9.27.2007

A EDIFICANTE HISTÓRIA DE LUCRÉCIA

O papa Alexandre VI, a filha Lucrécia e o filho César

O meu nome próprio é Lucrécia. Não sei se foi escolha dos meus pais se dos padrinhos. Sei apenas que sempre embirrei com este nome. A propósito de tudo e de nada lá vinha um dichote: Lucrécia, mas não és a Lucrécia Bórgia, pois não? E eu com cara de parva, pois não fazia a mínima ideia de quem fosse essa tal Bórgia. Aos poucos, porém fui aprendendo que devia ter sido pessoa muito má, pois logo alguém, principalmente o papá, se apressava a garantir: Esta? Esta, coitada, é incapaz de fazer mal a quem quer que seja, é mesmo uma mosquinha-morta.

E assim era. Sempre fui uma menina muito boazinha, muito bem comportada. Era bonita, vistosa – ainda hoje sou – muito lourinha, uma pele delicada mas, diziam todos, um pãozinho-sem-sal. Nunca cheguei a perceber bem se o epíteto me agradava se não. Eu era como era e pronto.

O meu pai tinha feito fortuna na construção civil, especulação imobiliária e negócios não muito claros (escuros talvez fosse a melhor definição) como mais tarde tive ocasião de me aperceber e vivíamos dos rendimentos de avultadas contas em vários bancos da capital. E não só. Sendo, tanto o papá como a mamã muito religiosos, não havia domingo nem dia santo que não fossem à missa e eu, filha única, com eles

Quando completei 7 anos fiz a minha primeira comunhão. A mamã, pessoa frágil e doente morreu uns dias antes, mas como a cerimónia já estava sendo há muito preparada para aquele dia, e se tratava de uma comunhão colectiva de crianças da paróquia, acabou por se realizar na data aprazada. Lá fui eu, juntamente com um grupo de meninas e meninos da minha idade, de vestido branco até aos pés, soquetes e sapatos brancos, tudo a condizer e uma grinalda de rosas brancas envolvendo cachos de caracóis louros , que previamente me tinham levado a pentear no salão de cabeleireiro perto da nossa casa. O papá achou que eu ia muito bonita e não fez senão elogiar-me durante todo o dia. Parecia uma noiva, não se fartava de dizer. À noite , depois do jantar, durante o qual me fitava com olhar embevecido, mandou-me voltar a vestir o vestido da comunhão, levou-me para quarto, deitou-me na cama e violou-me. Esta palavra aprendi-a mais tarde. Na altura, nem me dei bem conta do que se estava a passar. Só sei que senti umas dores horríveis, gritei que nem uma possessa e fiquei com o vestido todo sujo de sangue. No fim ficou tudo bem. O papá deitou-se a meu lado e adormeci como um anjo.

A criada, mulher de meia idade, mas surda que nem uma porta, dormindo num quartinho afastado, não deve ter-se apercebido de nada. No entanto, à cautela, o papá, poucos dias depois, fez contas com ela, meteu-a no carro e levou-a para a terra, onde a tinha ido buscar havia uns anos atrás.. Em seu lugar contratou outra mais nova e mais robusta, para fazer a lida da casa e cozinhar, mas sem direito a dormir.

A partir daí e mais à vontade, volta não volta vinha deitar-se a meu lado, acariciava-me, trepava para cima de mim e repetia tudo o que fizera comigo na primeira noite. Tornou-se um hábito. O papá lá sabia o que fazia. Eu era a Lucrécia, a menina boazinha, incapaz de reagir. Sempre assim fui apresentada e assim acabei por me assumir. É certo que, a partir de certa altura, comecei a sentir algum desconforto, e um sentimento de indefinível angústia que com frequência me acometia. Mas não era culpa, nem remorso. O que me sucedia era simplesmente uma coisa em que eu não tinha voz activa. O papá é que sabia. Agora, já não me doía nada, não era bom nem mau. Sei que ficava molinha, molinha e adormecia depois como um anjo.

O papá tratava-me com muito carinho, nada me faltava. Comprava-me boas roupas, que ele próprio escolhia e trazia-me sempre num brinquinho. Os rapazes olhavam-me na rua, com olhos estranhos de que não sabia bem o significado, demorando-se sobretudo nas pernas um tanto gorduchas, muito brancas mas bem feitinhas, achava eu e achavam eles, pelos vistos, mas isso era-me completamente indiferente. Já o mesmo não acontecia com o papá que não escondia a sua irritação quando via os olhares dos rapazes fixos em mim, chegando mesmo a enxotá-los com manifesta rudeza. Contudo se alguns se dignavam olhar-me e lançar-me alguns deslavados piropos, sobretudo em relação à compleição das pernas, outros havia que os contradiziam confirmando o que desde muito cedo me eu habituara a ouvir, de que era mesmo um pãozinho sem sal.

Também a minha educação não era descurada. Fiz o liceu – onde o papá me levava e trazia de carro e ingressei na Faculdade, onde me licenciei em Farmácia. Rico com era e influente, o papá não teve dificuldade em me conseguir um alvará para abrir um estabelecimento da especialidade, que passei a dirigir. Coisa pequena. O suficiente para ganhar para as minhas despesas pessoais, não tanto por precisão pois, como já referi, o papá era pessoa de teres e haveres, mas principalmente para me manter entretida.

Também o papá fez questão que eu tirasse a carta de condução de ligeiros, o que eu - a mosquinha-morta - consegui com extrema facilidade e com grande surpresa do papá. Contudo nunca me permitiu que tivesse carro próprio, limitando-se a deixar-me conduzir o seu potente Mercedes, só umas vezes, mas com mais frequência a seu lado, servindo-lhe de motorista. A propósito de carro, devo dizer que tínhamos garagem própria, na ampla moradia, onde residíamos, cercada de um pequeno jardim e apetrechada ainda com um anexo para arrumo de ferramentas.

Entretanto o papá achou por bem arranjar-me um casamento com um fulano das suas relações, também endinheirado mas, pelos vistos, com dificuldade em arranjar mulher por iniciativa própria, dado precisar da interferência de terceiros. Era uma dúzia de anos mais velho do que eu, desengonçado, meio calvo, sem graça. E eu, a Lucrécia, a papa-açorda de sempre, apesar de adulta , e diplomada, conformei-me. Se era a vontade do papá…

Ligado à igreja e à devoção como era o papá, fez este questão que o casamento fosse religioso, embora sem pompa nem circunstância, tendo tido lugar numa pequena capela da paróquia que ele conseguiu fosse aberta especialmente para a cerimónia.

Sendo a nossa casa suficientemente grande e o meu quarto suficientemente amplo, foi lá que o meu improvisado marido se instalou e ali cumpriu os seus esperados deveres matrimoniais que, no que me concerne, não constituíram qualquer novidade no ramerame a que já me acostumara, sem prazer nem repulsa.. O energúmeno devia estar a par de toda a situação pois não fez qualquer reparo à facilidade da sua performance – no entanto suada e grunhida - nem à fria indiferença com que acompanhei os seus ridículos cuidados para a levar a cabo com honra e proveito.

Nas primeiras noites o papá manteve uma atitude discreta, retirando-se para o seu quarto logo após o jantar, ou saindo para se encontrar com um ou outro amigo das suas estranhas relações.. O casamento, porém não passava de uma capa para o papá continuar a desfrutar-me a seu bel prazer, sem ser alvo de reparos e maledicências de terceiros. Tanto assim que, passados dez ou quinze dias, passei a dormir e a ser assediada pelos dois em diferentes dias, de acordo talvez com um calendário entre ambos cozinhado.

Corria tudo na santa paz do senhor, se é que tal expressão faz algum sentido face às circunstâncias do nosso estranho relacionamento, quando, a partir de certa altura, o papá começou a dar sinais de súbitos e inexplicáveis ciúmes. Nunca ia para a cama comigo, sem antes ter bebido uns quantos copos de whisky ou outras bebidas alcoólicas que lhe tiravam todo o discernimento e, por vezes, a capacidade para fazer comigo aquilo que pretendia, o que o deixava completamente exasperado. Em face disso a sua ira voltava-se contra mim e acabava quase sempre por me maltratar. Outras vezes o seu mau humor voltava-se contra o outro, travando-se entre os dois frequentes discussões de que eu era razão e objecto.

A partir daí resolvi tornar-me autista e ignorar tudo o que à minha volta se passava. Uma das maneiras que encontrei de o fazer, foi embrenhar-me na leitura. Durante o tempo da Faculdade nunca cultivei esse gosto, limitando-me a empinar os calhamaços, e a decorar as fórmulas e os números da especialidade que escolhera. O desejo de me evadir da vida sem sentido que levava compelia-me-me agora a preferir outras áreas, especialmente literatura, e história. Passei a ler tudo o que apanhava à mão.

Assim, como toda a vida, por causa do nome e por contraste com o meu feitio de lesma, ouvira referências à célebre Lucrécia Bórgia, supostamente de carácter diametralmente oposto ao meu, procurei ler e li tudo o que encontrasse a seu respeito. Foi assim que cheguei à conclusão, através de estudos modernos, que a tida por cruel e depravada Lucrécia mais não tinha sido do que uma infeliz jovem, joguete dos interesses políticos e das depravações de seu pai, o Papa Alexandre VI, e de seu irmão, o famigerado César Bórgia, dos quais era amante, de forma alternada ou em simultâneo, ou cedida a terceiros, ao sabor dos jogos de poder da corte papal e dos interesses da família.

A partir daí, mesmo sem objectivamente me ter dado conta, pois por fora, continuava a mesma papa-açorda, no meu íntimo algo começou a mudar. No laboratório da farmácia, comecei a dedicar-me ao estudo de venenos, a fazer misturas e experimentações, sem saber exactamente para quê, talvez influenciado pela procedimento dos Bórgias para quem, ao que consta, o veneno era uma das formas mais usuais de resolver os seus diferendos e – livrar –se dos seus inimigos.

Não tardou muito que me tivesse tornado uma especialista em matéria de venenos, sua confecção, seu doseamento, sua utilização progressiva sem deixar vestígios. Interesse meramente académico, obviamente, pois não descortinava qualquer benefício prático nesta espécie de conhecimento.

Entretanto, a inexplicável mudança de comportamento do papá em relação a mim vinha de dia para dia tomado proporções inesperadas, tornando-se o seu azedume e a brutalidade com que me possuía, insuportáveis, sobretudo quando bebia o que acontecia agora frequentemente e de uma forma desmesurada.

Cheguei à conclusão de que o papá estava doente, sofria de algum mal que eu desconhecia e eu tinha de o ajudar a libertar-se dele, para sempre. O meu temperamento compassivo e o meu coração de manteiga não me permitiam continuar a assistir sem nada fazer perante o sofrimento do papá. Assim, após demorada reflexão e hesitações sem conta, resolvi utilizar os meus conhecimentos na área dos venenos para, sem sofrimento e sem deixar vestígios, o enviar para o seio de Deus e assim proporcionar-lhe o eterno merecido descanso.

Aos poucos, de forma gradual, fui-lhe ministrado ínfimas gotas de uma mistura por mim preparada, até que ao fim de várias semanas de progressivas queixas de agravamento do estado de saúde, a morte chegou como resultado esperado e natural. Nem então, nem até agora, o seu falecimento levantou a mínima suspeita de quem quer que fosse. O funeral, religioso como não podia deixar de ser, foi simples e discreto. Todas as semanas vou levar flores à campa do papá e rezar pela sua alma. Ele, lá do céu apreciará certamente toda a dedicação da sua mosquinha-morta.

Desde que o papá se foi desta para melhor (é assim, pelo menos, que costuma dizer-se de quem morre) comecei a prestar mais atenção ao outro que lá tinha em casa e que se intitulava de meu marido. Pelas conversas sussurradas ente ele e o papá, tinha percebido que a sua fortuna, tal como a do papá, tinha sido adquirida por meios ilícitos, jogo, contrabando, exploração de bares da noite e que havia muita gente que não se importaria nada de o abater, se para isso tivesse ocasião. Era, por isso muito reservado, muito cauteloso. Nunca lhe conheci um amigo ou alguém conhecido.

Com a morte do papá, praticamente deixou de me assediar na cama. Era como se a sua função conjugal fosses apenas um contracto que terminou com o desaparecimento de um dos signatários. Era como se o papá precisasse de um opositor que estimulasse os seus apetites a meu respeito e ao mesmo tempo, como a prática veio demonstrar, a sua submissão a essa necessidade acabasse por o enfurecer e deixar possesso.

Por essa altura, admiti na Farmácia, que entretanto com o dinheiro herdado pela morte do papá aproveitei para remodelar e ampliar, um empregado que era pau-para-toda-a-obra. Ia aos laboratórios buscar encomendas, arrumava os medicamentos nas restantes respectivas, ajudava-me a manipular alguns unguentos, limpava as instalações… um verdadeiro achado. Gigante de corpo - era um tamanhão de um homem – bonitinho de cara, era contudo um bocadinho lerdo e falto de senso comum. Diria mesmo que meio amalucado. Até no nome – Ananias - tinha algo de esquisito, de exótico. Vim a saber depois que tinha sido finalista de medicina, mas que, acometido de uma doença do foro neurológico, ficara incapaz de completar o curso ou de exercer qualquer trabalho intelectual ou outro que necessitasse de uma actuação responsável.

Um pormenor me chamou a atenção: volta não volta surpreendia-o a olhar para mim com olhar enlevado, que mudava rapidamente para um ponto qualquer do laboratório sempre que se dava conta de que eu nele tinha reparado. Nessas ocasiões corava como uma criança, balbuciava uns sons ininteligíveis e afastava-se precipitadamente fingindo ir buscar um qualquer produto ou objecto.

Tal procedimento deixava-me muito perturbada, pois comecei a perceber-me de que o rapaz estava apaixonado por mim e a verdade é que isso me excitava, pois nunca da parte de ninguém recebera prova de tal sentimento. Da parte dele, mais do que paixão ingénua era, pude perceber, autêntica devoção. Ia agora nos 45 anos e isto era uma sensação nova e completamente inesperada para mim. Acabei por me deixar envolver.

O conhecido ditado que assegura que “o lume ao pé da estopa vem o diabo e assopra” não se pode aplicar com grande precisão neste caso, pois da minha parte desconhecia inteiramente o que fosse “lume” neste tipo de relações entre duas pessoas de sexo diferente e no entanto, o ditado funcionou mesmo, certa vez em que, no fundo do laboratório, após o fecho do estabelecimento, me pegou na mão e me olhou de um modo tão implorativo, que acabei por o puxar para mim, me deitar no chão e por ele me deixar possuir. Oh céus, pela primeira vez eu senti prazer, verdadeiro e repetido prazer em ser penetrada.

A partir daí, a coisa repetiu-se com cada vez maior frequência, chegando a ter lugar, a pretexto de ele me acompanhar para transportar algum objecto pesado, na minha residência e na minha própria cama – no meu leito conjugal dir-se-ia, se no meu caso particular tal expressão tivesse algum sentido, tanto mais que o zombie do meu alegado marido, passava dias e noites sem aparecer, tendo eu a impressão de que andava fugido de alguém que com ele tivesse razões para ajustar contas. E no entanto, quando menos o esperava – em boa verdade eu não esperava nem deixava de esperar pois isso me era completamente indiferente e nem sequer tive a preocupação de me resguardar contra tal possibilidade - ele apareceu, certa tarde, apanhando-nos, nus na cama e em pleno acto sexual.

Fez a sua esperada cena de marido enganado e tentou agredir - cobarde que era - não ao rapaz, mas a mim que considerou o elo mais fraco. Foi o erro dele. Friamente, peguei num pesada estatueta em bronze que tinha em cima da cómoda e com uma golpe vigoroso esmaguei-lhe o crânio.

O rapaz ficou assustado, mas logo o tranquilizei-o e sob as minhas instruções começámos, calmamente a tomar as previdências que o caso requeria. Em primeiro lugar, apesar de me parecer já sem vida, caído por terra desferi-lhe , calmamente –nunca na vida me sentira tão calma - um segundo golpe com igual vigor. Transportámos depois o corpo para a banheira para escorrer o sangue, tendo limpo cuidadosamente a estatueta e o lugar onde tinha caído e de seguida… fomos dormir tranquilamente. Tal como aquando da morte do papá, não senti culpa, nem remorso.

Cabe aqui dizer que a rapariga que fazia a limpeza e por vezes nos preparava algumas refeições - não aquela que o papá tinha em tempos admitido, pois desde então muitas outras por cá tinham passado – se tinha despedido alguns dias antes da cena que estou descrevendo, o que prova que Deus está do meu lado.

Assim, na manhã seguinte, deixámos tudo como tinha ficado na noite anterior, com o corpo a escorrer na banheira e foi com a maior tranquilidade que nos dirigimos para a farmácia.

À noite, após o jantar, que nós próprios preparámos, dirigimo-nos finalmente à casa de banho onde se encontrava o corpo já sem pinga de sangue. Sob as minhas instruções o Ananias entreteve-se, com ajuda de uma serra eléctrica, um podão e de outros utensílios cortantes que foi buscar à casa das ferramentas, a serrar o corpo em várias partes, decepando em primeiro lugar a cabeça, depois os braços e as pernas, esvaziando em seguida os intestinos, cujo conteúdo fomos deitando aos poucos na sanita, como muito cuidado para que não entupisse. As peças que se iam cortando eram de imediato metidas em resistentes em sacos separados, de que tivera o cuidado de vir munida em quantidade mais do que suficiente, para ainda nessa noite irmos deitar tudo ao mar, em diferentes locais da costa.

Foi aí que o Ananias teve a brilhante ideia de que se podia desossar o corpo, uma vez que ossos descarnados seriam de mais difícil senão impossível identificação e que a carne, devidamente acondicionada em pequenas doses se poderia guardar numa enorme arca frigorífica que existia lá em casa e que quase não tinha utilização, e se poderia ir comendo aos poucos. Por muito que vos espante, a verdade é que fiquei excitadíssima com a ideia que, de pronto, aprovei. Achei mesmo um acto de justiça poética o facto de poder comer a quem há anos me andava “comendo” –expressão reles, mas muito em voga, ao que tenho ouvido.

Já não foi, pois nessa noite que nos desfizemos dos restos do corpo, pois passamos um bom par de horas no trabalho de cortar a carne que íamos guardando em sacos de celofane, de acordo com os locais de era retirada, - os bifes da perna de um lado, os das coxas de outro, as costelas, noutro ainda, e por aí fora, para depois se irem retirando aos poucos e consumindo, de acordo com as necessidades e apetites..

Os despojos, transportámo-los para o anexo das ferramentas durante várias noites, sem pressas, os fomos atirando ao mar em passeios que fizemos, como namorados, por vários locais da costa. Os ossos iam tão cortadinhos, com a ajuda da serra eléctrica, que dificilmente serão encontrados e sendo-o a ninguém passará pela cabeça que se trate de despojos humanos. Quanto à cabeça, foi tão esmigalhadinha que os peixes e os caranguejos se encarregarão do que resta e que, de tão pouco, não os deixará empanturrados, por certo.

Já se passaram três meses. Até hoje, ninguém se apresentou a procurar pelo traste. Sendo a zona onde moramos composta de vivendas isoladas cercadas de pequenos jardins, uma aqui outra acolá, não tendo propriamente relações de vizinhança, ninguém o conhece. Ninguém dá pelo seu desaparecimento.

Comemos hoje a última peça de carne do infeliz. Um belo bife por sinal. Devo dizer que se, a princípio, estranhei o gosto, que achava um tanto adocicado, me fui habituando e agora já não queria outra coisa. Vou sentir saudades. Se bem que a arca fica agora vazia e está sempre a tempo de voltar a encher-se. Já começo a olhar com algum apetite para o Ananias, que além de ser uma testemunha incómoda, é jovem e gordinho…e depois cabe perfeitamente no esquema de comer quem me come. Não é isso que faz a louva-a-deus – um bichinho tão simpático e inofensivo? Tal como eu.

Ah, amanhã é dia de me ir confessar. É um hábito que tenho desde menina e que , embora não signifique nada para mim, quero manter como sería do desejo da mamã e do papá. Claro que tenho de arranjar alguns pecaditos para apresentar ao padre, pois os principais ficam comigo. Deus conhece-os e ele me perdoará.
A ver se não me esqueço de mencionar este meu pecado da gula, que muito me incomoda, sem referir, claro, o tipo de acepipes da minha preferência. A propósito do padre, devo esclarecer que é um homem novo e bonito que me olha sempre com ar guloso, diria mesmo lúbrico. Aí está um belo petisco para os meus novos apetites gastronómicos. Quem sabe... um dia...

Ai papá, papá, afinal a tua Lucrécia, não é tão mosquinha-morta como pensavas. A Lucrécia Bórgia, era afinal uma menina de coro, comparada comigo. Ah, ah, ah…… Ah, ah, ah…

27 de Setembro de 2007

25 Comments:

Blogger *Um Momento* said...

Óh meu Amigo
Acabei eu também ás gargalhadas
Bela a história,belos os Momentos que aqui passo:o)))
Muito obrigad
e , quanto ao meu espaço, esteve uns dias de comentários ocultos sim , mas já volta a estar "normal"
Um resto de dia lindo desejo e é realmente muito bom visitá-lo
Beijinho muito agradecido
(*)

27 setembro, 2007 17:08  
Anonymous Anónimo said...

Tenebroso...

O ser humano tem mesmo muitas facetas.

28 setembro, 2007 00:01  
Blogger *Um Momento* said...

E volto a passar...para convidar a entrar aqui:o))a ir até aqui:o))
http://pensamentos-proverbios.blogspot.com/
Tenho um Miminho para si
Dia lindo e um Excelênte fim de semana :o))

Deixo um beijo agradecido
(*)

28 setembro, 2007 07:47  
Blogger david santos said...

É verdade, António!
O ser homem, ainda que alguns as escondam, tem muitas caras. Qual delas a melhor?
Para nós, já um pouco "entradotes", parece-me não virmos a conhecer a transformação... se ela se der, claro!
Parabéns e bom fim-de-semana

28 setembro, 2007 12:37  
Blogger Isamar said...

Belo post. dar a conhecer um pouco da história é sempre bom.
Deixo-te beijinhos e desejo-te um fim de semana calmo, alegre, pacífico...

28 setembro, 2007 16:30  
Blogger LurdesMartins said...

António, comecei por ter pena dessa Lucrécia mas o final da históia mostra que ela não precisa que tenham pena dela!
Devo confessar que a parte final me deu volta ao estômago...

Beijinhos

28 setembro, 2007 17:22  
Blogger Menina do Rio said...

Querido amigo, já tem um tempo que dei o blog Menina do Rio por encerrado e estou agora e outro. Nas visitas que faço tenho deixado o link novo e talvez tu não tenhas percebido.
Agradeço de coração pelo teu carinho e palavras deixadas e fico a espera para um café em minha nova morada.
Um beijo no teu coração

http://recantodaalma.blogspot.com

Menina do Rio

28 setembro, 2007 17:32  
Blogger Manuel Veiga said...

um belo conto negro. excelente!

por essas e outras sempre evitei "as sonsas"... rss

abraços

29 setembro, 2007 17:53  
Blogger Bichodeconta said...

Ó António, mais uma dose bem servida de boa disposição.. Não resisto a uma boa gargalhada.. Parabéns, este espaço é divino.. Um abraço, ell

29 setembro, 2007 19:42  
Blogger Elsa Sequeira said...

Como é bom ler-te!!!

Convido-te a escrever uma carta por Darfur!
http://eu-estou-aki.blogspot.com

beijinhos!!!

30 setembro, 2007 09:28  
Blogger Paula Raposo said...

António! Fiquei encantada e ao mesmo tempo arrepiada, com este teu conto onde focas diversos assuntos, que eu diria, do dia a dia...a minúcia com que escreves é perfeitamente notável. Muitos beijos e não achei nada que estivesses com ar de missionário! Eh eh eh

30 setembro, 2007 10:03  
Blogger Eme said...

António, deixa-me ser sincera porque estou mesmo aparvalhada com este conto. Nem sei se lhe chame filme ou coisa que o valha; tinha comentado contigo que o conto me estava a agradar quando lhe dei a primeira vista de olhos e julguei mesmo tratar-se da Lucrécia de outros tempos e afinal revelas um drama que até pode ser bem real, um problema que não é desconhecido e que permanece escondido em sabe-se lá quantos lares aparentemente "saudáveis".. Apoderou-se de mim uma raiva enquanto lia o sacana do pai a violar a filha, outra quando observo o complô entre ele e o marido por conveniência e finalemnte consegues apaziguar-me com a "inocência" da Lucrécia a fabricar a poção mágica, talvez arsénico, que tiraria o sofrimento ao pai (ironicamente o seu...); Depois a Lucrécia tem enfim o seu momento como mulher e para acabar, o macabro que até me arrancou uma gargalhada e uma pele de galinha.. a cena da carne congelada lembrou me uma história sobre a esposa de Salvador Dali que cozinhou o seu coelho de estimação por amor e Dala Gali ao ingerir o coelho sentia todo o prazer a atravessar-lhe as entranhas, o prazer de trazer o seu amado dentro dela.. Neste caso a Lucrécia fá-lo por vingança, a última a rir nesta história é ela, grande mulher e sou eu que te estou a ler e te parabeniza, mais do que nunca com aplausos em cima da minha cadeira e sem exageros, o modo como criaste aqui este misto de sentires, raiva, ódio, nervos, frustração,alívio e gargalhada, tudo em menos de vinte minutos! Que mais hei de querer? Eu sei.. mais histórias assim.Garanto-te que não exageraste. Está divinal, de todos os que tenho lido de ti, este bate aos pontos. Engana-me até ao fim. Incroyable!

Beijo grande em ti mais sentido do que nunca!

30 setembro, 2007 10:58  
Blogger Eme said...

errata
Em Dala gali deve ler-se Gala Dali

(tás a ver como o teu conto me deu a volta )

:)

30 setembro, 2007 19:18  
Blogger António Melenas said...

Olá MARTA,
Já tinha dado por isso. È um erro muito frequente, chamado erro de compensação ou de simpatia.: trocar uma letra ou sílaba da uma palavra por outra letra ou sílaba da palavra seguinte.
É como dizer Avenida Daque D'úvila em vez de Avenida Duque d'Ávila ou submarão alumino, em vez de submarino alemão.
Mas em gralhas sou eu o campeão, dada a minha falta de vista.Escrevo às vezes cada coisa!...
"but who cares about that?"

30 setembro, 2007 20:43  
Blogger Licínia Quitério said...

Bolas, meu Amigo! Fizeste-me lembrar um filme do Arrabal que me arrepiou há muitos anos. Essa do comedor-comido por vezes vai além da metáfora. Saaafa!!!!

És sempre uma surpresa.

Grande abraço.

01 outubro, 2007 11:58  
Blogger Isabel said...

Maravilhoso.
Um bocadinho de tudo aqui meu amigo.
Principalmente daquela ironia critica que eu adoro.
Pobre Lucrécia tornou-se numa desejável assassina e canibal cheia de apetite.
Em que nos teríamos tornado nós com um paizinho como o que Deus deu à Lucrécia?
Nenhum de nós sabe pois não António.
O que se desenvolve dentro do cérebro de alguém com uma infância semelhante à tua personagem e cuja vida vai desenvolvendo daquela forma?
Não sabemos, mas sabemos que são estranhos os sistemas de defesa do ser humano e que o instinto de sobrevivência é de tal forma forte que pode criar uma espécie de monstro para se defender de outros monstros.
Adorei a tua história em particular a ironia associada à igreja e aos pecados por ela instituídos.
Ele há crentes muito pecadores não é meu amigo?
É uma verdadeira delícia ler-te, mesmo! Não cessas de me surpreender.
Obrigada.

Ah, devido às dúvidas suscitadas pelo meu último texto, publiquei uma nota explicativa sob a forma de comentário. Talvez queiras lá passar a ler.

Um grande abraço.

Isabel

01 outubro, 2007 12:06  
Blogger Pepe Luigi said...

Caro António,
Consegues neste teu texto construir com grande mestria uma miscelania de facetas da personagem principal, fazendo transparecer o clímax do enredo num trama deveras hilariante, escondido na vertente macabra.
Parabéns pelo teu substancial poder coreográfico na excelente manobra de situações.

Um abraço amigo

02 outubro, 2007 14:14  
Blogger *Um Momento* said...

E cá estou de novo:))
Para desejar uma linda semana cheia de sorrisos , e coisas boas
Deve gostar de tango:))
Convido-o a passar no "Momentos":))
Um beijinho e tudo de bom :)))

(*)

02 outubro, 2007 19:18  
Blogger Maria Carvalhosa said...

Está espectacular esta tua história, António. Foi um verdadeiro prazer lê-la e fruí-la.

Um abraço.

03 outubro, 2007 15:58  
Blogger a d´almeida nunes said...

Puxa vida papagaio!
Expressão que, na brincadeira, usávamos, quando de algumas conversas via rádio (QSO) entre radioamadores, mais lá para os anos 80!
Boa (E)História!
Um abraço, António Melenas
António

03 outubro, 2007 16:20  
Blogger Odele Souza said...

Antonio,
Teus textos como sempre, instigantes e cativantes. Este aqui é de mestre.

Fique com meu carinho.

04 outubro, 2007 02:49  
Blogger Eme said...

Um beijo apenas,para uma breve despedida. A plus mon ami! ;)

05 outubro, 2007 10:55  
Blogger Páginas Soltas said...

Meu querido amigo,
Momentos de boa disposião que nos presenteias... narrando baseado em factos históricos.. a vida de uma mulher que marcou o seu tempo!

És pura e simplesmente Grandioso como narrador e poeta.

Beijinhos da sempre amiga

maria

05 outubro, 2007 15:01  
Blogger Kalinka said...

Começo por desejar um excelente Fim de semana prolongado. O meu tem por finalidade descansar fisicamente e fazer umas arrumações de Outono.

ANTÓNIO - EXCELENTE O QUE ESCREVES.
PARABÉNS.

Na minha teimosia de fazer um 3º post sobre a letra F, faço destaque a um evento artístico que teve início a 29 de Setembro e termina a 31 de Dezembro, na Estrada Nacional (EN) 10, junto ao Seixal. Acolhe o Drive In Art 2007, que já vai na sétima edição. As trinta telas de enormes dimensões (2 m por 1,85 m) foram pintadas por vinte artistas, jovens e muito jovens (dos 15 aos 30 anos), e podem ser avistadas nos dois sentidos da EN 10 no troço entre as Paivas e o Fogueteiro. O vencedor (ah pois, isto é um concurso!) ganha 500 euros. Se o público não vai à arte...

Beijokas.

06 outubro, 2007 01:32  
Anonymous Anónimo said...

aqui, na net, deves escrever textos mais curtos ou então distribui-lo por vários posts.

18 outubro, 2007 23:25  

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