10.08.2006

DIÁRIO DE UM VAGABUNDO

DIÁRIO DE UM VAGABUNDO

Este texto pode ser também ouvido
pela voz inconfundível de Luís Gaspar,
em
"Lugar aos Outros nº 22"
http://www.estudioraposa.com

Devo tar é a ficar xoné só pode ser. á quase trinta anos na puta desta vida de vadio sem eira nem beira e só agora é que me deu para fazer um diário armado em dotôr, muito finaço sim senhor, elá vão duas semanas desde que comecei e nunca inté oje falhei um só dia também se assim não fosse não era um diário, bem digo eu, devo estar é a ficar apanhado da moleirinha, vamos lá mas é molhar a goela que isto assim a seco não tem pilhéria nenhuma, olha olha a puta da garrafa deve estar é rota ainda à pouco tava cheiinha e já tá no fim o que vale é que tenho aqui outra prontinha a saltar do fundo do bornal, dantes fazia muita questão da cólidade do vinho mas agora que se lixe qualquer merda me serve desde que se beba e escorregue bem na goela este por acaso inté escorrega muita bem. esta coisa das garrafas de plastico é que dão cá um jeitão do caraças imaginem o peso que eu tinha de acartar com garrafas de vidro. assim, despejo-as sempre para uma de plástica e as de vidro algumas inda um gajo que tem uma loja de ferrovelho ou lá o que é lá para os lados do prior velho me dá uns cobres por algumas que nem todas servem lá pró que ele quer. Tambem pouco mais preciso que uma garrafita ou duas de vinho por dia e umas buchas para trincar, às vezes lá me dão uma sopita um bocado de choriço ou uns carapaus fritos pra meter dentro da bucha, sobretudo umas velhotas beatas que já me conhecem e que têm a mania que vão ganhar o céu à custa cá do mangas com as merdas que me dão, beatas do camandro inda por cima querem dar-me banho e o caraças e levar-me à missa das gajas qué na igreja dos anjos era só o que me faltava, o que me faz falta mesmo isso sim é de vez em quando dar uma penachada numa gaja boa e vejo por aí cada brasa, sobretudo quando estou deitado e as gajas se debruçam para me deitarem uns cobres no boné que eu tenho sempre virado pra cima pró que der e vier ou ás vezes para verem se eu estou morto quera um bom motivo de conversa cas gajas tinham pra dar ao badalo todo o dia umas cas outras ai filha oje vi um velhote morto coitadinho, mas eu estou morto é uma porra o que eu estou é a curtir uma ganda bebedeira ou então a fingir que durmo para lhe ver as pernaças às vezes até lhes vejo as cuequinhas e fico cá cuma tusa do camandro, as gajas julgam que cá o rapaz já não a endireita e facilitam, eu que as apanhasse a jeito que até as tressalhava todas, elas só não mo dão porque tem medo ou nojo ou o caraças cá do rapaz e o caso não é pra menos que devo cheirar mal pra burro, á aí uns murcões que fazem o serviço à mão mas isso a mim não me dá gozo nenhum, estas coisas fazem-se a dois e mai nada, não importa como, onde ou em que posição mas a dois é que é e estamos conversados, o diabo é que com estas esquisitices passo fome de cão às vezes co tesão inté me dá ganas de ladrar à lua, como as cadelas com cio, porra tenho pouco mais de 60 anos e inda estou aqui prás curvas, de longe em longe quando o rei faz anos lá consigo convencer uma galdéria qualquer a desenferrujar-me o cassete mas só vadias e mal cheirosas como eu, que é que um gajo há de fazer, cada um é pró que nace e daí não é bem assim, eu por exemplo não é para me gabar mas não naci pra isto, o estupor da bebida é que me lixou sim porque eu até cheguei a andar na escola até à 2ª classe, claro que já esqueci tudo mas deu para arranjar emprego o que não é pra qualquer um nas oficinas da camara lá da terra, que eu não digo o nome para não ficarem a saber tanto como eu, os gajos só admitiam pessoal co exame da quarta, mas como o meu velho era lá funcionário, e eu tinha levado um balázio na na guiné ao serviço da pátria, diziam os gajos, puta cos pariu que inté hoje nunca mais fiquei bom da tola, lá me admitiram e inté era um bom profissional qué que julgam, trabalhava no piquete e era cá o mangas que fazia e reparava as canalizações todas da minha area, nisso era eu um alho digo-vos eu que apesar de ser do Porto, porra que já me descaí que se lixe sou mesmo é do glorioso, só que depois como já disse comecei a beber e a faltar ao serviço, também coa mulher que eu tinha que me punha os cornos com tudo o que vestisse calças lá no sítio e redondezas e não é que eu lhe faltasse com o devido a gaja é que era de uma colidade que só tava bem co ele entalado á gajas assim, a última foi com chefe do serviço de pessoal lá da câmara, que era ele que mandava na minha mulher que trabalhava lá na limpeza, tenho a impressão que foi o gajo que me armou a estrangeirinha e mandou botar-me na rua porque era bêbedo, e assim e assado, faltava ao serviço e ainda por cima não tinha a quarta classe, o co gajo quis foi ficar mais á vontade co a galdéria, foi a partir daí que a minha vida começou a andar cada vez mais ò pra trás e a vadiar por onde calhava até que vim parar aqui a Lisboa, a princípio ainda dormia em barracas ou casas abandonadas mas depois comecei a tomar gosto à rua e agora já á alguns anos que durmo em qualquer lado, no portal de um prédio debaixo de uma arcada no banco de um jardim, onde calha, agora já á umas semanas que durmo no vão de uma porta na estação do cais sodré, deitado em cima de uns cartões que guardo ali perto entalados entre a parede e uma caixa da electricidade ou lá que porra é aquilo, só que á um sacana de um drogado que tem a mania de me roubar o lugar já o avisei uma porradaria de vezes que aquele lugar é meu, sim porque a gente cá nesta vida tem as suas normas não é chegar e vá de se servir sem respeito pela propriedade alheia, mas agora estes drógados de merda que é uma raça que inté nem devia inzestir só servem para pegar doenças aos verdadeiros vagabundos profissionais como eu com as seringas que deixam por tudo o que é canto não respeitam as nossas regras e inda por cima são trazidos nas palminhas pelo governo e por essas fúfias perfumadas como essa margarida gorda que só se preocupam com essa gente, salas de xuto ou lá que é eles fazem de propósito para suas incelencias se drogarem, a ver se os gajos se lembram de fazer salas de copos pra malta da pesada se poder enfrascar decentemente sem andar a beber plos bancos do jardim e ouvir bocas foleiras de uns certos merdas que passam e que ás vezes inté correm co a gente, gostava de saber o qué ca droga é mais do que o tintol, se até o outro gajo, o manholas dizia que beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses não sei como é que o sacana chegou a essa conclusão a mim o vinho só me dá de beber e é um pau, já me esquecia de dizer que eu tive um filho, um rapaz co minha mulher, meu mesmo, tenho a certeza ca gaja só começou a cornear-me, mais tarde. quando saí de casa o tal chefão lá da câmara, qu’era o padrinho armou-se em bom e mandou-o estudar e tudo, o sacana do rapaz aqui pra nós nunca valeu um peido nunca me gramou. era um cagão um impertigado do catano e segundo me dizem está bem na vida, os malandros tem todos sorte meteu-se na política nunca quis saber de mim mas eu também estou-me cagando pra ele, que lhe faça bom proveito tudo o que tem, pra mim basta-me esta garrafita, vá lá mais uma golada qué bom prá tosse e já começa a escurecer deixa-me mas é guardar a escrita que amanhã também é dia e toca a marchar para a minha caminha lá no caisodré, verdade seja que também podia dormir aqui mesmo neste banco qué muita jeitoso mas o nosso cantinho é o nosso cantinho e não posso falhar senão o cabrão do drogado ainda se apodera dele de vez, oje inté por acaso já bebi além da conta que esta merda desta escrita deixa-me assim a modos que nervoso já estou meio atravessado dos cornos e ai do cabrão do drógado se hoje resolver enfrentar-me, aquele lingrinhas daquele paneleiro encartado amando-lhe cuma cabeçada que lhe fodo os cornos. ai amando, amando, o gajo vai ver. É oje, é oje…

* * *

Estas eram as últimas folhas de um caderno que um mendigo encontrado há dias no Cais do Sodré, com uma faca cravada na garganta e já sem vida tinha escondido no fundo de um bornal à mistura com pedaços de pão velho, uma maçã, um lápís umas pontas de cigarro, um canivete, um rolo de cordéis e uma garrafa de vinho meio vazia e mesmo o cartão de identidade, sujo, meio partido, há muito caducado, mas onde era possível ainda descortinar os seus elementos identificativos Os jornais que relatavam o acontecimento mencionavam o seu nome, idade, local de nascimento e morada incerta.

A secretária do senhor Ministro, que tem por norma ler os jornais matutinos e seleccionar as notícias que eventualmente possam interessar a sua Excelência, gosta também de se entreter com as fofocas e faits divers de que alguns desse jornais fazem objecto principal e quase exclusivo e não teve dificuldade em encontrar a notícia da morte do mendigo que aliás vinha em grandes parangonas num desses jornais. Foi pois com algum espanto que constatou que o apelido – um conjunto de dois nomes - do desgraçado era igualzinho ao de sua Excelência e que era natural da freguesia da Cedofeita, freguesia que o BI de sua excelência também indicava como sendo o de sua naturalidade mas que o curriculum jamais mencionava. Assim, ao levar-lhe os jornais com as notícias seleccionadas, atreveu-se (é muito familiar o seu relacionamento com o senhor Ministro) a chamar-lhe a atenção para a notícia: - “Curioso, senhor Ministro já viu que este mendigo assassinado ontem no Cais do Sodré tem um apelido igual ao seu e nasceu na mesma localidade que o senhor? Claro que só pode ser uma coincidência. Imaginem se poderá ter alguma coisa a ver com o Senhor Ministro! Ele há cada uma!”

Sua Excelência empalideceu levemente, rosnou entre dentes duas ou três palavras entre as quais lhe pareceu ouvir “que se foda” e logo recuperou o tom formal e frio do costume: Está bem, deixe os outros jornais e leve-me daí essa porcaria Ah e não se esqueça de reservar dois bilhetes para o espectáculo de logo à noite no Casino do Estoril.

* * *

O mendigo assassinado no Cais do Sodré, como ninguém se tivesse apresentado a reclamar o corpo, fez um longo estágio na morgue para estudo de alguns estudantes de medicina e acabou por descer à vala comum, tão anónimo como vivera os últimos anos da sua existência.

Uma cópia do seu Diário, que me foi fornecida por um amigo, amigo de um inspector da Judiciária, está agora em meu poder e foi dela que transcrevi o texto acima, tentando manter quanto possível o seu estilo grafia e sintaxe e retirando, todavia alguns dos palavrões mais cabeludos nele contidos, susceptíveis de ferir a susceptibilidade de alguns leitores mais pudibundos ou mais sensíveis.

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Qualquer semelhança entre os personagens,
lugares e situações desta estória
e pessoas, lugares e situações reais
é mera concidência



15 Comments:

Blogger ROADRUNNER said...

"Life is strange as shit!"
Só falta saber qual é o ministro, o pai já sabemos quem foi.
P.S.: A propósito terá sido o tal drogado que lhe espetou a facada?

09 outubro, 2006 00:01  
Blogger sofialisboa said...

quando comecei a ler nem queria acreditar, mas o antonio mudou de escrita? achei graça embora a pobreza de tudo que passava naquela cabeça me meta pena, mas valeu pelo trabalho... quanto à morte do vagabundo, que posso dizer? viver na rua tem destes riscos, quem sabe quem o matou...que descanse em paz sofialisboa

09 outubro, 2006 14:16  
Blogger António Melenas said...

POis é, Sofia, a miséria tem pouco a ver com "finesse" e a escrita que
a revela tem de ser, falmente, diferente do estilo da minha crónica anterior constituda por memórias de uma criança pobre, mas longe da miséria extrema de um sem abrigo.
Obrigado poela visita
Abr.
António

10 outubro, 2006 15:11  
Blogger sofialisboa said...

o meu comentário nada tem haver com a finesse, o que não gosto é o tipo de palavras e sobretudo os interesses dele. acho-o grosseiro e de muito baixo nivel, claro que encontramos este tipo de pessoa em todas as classes sociais, não é preciso ser vagabundo, certo? quanto á tua questão, aqui vai a resposta. em todo o lado, só temos que estar atentos para quando essa pessoa se cruzar connosco sabermos tratá-la bem e cuidar desse amor. basta acreditar... sofialisboa

11 outubro, 2006 09:33  
Blogger Menina Marota said...

Um texto deliciosamente brejeiro, na linguagem "corrente" portuguesa, de muitos… muitos…
Perdoa-se os erros de Português, afinal ele só fez a 2ª. Classe, apesar de que naquela altura seria muito mais instrutiva de que no tempo actual, segundo o meu falecido Pai, que jurava a pés juntos que na altura dele, quando andava na 4ª. Classe, sabia mais que muitos "finórios" da preparatória actual. Bem… acabou por se formar em Ciências Económicas (este curso ainda existe?) e foi um grande Homem.
Bem… mas eu nem ia falar do Papá… mas comovi-me tanto e quando isso acontece, recordo sempre as lições de vida que recebi dele…
Excelente texto! Digno de figurar em publicação.
Um abraço carinhoso e grata pela partilha deste Blogue ;)

12 outubro, 2006 12:42  
Blogger RD said...

Como diria um amigo holandês se pudesse ler este texto:

Deze tekst is geniaal! Heel goed, mijn vriend Melenas!

Trabalho de Génio... o texto e a leitura do Luiz no Lugar aos Outros!

Faço uma vénia a ambos!

Rui Diniz

12 outubro, 2006 13:53  
Blogger Menina Marota said...

Já ouvi, pelo menos três vezes e em computadores diferentes, este texto lido pelo Luís Gaspar, para o "apresentar" a Amigos meus.
E, disseram-me uma coisa muito interessante: este texto e a interpretação do Luís dava um óptimo programa de TV. Muito melhor que certos que andam por aí.
Fantástica a interpretação do texto, dando ainda mais realce ao próprio texto.
Obrigada a ambos por este momento.

Um abraço carinhoso ;)

12 outubro, 2006 16:58  
Blogger Amita said...

António, parabéns. Um excelente artigo. Confesso que quando comecei a lê-lo pensei na dificuldade que deverias ter tido em escrever como um mendigo com a 2ª classe e ia felicitar-te por isso. A 2ªparte foi uma surpresa pois desconhecia este caso. É de lamentar a existência de pessoas tipo "Sr. Ministro" (elite oca, sem escrúpulos, sem coração, desumana) e fico a imaginar que bela escrita seria a deste mendigo se tivesse tido a oportunidade de mais instrução.
Regressei de férias e, com a calma que me caracteriza, ando a passar pelos amigos. Irei também ouvi-lo pela voz do Luís Gaspar na sua excelente interpretação tanto em poesia como em prosa.
Obrigado, António, por nos dares a conhecer mais um caso de vida.
Com carinho te deixo um abraço

13 outubro, 2006 00:10  
Blogger Amita said...

Olá António

Acabo de deixar o Estúdio Raposa e a excelente interpretação deste teu artigo pela voz do Luís Gaspar.

Aos dois felicito e agradeço pelos belos momentos que passei ao vosso lado.

Um abraço, António, e a continuação de um bom Domingo

15 outubro, 2006 18:44  
Blogger Menina Marota said...

Espero que não se importe que leve "emprestado" o desenho a carvão que tem ali postado na "Rainha de Sabá"...para alindar um poema da Maria Tersa Horta, que espero postar ainda hoje.
Algum inconveniemte, será de imediato retirado.
Grata.
Um abraço

18 outubro, 2006 19:37  
Blogger António Melenas said...

Pois não, è um prazer ver um desenho de minha autoria alindando o seu blogue, o qual tem sempre fotos que eu morro de inveja não encontrar disponíveis por aí. Disponha.
Abraço

18 outubro, 2006 20:38  
Blogger Poesia Portuguesa said...

Um excelente texto, numa bela interpretação, que aliás o Luís Gaspar já nos habituou e bem...tal como a poesia de Sebastião da Gama, cujo texto me emocionou e que resolvi partilhar no Poesia Portuguesa.
Um abraço e grata pela partilha de tão belos textos.

18 outubro, 2006 21:55  
Blogger Menina Marota said...

Obrigada António, por me deixar partilhar no Menina Marota, um desenho tão belo.

ah... e não morra de inveja... com um pouco de paciência, descobrirá imagens disponíveis por aí... é só preciso um pouco de paciência e busca...

Um abraço e mais uma vez grata pela partilha ;)

18 outubro, 2006 22:01  
Blogger Ricardo Pereira said...

Mais um excelente texto a juntar a todos os outros que jé é habito aqui ler. um abração vô antónio

20 outubro, 2006 01:46  
Blogger sofialisboa said...

só espero que a tua ida não seja por razões de saude...bom fim de semana
sofialisboa

20 outubro, 2006 13:53  

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