Porto, com o transsexual Gisberta, vem demonstrar que ainda há muita confusão nas mentes actuais!..

Abraço...

08 outubro, 2007 07:29  
Blogger Unknown said...

É roubar tempo ao tempo para ler o que escreve, infelizmente tolerância é palavra esquecida, e quando usada, é sempre com 2ª intenções, a humanidade, embora siga, com alguma dificuldade, por um caminho melhor, tem tanto, tanto para aprender...

Excelente texto, como sempre

08 outubro, 2007 12:45  
Anonymous Anónimo said...

Muito interessante. Se calhar, Tito, lá onde o seu espírito anda, já achava que deviam recordar-se dele. Uma figura que não fez aparentemente nada de relevante, existiu. Nasceu, viveu, sofreu e morreu, aparentemente remetido para o esquecimento. A sua história vale por exemplificar a desgraça de muitos. De todos aqueles que são esquecidos por só terem sido usados e nada de espantoso alcançarem.

A sua prosa, senhor Gouveia, continua a deliciar-me. Parabéns. Muito dela se deve, provavelmente, à influência desses primeiros anos de ensino escolar e do professor Clarinha(?) e desses tempos em que se brincava ás personagens históricas!

08 outubro, 2007 17:28  
Blogger LUIS MILHANO (Lumife) said...

Mais uma estória que chega a comover pela realidade como é tratada.

"Felizmente a mentalidade de hoje começa a mudar, mas que longo caminho ainda a percorrer!" Mas bem longo caminho há ainda pelo que dia a dia se vai sabendo.

Um abraço

09 outubro, 2007 19:50  
Blogger Bichodeconta said...

Magnifico simplesmente.. MUITO HÁ PARA DIZER, MAS HOJE, DESPIDA DE MIM, DE ENTRANHAS EM REVOLTA.. eSTE PAÍS QUE AMAMOS TRATA MAL OS SEUS CIDADÃOS, POR MAIS CORRECTOS QUE ELES QUEIRAM SER.. qUEM SABE UM DIA CONTOI.. A ATITUDE É PREOCUPANTE , É PIDESCA, É MUITO GRAVE.. TUDO SE PASSA COM A CONIVENCIA DOS NOSSOS DES- GOVERNANTES QUE SEGUEM INDIFERENTES AOS PROBLEMAS DA NAÇÃO, AOS PROBLEMAS DAQUELES QUE OS ELEGERAM..MAS É MUITO GRAVE O QUE NESTE PAÍS SE PASSA. UM ABRAÇO, ELL

09 outubro, 2007 20:03  
Blogger António Melenas said...

COMENTÀRIO AOS DOIS COMENTÀRIOS ANTERIORES
È verdade. Nos últimos dias, e hoje particularmente na Covilhã, o Governo ou alguem às suas ordens têm dado um mau retrato do que deve ser um regime democrático. Tem sido antes um retrato pidesco

09 outubro, 2007 20:39  
Blogger LurdesMartins said...

Que história, heim António?! Quanta miséria se viu e, infelizmente, se continua a ver neste nosso país à beira mar plantado...

Beijinhos

10 outubro, 2007 16:30  
Blogger Lapa said...

Pois faz você muito bem.

Continue!

11 outubro, 2007 23:55  
Blogger sofialisboa said...

mais uma historia, esta triste...mas é sempre uma boa historia! sofialisboa

12 outubro, 2007 14:01  
Blogger Eme said...

Nada como um sábado em sossego absoluto para te ler. As tuas histórias assim o exigem.
À parte: esse D.Afonso II ainda hoje carrega o calote? Se não o voltaste a ver, suponho que sim. terá dado o exemplo ao Zé povinho?

Coitado do Tito! Sabendo ser verdade, o sentimento é genuíno. Quão maltratado foi...

Prendeste-me como sempre.

Beijo grande

13 outubro, 2007 15:55  
Blogger Pepe Luigi said...

Como sempre caro António és um admirável cronista.
Sem sobejos de moralidade nem falsas modéstias consegues tecer a infeliz história de um teu parceiro da primária

Um abraço

14 outubro, 2007 20:33  
Blogger Paula Raposo said...

Infelizmente ainda existe muito caminho a percorrer até que as pessoas se deixem de meter na vida dos outros!

15 outubro, 2007 12:07  
Blogger Isabel said...

António, António se tu soubesses como te admiro!
Na vida estamos sempre a aprender, tu com a tua bela idade aprendes, assumes a tua aprendizagem e ainda a partilhas connosco.
Ainda bem!
Que sorte temos em poder ler-te.
Com esta história nos fazes mais uma crónica de uma época, de uma geração, de um local, de um regime político.
Desta vez aproveitas ainda para falar da crueldade das crianças umas com as outras, e mais tarde, já em adultos a continuidade desta crueldade acrescida da falta de compreensão que os falsos moralismos geram e que podem acabar por destruir seres humanos como nós.
Mais uma vez aqui, quem se lixa é o mexilhão, porque os moralismos existiam apenas para quem não tinha como esconder o seu lado mais secreto e não aceite pela sociedade hipócrita dessa época.
Quando eu era miúda e morava na Sobreda da Caparica, a minha avó contava que quando ela era nova, ali se refugiavam os actores, políticos, cantores famosos, ou simplesmente gente com dinheiro para ali, longe dos olhares de censura poderem ser aquilo que eram realmente, muitos eram homossexuais e para lá levavam os seus namorados.

Mas sabes amigo António não me parece que tenha mudado assim tanto, hoje em dia a hipocrisia ainda existe.
Ainda ouço seres humanos que se consideram muito cultos e evoluídos julgar e chamar nomes a outros seres humanos por causa das suas escolhas sexuais, ainda vejo usar e abusar de pessoas como o Tito.
Um dia conto-te a história da Marta, um homem que gostava de homens e gostava mais ainda de ser mulher, mas como não era fazia de conta sempre que podia. Quando saia à noite, para ir à discoteca vestia-se de mulher, produzia-se toda com vestidos justos e berrantes e botas altas, maquilhagem exuberante e bonitas cabeleiras postiças.
Chamava-lhe Marta porque sempre a vi vestida de mulher, excepto um dia.
Nesse dia soube o nome verdadeiro dele, vi-o pela primeira e única vez vestido de homem. Explicou-me porquê estava vestido assim de lágrimas nos olhos: tinha acabado de mudar de roupa para ir para casa, não podia aparecer lá na rua vestido de mulher porque se já o gozavam ia ser ainda pior e ele morria de medo que um dia lhe fizessem mal.
E já faziam tanto, já abusavam tanto.
Eu adorava a Marta.
Para mim será sempre a Martinha e até já me esqueci qual era o nome de homem dela.
Perdi-lhe o rasto, com pena minha.
Ela adorava-me a mim também, porque dizia que eu era a única mulher que a tratava como igual a mim, ou seja como duas mulheres.
Era o que éramos, duas mulheres.
Adorávamos estar as duas na casa de banho à conversa a partilhar segredos de mulher, e truques de maquilhagem.
Espero que a Marta esteja bem e feliz e não morta por alguém cruel como aconteceu ao Tito.
Porque é que não nos aceitamos como somos de uma vez por todas e abraçamos a diferença e todo este encanto que existe em sermos todos diferentes uns dos outros?
Porquê António?
Não era mais simples?
Não éramos todos mais felizes?

Um abraço amigo.
És maravilhoso!

Isabel

15 outubro, 2007 15:44  
Blogger Luis Eme said...

História exemplar, dos bairros lisboetas...

17 outubro, 2007 14:23  
Blogger Isabel said...

António meu amigo, tu que gostas de gatos e de pessoas.
Tu que gostas de identidade e liberdade, vem fazer-me uma visita...
Lá te espero.


Isabel

17 outubro, 2007 14:52  
Blogger Pepe Luigi said...

Amigo Melenas,
Como sabes adorei o teu depiimento, mas fiquei rendido ao comentário da Isabel.
Parabéns Isabel

17 outubro, 2007 15:30  
Blogger david santos said...

É sempre bom vir dar uma vista de olhos ao teu canto. Sempre nos deixas levar algo em mente.
Mais um bom trabalho, meu amigo António.
Quanto ao orgulho, numa sociedade como a que existe mundialmente, não vejo de onde ele possa vir, mas... é lá com os orgulhosos.
Tem um bom fim-de-semana

19 outubro, 2007 17:24  
Blogger Bichodeconta said...

Mais uma vez aqui estou eu António, rendida não só á sua cróbica e ao Titi Livio , como rendida ao comentário da Isabel, sobre a Marta, e soubre como o mundo podia ganhar ..Todos podia-mos ganhar não fira as hipocrisias.. As pessoas são crueis sim.. Se eu pudesse contava uma história, não da Marta, mas a história de alguém que a mãe repudiou desde o dia em que a filha lhe anunciou que se ia divorciar... Paasados dez anos essa mãe continua a não querer ver a filha.. Um dia em segredo vou perguntar-me se eu ainda a quero ver?Sei a resposta, sei o quanto dói, sei muita coisas que dispensava.. Mas sei também que é tão bom ler-te, faço-o sempre com o mesmo entusiasmo..um abraço grande António..

19 outubro, 2007 18:02  
Blogger a d´almeida nunes said...

Li com aten�o este texto, qual ensaio liter�rio e monogr�fico duma terra e duma �poca. Muito bem concebido e melhor realizado, sem favor.
Tive que me fixar na express�o do dito e redito (com muitas manifesta�es p�blicas, abra�os e beijinhos) "orgulho gay".
Qual qu� Ent�o agora andamos a apregoar aos sete ventos "orgulho de ser homem", "orgulho de ser mulher"?
Vamos � vida e deixem-se de fitas!
Um abra�o, Ant�nio
Ant�nio Nunes

20 outubro, 2007 22:34  
Anonymous Anónimo said...

António,
Vim ler as suas excelentes memórias e, uma vez mais, coincidentemente, também nas minhas habita um "Tito Lívio", do meu Liceu Padre António Vieira, extensão de Vila Franca de Xira.
Não, de todo não era o mesmo ... porventura parente, não sei. Também não lhe conheci opiniões/manifestações sexuais. Vivia-se a revolução, os espíritos começavam a abrir-se e, o Tito de que falo, tinha alma de artista.

De qualquer forma o que conta mesmo são as almas de cada um e, com toda a certeza a de ambos os Titos das nossas vidas, eram "almas boas". Por isso os registamos. Saudosamente!

Um abraço enorme, meu amigo
Excelente fim de semana

Mel

21 outubro, 2007 00:28  

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