10.30.2007

JOSÉ GOUVEIA, MEU IRMÃO (1ª. parte)

Uma simpática visitante deste blogue, teve a amabilidade de me sugerir que, em relação aos enormes textos que aqui , por vezes, publico e dos quais se confessa admiradora, os repartisse em duas ou três partes, consoante a sua extensão. Como este é de facto um texto bastante extenso, resolvi acatar a sua sugestão, pelo que o mesmo sairá em três partes
Será que resulta?

Entre os escassos objectos deixados pelo meu pai, falecido em 18 de Fevereiro de 1996, com a bonita idade de 92 anos), deparou-se-me um recorte amarelecido, quase ilegível, do Jornal “O Século” de Março de 1955 (a data não está visível), referente a uma notícia com o título “No Plenário começou o julgamento de dez indivíduos acusados de actividades subversivas”. Um dos indivíduos, reza a notícia, é “José Augusto Gouveia, de 31 anos, motorista, natural de Moncorvo”

O meu irmão Zé! Meu querido irmão! Tanto lutou, tanto se esforçou, de tanta coisa abdicou na defesa dos seus ideais! Só a morte (pior do que isso: só a doença ainda antes da morte) o fez silenciar.

Que saudades, meu irmão!

* * *

As minhas recordações relativamente ao meu irmão José remontam aos meus três quatro anos. Tinha ele, portanto, dez ou onze.

Estou a vê-lo: rapazinho de aldeia, magrote, espigado, pernalta para a idade, de chapéu preto, à homem, como era de uso e costume nos meios rurais. O meu pai tinha debandado para Lisboa à procura de melhoria de vida para si e para a família. O Zé era, pois, o homenzinho da casa e eu, que mal me lembrava do pai e com a mãe fora de casa, a trabalhar à jorna, na monda, nas segadas (é como lá se chama às ceifas), na apanha da azeitona ou da amêndoa, apegava-me ao irmão mais velho como uma lapa. Onde estava um, estava o outro.

Fazia-me burrinhos talhados em cortiça apanhada nos montes circunvizinhos, efémeros carrinhos de bois com cascas de melancia, cãozinhos de papel recortado que guardavam rebanhos de ovelhas, constituídos por rústicos bugalhos, moinhos feitos de palhas de junco entrelaçadas... Eram os meus brinquedos, que outros não havia naqueles tempos e naquelas paragens.

Os Invernos eram rigorosos e as casas, feitas de xisto negro, não rebocado nem por dentro nem por fora, cobertas com telha vã, isto é sem forro, eram desconfortáveis e geladas. Assim, tornava-se uma necessidade imprescindível ir à lenha pelos montes. Era o Zé que, comigo sempre atrás, ia à loja (a loja era o compartimento onde se alojavam os animais, cuja porta era a mesma da casa de habitação), aparelhava o burrico, velho, lazarento e teimoso como todos os da sua raça (era branco, lembro-me tão bem!) e se metia a caminho, por vezes bem longe de casa, para ir pelos montes, em busca dos troncos e gravetos destinados a alimentar a eterna fogueira que ardia na laje quadrangular implantada no chão da cozinha e onde, em negras e fuliginosas panelas de ferro de três pernas, se confeccionavam as parcas refeições, aproveitando ao mesmo tempo algum do calor que ia minorar a frialdade dos quartos contíguos.

Lembro-me que, certa vez, nessas incursões à serra, deparámos. apavorados, com um grupo de ciganos, afanosa e silenciosamente ocupados a desenterrar um porco que, obviamente tinha morrido vítima de qualquer maleita - caso contrário não teria sido enterrado pelo respectivo dono. Ficámos os dois de borco, tremendo de medo, espreitando por entre as estevas até terminar a macabra cerimónia da exumação do reco e o grupo se afastar, sempre em impressionante silêncio, carregando aos ombros o apetecido manjar, pois era hábito os ciganos desenterrarem os suínos mortos e com eles se banquetearem.

A escola da aldeia era pertinho da nossa casa. Não tinha mobiliário. Era só uma sala, um pequeno pátio para as crianças brincarem nos intervalos das aulas e, por baixo da sala, um cagadoiro que cheirava mal como trinta diabos. Os alunos levavam de casa um banquinho para se sentarem durante as aulas e eu, que não largava o meu irmão, muitas vezes levava também o meu banco para me sentar ao lado dele. Claro que pouco tempo lá parava. Logo o bicho-carpinteiro me impelia a vir para o pátio a atirar pedras às lagartixas ou outras proezas quejandas.

A professora, por quem o meu irmão ficou sempre com grande consideração pela vida fora, era sobrinha-neta do Guerra Junqueiro, que. como se sabe era oriundo de Freixo de Espada à Cinta - localidade próxima da nossa aldeia.

Às vezes, à saída da escola, a malta envolvia-se em zaragatas e aí, sempre que eu via o Zé em maus lençóis, saltava para cima do adversário, aos socos e pontapés, acabando quase sempre a berrar, atirado ao chão com qualquer piparote. Quando o aborrecia, o Zé, para me arreliar, chamava-me “ruço de má-pelo, quer casar e não tem cabelo”, mas eu não despegava dele.

Em várias ocasiões (mesmo anos mais tarde, já em Moscavide, ele fazia isso) pendurava-se no rebordo dos poços, preso só com os dedos e o corpo suspenso do lado de dentro, perante grande aflição da minha parte, que desatava num berreiro até ele se reerguer e saltar para fora como um pimpão, fazendo troça das minhas lágrimas. No fundo eu achava que ele era um herói, por isso. O decorrer da sua vida provou, no entanto, que ele era mesmo um herói e por muito mais do que isso.

Lembro-me de ir com ele pedir o rabo do porco, por ocasião das matanças. Era costume os garotos irem em coro pedir o rabo do porco aos vizinhos quando estes matavam os seus recos. Íamos normalmente de noite, com um facho de palha a arder (a que se dava o nome de “fachuqueiro”), para nos alumiar o caminho através de ruas e quelhas lamacentas. Batíamos à porta e entoávamos uma lengalenga vezes sem conta repetida, até que alguém aparecesse: “ Ò senhor Fulano, dê-nos cá o rabo. Só aqui estamos dois!”. É curioso que só agora, ao ver esta frase reduzida a escrito, me tenha dado conta da conotação maldosa que ela hoje teria certamente e que nunca em toda a minha vida me passou pela cabeça. O certo é que, com frequência lá vinha o rabo, acompanhado de qualquer guloseima, pois o rabo era, afinal, apenas um pretexto.

Quem nunca se recusava era o Ti Baltazar que gostava muito de nós e nos ajudava por saber que o nosso pai estava longe e lá em casa a abundância...sabe Deus. O velhote que também me chamava sempre “ruço de má-pelo”, gostava de se meter comigo: “Ò Gouveia, diz à tua mãe que não te leve à cama sem ceia”. E eu, de pronto, muito espevitado: “Ò Ti Baltazar, bata com o cu no chão e salte p’ró ar!”.

Isso é que o velho se divertia.


No tempo das “partidas” da amêndoa, minha mãe ia seroar para casa das pessoas onde elas decorriam e quase sempre ia com ela o Zé, o filho mais velho, que já sabia fazer aquele trabalho, ficando eu e o mais novito, o Diamantino, convenientemente deitados e recomendados à atenção da vizinha, a ti Cândida Patota, que, paredes meias, ouvia tudo o que se passava na nossa casa e que prontamente nos acudiria, se de algo de anormal se apercebesse.

Eu, contudo, permanecia quase sempre semidesperto, na mira de me regalar com um docinho ou outra guloseima que eles me traziam da espécie de ceia que os donos da amêndoa serviam aos partidores.

Pouco tempo antes de virmos para Lisboa, o Zé fez o exame da 4ª classe. Mas, coitado, nas vésperas apareceu-lhe um carbúnculo na testa, junto ao sobrolho direito, que lhe provocava febre altíssima. Como na aldeia não havia outros recursos, ( e o carbúnculo levava rapidamente à morte caso não fosse queimado) o médico local, em desespero de causa tomou a iniciativa de lho queimar com o cabo de um garfo de ferro em brasa. E no dia seguinte, ainda cheio de febre, lá foi o mocinho escarranchado no burrico, duas horas de caminho, serra fora, sob o sol escaldante de Julho, a mãe a pé, puxando a arreata, a caminho de Moncorvo para fazer o exame. Mesmo assim: aprovado com distinção.

A cicatriz do carbúnculo lá ficou, até ao resto da sua vida.

Continua
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Veja também
A DÍVIDA, DE QUE SOMOS ESCRAVOS
no meu outro blogue

12 Comments:

Blogger Maria said...

Amigo António

Continuas a oferecer-nos estórias "de encantar".
E a ternura com que descreves todas essas aventuras, toda essa vivência de quando eras miúdo, emociona-me. À medida que te leio "invento as imagens", como se um filme estivesse a ver.
Muito obrigada por este primeiro capítulo.... fico à espera do próximo.

Beijinhos

30 outubro, 2007 16:47  
Blogger Pepe Luigi said...

Fiquei empolgado pelas sessões seguintes.
És de facto um grande contador dos teus Contos Reais.
Cá voltarei.

30 outubro, 2007 18:58  
Blogger Eme said...

E eu espero ansiosamente os episódios seguintes para conhecer devidamente o Zé! Acabo de me lembrar que o nome dele não me é estranho por aqui, terás por acaso contado alguma história de umm irmão teu que se metia em problemas por ir hastear uma certa bandeira na praça? Ou sonhei ou estou a fazer confusão, mas ia jurar que já tinhas falado num irmão Zé.
Seja como for, já gosto dele, e tem a minha admiração! Ser aprovado com distinção no exame apesar de atacado pela febre, sim senhor!

Beijo em ti que já sabes!

30 outubro, 2007 21:43  
Blogger Paulo said...

Um "retrado" fiel desses lugares onde a memória não se inventa, era o canto dos dias, caminhos ditos de outra maneira por gente de mãos calejadas com lágrimas.
Um "olhar" à distância, sobre esse «deserto longo", faz-nos desassogar a saudade, empurrada para quotidianos onde o céu era, por vezes, comparado a um mar às cambalhotas.

Gostei da minha «viagem» pelo excelente trabalho apresentado neste blogue.
Obrigado
Abraço
Paulo

30 outubro, 2007 23:48  
Blogger M. said...

meu querido mais terno e mais bonito dos meus queridos todos, vinha aqui a fugir só pra te deixar aquele abraço, mas devorei o texto(tal como o da Lucrécia (ganda maluca..hheee)que amei, mas este aqui toca-me por todos os lados e arestas,..lindissimas as tuas vivencias, lindissima a tua história de vida, todo tu és lindissimo e especial.guardo-te aqui do lado direito até um dia poder abraçar-te muito,muito forte.
adoro-te.(logo cá venho espreitar o resto ok?)smak!smak!smak!

31 outubro, 2007 16:05  
Blogger António Melenas said...

Olá Nena,
Ah mukher dos diabos sempre danada prá brincadêra!
Lembras-te do spot publicitário "estes publicitários são uns exagerados"? Pois é, davas uma boa publicitária. Este Nena é uma exagerada.
Também te adoro, smuck, smuck, smuck
Beijo

31 outubro, 2007 17:49  
Blogger Bichodeconta said...

De vivencias é feita a vida e de vivencias encantadouras..Esta História é mais uma de tantas maravilhas com que nos tem presenteado.. Obrigada por isso António..Agora fiquei de água na boca á espera das cenas dos próxinos capitulos.Os nossos irmãos são uma parte de nós.. PARABÉNS MAIS UMA VEZ... UM ABRAÇO..

31 outubro, 2007 19:51  
Blogger Paula Raposo said...

As tuas recordações são fantásticas! Adoro lê-las e aprender contigo. Muitos beijos.

02 novembro, 2007 20:14  
Blogger Manuel Veiga said...

abraço emocionado!

(por todas as razões públicas e por aquelas que tu conheces...)

03 novembro, 2007 14:16  
Anonymous Anónimo said...

Belo texto, belas memórias e um bom coração que o senhor tem. Amor à família e da família...
Bem que, infelizmente, só tenho por parte da minha Mãe.
Ficarei visita assídua do seu blogue.
Muito obrigado.
José Manuel de Aguiar

03 novembro, 2007 14:28  
Blogger Maria Oliveira said...

Adoro a forma como escreve e descreve as vivências.
São testemunhos que ficam, de uma riqueza sem par.
Admiro-o e respeito-o e irei continuar a seguir as suas histórias.

Um forte abraço!

04 novembro, 2007 19:37  
Blogger sofialisboa said...

mais uma belissima estoria! sofialisboa

05 novembro, 2007 14:48  

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