12.26.2006

O MEU "AVÔ" GUERRA JUNQUEIRO


Não é verdade.
Guerra Junqueiro
não é meu avô
nem tem nada a ver
com a minha família.
Trata-se de
Uma simples plaisanterie
que passo a contar:

Isto de chamar avô ao Guerra Junqueiro tem a sua História:
O Poeta tinha, como é sabido, u
ma grande quinta - Quinta da Batoca, em Barca d’Alva - que empregava um número relativamente elevado de trabalhadores agrícolas. Acontece que os meus avós Melenas, ao que a minha mãe me contava, terão sido caseiros na referida quinta. Não sei se terá sido mesmo nesta qualidade que lá prestaram serviço, mas o que é certo é que lá trabalharam, em regime de residência.

A partir de determinada altura da sua vida, Junqueiro, como aconteceu com outros vultos da nossa cultura, designadamente Alexandre Herculano, resolveu deixar o bulício da vida citadina e a actividade política em que vivera muitos anos freneticamente envolvido, para se dedicar, num estilo bucólico bem virgiliano, a administrar directamente a sua fazenda, como lavrador e patriarca e à composição dos seus mais belos poemas líricos.

Como todos sabem uma das características da fisionomia do poeta era a ostentação de um vultoso nariz, de forma marcadamente aquilina, bem semita, ou pelo menos aquela que aos semitas se atribui. Ora contece que os varões da minha família são geralmente dotados de um assaz volumoso e aquilino apêndice nasal, muito parecido com o órgão congénere do Junqueiro.

Acontece ainda que, tanto eu como os meus irmãos e a minha própria mãe, fomos dotados de alguma inclinação para a versalhada. Vai daí, eu entretinha-me a atazanar a minha mãe, insinuando que a minha avó devia ter sido uma senhora muito ”generosa”, incapaz de negar alguma coisa a alguém e muito menos ao preclaro patrão, sendo bem possível que, frutos dessa sua generosa disponibilidade, nós ainda fôssemos seus netos. A coisa pegou e nunca mais me referi ao Guerra Junqueiro, que não fosse por “avô”. A minha mãe fingia zangar-se, mas no fundo achava muita graça à história.

Também o meu padrinho, António Joaquim Ferreira de seu nome, conhecido na aldeia como o ti Antoninho Canhoto, e uma das pessoas mais bondosas que tive a felicidade de conhecer, trabalhou à jorna, por diversas vezes, na quinta do famoso e polémico Junqueiro. Uma vez, contava ele, o Senhor Poeta (era sempre assim que a ele se referia) apareceu na quinta, mais precisamente no lagar, acompanhado de uns senhores franceses, muito bem vestidos, que assistiram entusiasmados à pisa da uva pelos trabalhadores, de pés descalços e calças arregaçadas.

Quando acabou o trabalho, o Senhor Poeta, mandou servir uma merenda aos convidados e aos jornaleiros. E então, no meio da comezaina, um dos trabalhadores, já quente com o vinho da região servido copiosamente, sobe para cima de uma pipa e grita: “Viva o senhor Guerra Junqueiro, o maior poeta da raça latina!” Ou o homem sabia muito, ou o “avô” Junqueiro não descurava o seu marketing pesoal. Certo porém é que ele, além de ser extremamente popular na região e em todo o país, gozava também de enorme prestígio lá fora e em França principalmente.
O soldado expedicionário António Joaquim Ferreira,
em França na Guerra de 1914-1918

Viria mais tarde a ser meu padrinho de baptismo,
dele recebendo o nome de António Joaquim

Meu querido padrinho! Sempre que me lembro dele, me vem à memória esta cena,que ele contava sempre com tanto entusiasmo e devoção pela figura dos senhor Poeta.

A verdade é que Guerra Junqueiro era então o maior poeta Portugês vivo e um dos maiores de toda a nossa história literária. E tanto que Fernando Pessoa o considerava, em certos aspectos, superior a Camões.
Nascido na aldeia de Ligares (Freixo-de-Espada-à-Cinta) em 1850 e falecido em Lisboa em 1923, ele foi em vida elevado aos píncaros da fama, tendo sido chorado por Portugal inteiro e homenageado como nenhum outro poeta fôra antes dele, na hora da sua morte e por ocasião dos seu funeral que teve honras de Estado e foi acompanhado por verdadeiras multidões. Ultimamente parece ter passado de moda, como se o génio de modas fosse, havendo no entanto quem tenha pela sua poesia um verdeiro culto.

Tempos houve em que não havia ninguém que não soubesses muitos dos seus poemas de cor e não os recitasse nas festas e nas escolas. Hoje os tempos são outros, mas o que é belo, belo permanecerá para sempre, indiferente à modas, capelinhas, circunstâncias conjunturais e efémeras.
* * *
Em homenagem ao avô Junqueiro, aqui deixo dois poemas:

“Regresso ao Lar”, uma amostra de genuíno lirismo,
e a “Benção da Locomotiva”, exemplo da sua verve de polemista e feroz anti-clericalismo. Na verdade, Junqueiro era tao ferozmente anticlerical como profunda e entranhadamente religioso, e panteista convicto:

Regresso ao Lar

Ai, há quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?...há trinta? Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para eu me lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh! a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida,
Canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago d'amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama que me deste o peito,
Canta-me cantigas para me embalar!...

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
Pedrarias d'astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!

Como antigamente, no regaço amado,
(Venho morto, morto!...) deixa-me deitar!
Ai, o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas, manso, muito manso...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minh'alma durma, tenha paz, descanso,
Quando a Morte, em breve, ma vier buscar!...

in "Os Simples"

__________

A Benção da Locomotiva


A obra está completa. A máquina flameja,
Desenrolando o fumo em ondas pelo ar.
Mas, antes de partir, mandem chamar a Igreja,
Que é preciso que um bispo a venha baptizar.
.
Como ela é com certeza o fruto de Caim,
A filha da razão, da independência humana,
Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim
E convertam-na à fé Católica Romana.
.

Devem nela existir diabólicos pecados,
Porque é feita de cobre e ferro; e estes metais
Saem da natureza, ímpios, excomungados
Como saímos nós dos ventres maternais!
.

Vamos, esconjurai-lhe o demo que ela encerra,
Extraí a heresia ao aço lampejante!
Ela acaba de vir das forjas d'lnglaterra
E há-de ser com certeza um pouco protestante.
.

Para que o monstro corra em fervido galope,
Como um sonho febril, num doido turbilhão,-
Além do maquinista é necessário o hissope,
E muita teologia... além dalgum carvão.
.

Atirem-lhe umas hóstias à boca famulenta,
Preguem-lhe alguns sermões, ensinem-lhe a rezar,
E lancem na caldeira um jorro d'água benta,
Que com água do céu talvez não possa andar.

in "A Velhice do Padre Eterno"

9 Comments:

Blogger sofialisboa said...

com que então a meter-se comigo por postar hoje...e o senhor? é assim, quando nos apetece... bjs sofia

26 dezembro, 2006 17:29  
Blogger Maria Carvalho said...

Gosto muito de te ler. Não tanto o Guerra Junqueiro. Mas...é a minha opinião. Simplesmente. Todos somos poetas, todos temos direito ao nosso momento. Não aprecio mesmo nada este poeta. Mas gosto de ti. Que és Poeta. Beijos meus.

26 dezembro, 2006 21:28  
Blogger ROADRUNNER said...

Mais um estória de encantar, com dois poemas do nosso magnífico Guerra Junqueiro.
Aproveito para lhe desejar um óptimo Ano Novo.
Saudações!

26 dezembro, 2006 22:29  
Blogger LurdesMartins said...

Mais uma leitura deliciosa! E com dois poemas que de facto eu não conhecia...

Que em 2007 nos continue a encantar com as estórias da sua família (a quem eu tenho achado um piadão) e todas as outras que tão bem sabe contar.

Um feliz 2007 é o que lhe desejo, António.
Beijinhos

29 dezembro, 2006 10:35  
Blogger caminante said...

Siempre es hermoso, caro amigo, recordar anustros seres queridos. Es signo de buen corazón.
Un fortísimo abrazo.

29 dezembro, 2006 12:30  
Anonymous Anónimo said...

Caro António: a grande História feita a partir das pequenas histórias é mais sensível e humana, com rosto e afinidades. São pedaços de nós que damos a conhecer, e neste caso tudo se lê com graciosidade e agrado. A memória do passado e dos nossos antepassados, respira-se aqui, plena, e de modo atractivo. É este o motivo central da minha vinda constante ao seu cantinho.
No Minho temos um ditado popular que diz que «maior é o ano que o mês», por isso desejo a maior felicidade para o ano 2007.

29 dezembro, 2006 16:12  
Blogger Manuel Veiga said...

excelente homenagem, meu amigo. quem hoje "conhece" Guerra Junqueiro? fazes bem lembrar...

abraços

02 janeiro, 2007 18:02  
Blogger Menina Marota said...

Que poderei dizer desta fantástica crónica? Excelente!
Adorei lê-la!
Um abraço ;)

04 janeiro, 2007 17:06  
Blogger MEHC said...

Eu sabia de cor o "Regresso ao Lar" quando era menina e moça. Achei este post delicioso, António. Gosto do avô Guerra Junqueiro e adorei vê-lo aqui recordado de forma tão viva e completa.Que sorte ter tão boas recordações!

07 janeiro, 2007 22:32  

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