ERRO DE CASTING
Pela tardinha, quando a canícula amaina, vou até à beira do rio. O passeio é curto. Não são mais do que trezentos metros a distância que separa a minha casa do cais, mas sempre dá para desentorpecer as pernas e apanhar um pouco de sol, perdida já agressividade de horas atrás.
Caminho um pouco ao longo do cais; detenho-me vendo os pescadores enrolando sofregamento os carretos; acompanhanho-os na solidária e quase sempre defraudada esperança de ver surgir algum peixito rabejando na ponta do fio; extasio-me com a moldura em contraluz da ponte sobre espelho refulgente das águas; sigo o esvoaçar caprichoso das gaivotas no céu enrubescido do ocaso; distraio-me com o ruído cadenciado de um ou outro rebocador a caminho da outra margem, ou de um cacilheiro que chega, mas logo me canso e acabo por entrar num dos vários cafés que por ali há, por sinal quase sempre o mesmo.
Ali me acomodo um bom pedaço de tempo, diante da incontornável “bica”, que nem sequer preciso de pedir, pois o empregado logo se apressa a servir-ma mal me vê entrar. Comigo levo sempre um jornal, um livro ou umas folhas de papel para escrevinhar algo que me venha à cabeça, mas quase sempre acabo por não ler uma página nem escrever coisa nenhuma. Prefiro ficar a olhar a gente apressada, que sai a correr dos barcos para apanhar o autocarro com destino a uma das várias localidades, que a caminho de Sesimbra ou a caminho da Costa, sem solução de continuidade, se sucedem à beira da estrada.
Os mais novos, porém não tendo que ir comprar um artigo em falta, na mercearia local, ir fazer o jantar, buscar os filhos ao infantário ou cuidar de outros inadiáveis interesses, gostam de ficar por ali, petiscando, bebendo umas imperiais, conversando, namorando principalmente. Há muitos que vêm quase todos os dias. Já os conheço, escuto as suas conversas, participo dos seus anseios, enterneço-me com algumas das suas pieguices, incomodo-me com as suas queixas, enervo-me com as suas zangas. Aprende-se muito ouvindo as conversas dos outros, Ou será isto desculpa para justificar o meu espírito de velho bisbilhoteiro?
Há meses que venho observando um casalinho de namorados. Já me conhecem e cumprimentam-me quando chegam. Um “boa- tarde” apenas, que o tempo se faz pouco para refrescar a goela com uma bebida fresquinha e logo mergulhar em arrufos e carícias de namorados, para quem nada nem ninguém à sua volta parece fazer parte do seu planeta privativo
A partir de determinada altura, contudo, tive a sensação de que o seu relacionamento começou aos poucos a esfriar. Primeiro, saiam abraçados do barco, era abraçados que entravam no café, era abraçados que se sentavam à mesa e era juntinhos, de cabeças encostadas que saboreavam as suas bebidas, por entre risinhos, carícias e olhares apaixonados. A partir de certa altura, o braço dele continuava envolvendo-lhe a cintura enquanto caminhavam, mas o dela permanecia caído ao longo do corpo; depois passaram a entrar sem mostras de contacto físico, sentando-se silenciosos e de olhar distante. Posteriormente percebia-se que ele a questionava e ela, ou se reduzia a um obstinado silêncio, ou lhe respondia num tom seco e algo desabrido.
Aqui há tempos, já nesta fase de indisfarçável dissonância, sentaram se numa mesa geminada com a minha (há várias assim naquele café) e não pude deixar de escutar o que diziam:
- Mas porquê, porquê”, sussurrava ele,”como é que deixaste de gostar de mim, assim, do dia para a noite?”. E ela “moita-carrasco”
- “Porquê “, voltava ele a insistir.
Caminho um pouco ao longo do cais; detenho-me vendo os pescadores enrolando sofregamento os carretos; acompanhanho-os na solidária e quase sempre defraudada esperança de ver surgir algum peixito rabejando na ponta do fio; extasio-me com a moldura em contraluz da ponte sobre espelho refulgente das águas; sigo o esvoaçar caprichoso das gaivotas no céu enrubescido do ocaso; distraio-me com o ruído cadenciado de um ou outro rebocador a caminho da outra margem, ou de um cacilheiro que chega, mas logo me canso e acabo por entrar num dos vários cafés que por ali há, por sinal quase sempre o mesmo.
Ali me acomodo um bom pedaço de tempo, diante da incontornável “bica”, que nem sequer preciso de pedir, pois o empregado logo se apressa a servir-ma mal me vê entrar. Comigo levo sempre um jornal, um livro ou umas folhas de papel para escrevinhar algo que me venha à cabeça, mas quase sempre acabo por não ler uma página nem escrever coisa nenhuma. Prefiro ficar a olhar a gente apressada, que sai a correr dos barcos para apanhar o autocarro com destino a uma das várias localidades, que a caminho de Sesimbra ou a caminho da Costa, sem solução de continuidade, se sucedem à beira da estrada.
Os mais novos, porém não tendo que ir comprar um artigo em falta, na mercearia local, ir fazer o jantar, buscar os filhos ao infantário ou cuidar de outros inadiáveis interesses, gostam de ficar por ali, petiscando, bebendo umas imperiais, conversando, namorando principalmente. Há muitos que vêm quase todos os dias. Já os conheço, escuto as suas conversas, participo dos seus anseios, enterneço-me com algumas das suas pieguices, incomodo-me com as suas queixas, enervo-me com as suas zangas. Aprende-se muito ouvindo as conversas dos outros, Ou será isto desculpa para justificar o meu espírito de velho bisbilhoteiro?
Há meses que venho observando um casalinho de namorados. Já me conhecem e cumprimentam-me quando chegam. Um “boa- tarde” apenas, que o tempo se faz pouco para refrescar a goela com uma bebida fresquinha e logo mergulhar em arrufos e carícias de namorados, para quem nada nem ninguém à sua volta parece fazer parte do seu planeta privativo
A partir de determinada altura, contudo, tive a sensação de que o seu relacionamento começou aos poucos a esfriar. Primeiro, saiam abraçados do barco, era abraçados que entravam no café, era abraçados que se sentavam à mesa e era juntinhos, de cabeças encostadas que saboreavam as suas bebidas, por entre risinhos, carícias e olhares apaixonados. A partir de certa altura, o braço dele continuava envolvendo-lhe a cintura enquanto caminhavam, mas o dela permanecia caído ao longo do corpo; depois passaram a entrar sem mostras de contacto físico, sentando-se silenciosos e de olhar distante. Posteriormente percebia-se que ele a questionava e ela, ou se reduzia a um obstinado silêncio, ou lhe respondia num tom seco e algo desabrido.
Aqui há tempos, já nesta fase de indisfarçável dissonância, sentaram se numa mesa geminada com a minha (há várias assim naquele café) e não pude deixar de escutar o que diziam:
- Mas porquê, porquê”, sussurrava ele,”como é que deixaste de gostar de mim, assim, do dia para a noite?”. E ela “moita-carrasco”
- “Porquê “, voltava ele a insistir.
- Não deixei de gostar de ti, já te disse, mas gosto mais da Isabel, estou apaixonada por ela. Ela preenche-me mais. Não te sei explicar...nem a mim própria, quanto mais a ti…
- Não tens vergonha? Apaixonada por uma gaja, quando tens aqui um homem, sem defeito, que te ama e daria tudo por ti?.
E ali ficaram, renhonhó, renhonhó, contrapondo argumentos, ela de cabeça baixa, e ele a insistir na pergunta à qual ela não sabia ou não queria dar resposta. “Porquê, porquê, como podia aquilo acontecido?”.
Às duas por três, como ele não se conformasse nem parasse com as perguntas, ela passou dos monossílabos a que se remetera durante todo o interrogatório a uma resposta definitiva muito categórica:
- Já te disse gosto dela e se não te conformas tanto pior para ti.
Dito isto, levantou-se de rompante, pegou na mala e saiu porta fora.
O rapaz ali ficou, pálido, olhar perdido no vácuo, cotovelos fincados na mesa, cabisbaixo, sem uma palavra. Tive pena dele. Usando do estatuto de respeitabilidade que os cabelos branco me conferem, tentei animá-lo:
- Então meu amigo? Arrufos de namorados, não é? Isso passa, vai ver.
O rapaz precisava absolutamente de desabafar e, tranquilizado pelo meu ar paternal, soltou-se lhe a língua como se de um velho amigo se tratasse:
- Esta gaja! Imagine o senhor que estávamos para casar, tudo corria bem entre nós e de repente sai-me com esta: que se apaixonou por uma fulana e já não quer casar comigo. Já viu uma coisa destas?
- Olhe, meu amigo, sabe que mais. Arranje outra namorada, finja-se desinteressado, desperte nela o espírito de competição, e vai ver que ela volta para si. As mulheres às vezes têm destas reacções.
- Já experimentei isso, tornou o rapaz. Não deu qualquer resultado. Passei várias vezes com outra rapariga, abraçando-a, mesmo em frente dela e a sua reacção foi nula.
- Hum, então a coisa está feia para si. A estratégia terá de ser diferente, Num caso destes só com uma terapia de choque. Diga-me uma coisa: O que é que lhe dói mais? É ela gostar de outra pessoa ou o facto de o trocar por uma mulher?
- Pois é aí é que está o principal problema. Aceitaria melhor se ela me tivesse trocado por outro homem. Agora por uma mulher… não sei.. é mais humilhante para mim
- Pois bem, finja que também você se passou para o lado de lá e que “está saindo”, como vocês dizem, com um fulano qualquer, por quem se apaixonou. Não me admiraria nada que ela, ferida também no seu amor próprio, voltasse a interessar-se por si.
O rapaz, fez uma cara de espanto - porventura não maior do que aquele que eu estava sentindo em relação a mim mesmo pelo estapafúrdio conselho que acabara de dar - e olhou-me com ar desconfiado e hostil.Muito provavelmente deve ter pensado que eu seria larilas e que as minha palavras envolviam uma proposta de aliciamento. A apreciação que fez do meu aspecto de venerável ancião deve tê-lo sossegado a respeito das minhas intenções ou tendências. Ficou um breve instante silencioso a digerir o inédito da situação, mas logo retorquiu com ar agastado:
- Que ideia! O senhor deve estar a gozar comigo, só pode ser. Olhe que eu sou muito homem, ouviu? Nem a brincar me diga uma coisa dessas. Até porque, se ela está embeiçada lá pela outra, não iria mudar de atitude por eu andar metido com um gajo.
- Eu não estaria tão seguro disso. As mulheres não reagem exactamente como nós. Ela estará embeiçada, como você diz, por alguém do mesmo sexo, mas ela não lhe disse que não gostava de si, apenas lhe disse que gostava “mais” da outra. As mulheres porém têm em muito apreço a virilidade de um homem e sabem em que conta nós próprios a temos também. Ora, a sua namorada, que ainda gosta de si, não se esqueça, iria ficar muito mortificada se soubesse que, por causa dela, você estava em vias de abdicar de um atributo que ela também aprecia em si e, nem que fosse por uma espécie de instinto maternal – que a mulher tem sempre pelo homem que ama - ela poderia muito bem abdicar da paixão que agora sente pela amiga para vir em seu socorro e reatar o namoro que agora parece, de todo, não lhe interessar.
- Olhe meu caro senhor, vou-me mas é embora que o senhor já me está a atrofiar a mona.
- Vá, vá, mas se está interessado em recuperar a moça, pense no que eu lhe disse.
E o rapaz lá saiu porta fora, cara fechada, sem sequer se despedir
Durante várias semanas não apareceram pelo café. De vez em quando via-os passar, nunca juntos nem, desembarcados do mesmo barco, ao longe, a correr para o autocarro. De repente, um belo, dia, lá apareceram os dois, muito agarradinhos, como se nada nunca os tivesse separado. O rapaz viu-me ao fundo e sorriu-me, Sentaram-se numa mesa afastada, e de lá, de forma discreta e ar sorridente, levantou para mim o polegar no gesto convencional de que estava tudo OK.
A certa altura, a pretexto de ir à casa de banho, ou porque tivesse mesmo necessidade de a utilizar, parou junto da minha mesa, com um ar radiante e confidenciou-me.
- O senhor tinha razão, segui o seu conselho e olhe a prova está à vista. Aí está ela, caidinha por mim, como se nada se tivesse passado. Estamos de novo a pensar em casar. Devo-o a si. Obrigado.
De volta para o seu lugar ainda me atirou uma piscadela de olho cúmplice. E lá ficaram os dois arrulhando ternuras de um amor renovado. É o que se chama curar a sarna com o pelo do mesmo animal, pensei com os meus botões e muito ufano com o resultado dos meus conhecimentos psicológicos de velho convencido.
Novas semanas se passaram sem voltar a vê-los, até que, um dia, , na volta de um mais alargado passeio pelo cais, foi logo à saída do barco que me cruzei com ele. Deu-me a impressão que me viu mas ia a tentar passar sem me falar. Como a minha curiosidade é maior do que a minha discrição, interpelei-o:
- Então, então, não vos tenho visto, Como vai o namoro?
- Acabámos com tudo, respondeu com um ar atrapalhado e estugando o passo, como quem não quer muita conversa.
- Mas ia tudo tão bem, admirei-me eu
- Pois ia, mas sabe, cheguei à conclusão de que gosto mais do Fernando. Que é que eu posso fazer?
E lá foi a correr para apanhar o autocarro. Ali fiquei embasbacado e com a desagradável sensação de ter desencadeado sentimentos que não estava mais na minha mão controlar. A minha intervenção como consultor sentimental tinha sido um puro desastre.
Já nem entrei no café. A hora era um pouco mais tardia, o movimento de passageiros saindo dos barcos era agora diminuto, o sol mergulhava ao longe no rio, por detrás da ponte e, antes que de todo desaparecesse, apressei-me a ir para casa, comer a sopa.
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10 Comments:
Ah ah ah! O meu amigo, no fundo, impediu um casamento desastroso e condenado ao fracasso. Como tal, acho que merece boa nota na sua "pedagogia das relações amorosas". Beijinhos.
É um a história do arco da velha! Mas talvez uma das mais bem escritas deste blogue.
Continuee, meu amigo
Carlos P.
Caro António, esta história, com um bom argumentista, daria um grande filme em Hollywood! Qual Brokeback Mountain qual quê, isto iria-se tornar um clássico! Agora falando um pouco mais a sério! Esta história é um pouco arrepiante. :D
Um grande bem-haja a todos!
Cesário Garcia
ah... realmente a tradição já não é o que era... deixemo-los ser felizes... eheheh ;)
Foi um belo empurrão da sua parte q fez com q o rapaz se encontrasse c a verdade sobre ele próprio!!!
Gostei deste blog, tentarei voltar mais vezes!!
vim aqui por sugestão de uma amiga e gostei da historia, só tenho pena que os valores de mulher e homem estejam tão baralhados...sofialisboa
Aqui temos a prova de que nos perdemos em convenções em vez de as usar para nosso benefício e que as coisas mudam e tentarmos agarrar-nos ao que gostamos evitando o que não gostamos só nos leva a sofrer.
A vida é feita caso a caso, mas as convenções são rígidas, preto e branco, sem cinzentos, sem tonalidades. É insuficiente. Devemos saber quando soltar-nos do que está instituido, pois as convenções, tendo sido criadas por nós para nosso uso e benefício, não passam ainda assim de uma série de ilusões. Se assim não fosse, imaginem-se sobreviventes de um cataclismo enorme; haveriam aí ricos ou pobres, nacionalidades, estatutos? Não nos percamos nelas :-)
Obrigado pelo excelente relato, Caro António Melenas!
FA BU LO SO, adorei este texo pela maneira como o escreves e pelo facto de ser um tema tão presente nos dias de hoje, quantos casos eu conheço (não pela parte dos ciumes) de pesoas que descobrem este tipo de interesse, quantas pessoas ajudei e quanto mudei com essas mesmas pessoas...
Afinal apercebi-me de que é normalissimo, de facto não é igual ao relacionamento homem/mulher, mas se formos a ver... não existem dois relacionamentos heterosexuais iguais, as pessoas pura e simplesmente são todas diferetes. Num casal homosexual existirão talvez mais coisas ás quais as pessoas se terão de adaptar mas no fundo o que prevalece é o amor entre dois seres, um amor e um interesse verdadeiro onde de facto o que está dentro, a pessoa e os seus sentimentos, é o que conta... com o que está por fora lida-se depois. Um grande abraço António
Queria comentar o texto de cima, mas o local do comentário não existe...pena!! Mais tarde talvez possa enviar por mail o que queria dizer...
Abraço ;)
É verdade, não sei porque carga de água o post do "Pão Centeio" aparece sem local para comentários e a averdade é que não comsigo corrigir esse errro.
Se quiser enviar or e-mail, o meu endereço é
a.j.gouveia@netcabo.pt
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