4.15.2006

ENCONTRO AZARADO

Foi por volta de 1950, tinha eu, portanto, na altura, uns 21 anos. Vinte e um anos no Bilhete de Identidade, pois na verdade, afastado da realidade da vida pelos anos de clausura no seminário, a minha estrutura mental era talvez mais a de um deslumbrado moço de 18 anos.

Tendo entrado para os escritórios da CP em 1948, trabalhava então nos escritórios de Santa Apolónia, onde viria a permanecer até 1956, altura em que fui transferido para os Serviços Centrais, na Calçada do Duque, onde me mantive, não sem alguns acidentes de percurso, até me reformar em Fevereiro de 1989.

Pois por volta de 1950, como ia dizendo, no meu local de trabalho ou onde calhasse, eu, com o entusiasmo irresponsável dos meus verdes anos, não me coibia de manifestar a minha opinião contra o regime salazarista, no qual tive a infelicidade de ter nascido e vivido grande parte da minha existência. Essa minha sanha anti-salazarista era, contudo, relativamente recente, e portanto mais intransigente, como acontece com todos os recém- convertidos. Na verdade, desde os bancos da escola primária e passando pelo seminário, toda a minha formação tinha sido orientada no culto do Estado Novo e na admiração babada pelo “Manholas”, seu sumo pontífice.

Só que, mal me vi livre da teia obscurantista em que vinha sendo enredado, a influência do meu irmão Zé - desde os 14 anos envolvido militantemente na luta contra a ditadura - e do próprio meio social em que vivia, fizeram despertar em mim o espírito de classe de que não me tinha dado conta - o qual tinha forçosamente de me levar a decidir sobre qual era o lado certo do meu campo de luta.

Nas empresas, como nas fábricas, nas oficinas, nas escolas, nas colectividades culturais e de recreio, nos clubes de campismo, nas direcções das bibliotecas e mesmo nos sindicatos fascistas, o Partido tinha sempre alguém, que, muito à socapa e com grandes riscos, divulgasse a sua ideologia, as suas actividades, fizesse chegar a sua literatura clandestina e organizasse (ou tentasse organizar) uma pequena célula partidária. Assim, obviamente, acontecia na CP.

Ora, o meu inflamado e algo ingénuo proselitismo de neófito, cedo foram notados pelos colegas mais antigos – e havia muitos na CP - que igualmente não morriam de amores pelo regime então vigente, e logo um deles, acautelando-se de olhares indiscretos começou a meter-me no bolso, com regularidade, muito bem dobradinhos, os conhecidos panfletos e jornais do Partido, impressos em papel finíssimo, por uma questão de eficácia, e segurança, que permitia até, em casos de aperto, como algumas vezes aconteceu, serem rapidamente engolidos nas barbas da própria polícia, por quem com eles era apanhado.

Encorajado pela minha tácita aceitação dos referidos folhetos e jornais, passou depois a pedir-me que assinasse petições para libertação dos presos políticos, e alguma contribuição monetária para ajuda às famílias dos mesmos - acções a que eu nunca me escusava, pelo que em breve ganhei a confiança e a amizade de um grupo de colegas unidos pelo seu anti-salazarismo militante e, aos poucos, passei a ser um deles

Certo dia, o colega que me contactava foi transferido para o Norte e era preciso encontrar alguém que o substituísse nas suas tarefas políticas. Claro que a escolha recaiu imediatamente no “puto”, que era eu. Porque era fixe, porque era solteiro, porque tinha mais vagar e nenhuma responsabilidade familiar e... sobretudo, porque nessa idade eu era incapaz de dizer não a uma causa generosa. Um factor, porém, que grandemente contribuiu para a imerecida aura política que passei a gozar junto dos outros colegas (agora já chamados de camaradas) foi o facto de ser irmão do Zé Gouveia, esse sim, militantemente “engagé” desde os seus treze ou catorze anos.

Assim, o colega transferido, obtida a minha um tanto inconsciente anuência, indicou-me para lhe suceder, ao seu contacto imediatamente superior, a quem forneceu todas as informações sobre o meu carácter, convicções políticas, e capacidade intelectual e organizativa que, no seu entender (vá lá saber-se porquê) eu possuiria, bem como a forma de contactarem.

Duas ou três semanas depois, recebo um telefonema, no escritório. A voz do outro lado do fio, após se certificar de que estava a falar com a pessoa certa e de se identificar através de uma senha cuja chave me havia sido previamente fornecida, disse-me que vinha da parte de X (o nome do meu colega) e queria encontrar-se comigo. Gaguejei, “bem eu…sim…não sei...” e lá acabei por concordar, tendo o encontro ficado marcado para as 19.15 horas de determinada data, numa rua, cujo nome não me recordo, ali para os lados da Mouraria, junto a um pilarete que encimava umas escadinhas situadas junto à esquadra da PSP, por detrás da capela da Senhora da Saúde.

Perguntei-lhe como nos reconheceríamos. Não te preocupes. Eu conheço-te porque já te vi várias vezes com o teu irmão. E quanto a mim, quando me dirigir a ti vais saber imediatamente que sou eu, porque sou coxo.

No dia aprazado nem fiz nada de jeito no escritório (aliás já nem dormira bem de noite) tão preocupado estava com a responsabilidade do imbróglio em que me ia meter e dos perigos daí decorrentes. O caso não era para menos, pois me lembrava de que, poucos anos antes, em Moscavide, certa manhã em que a rua principal apareceu coalhada de panfletos contra o regime, terem prendido e espancado um sujeito meu conhecido, que nem ler sabia, só pelo facto de se ter baixado e apanhado um desses panfletos, para os quais olhava, como boi para palácio, tentando por mera curiosidade decifrar o seu significado

Nesse tempo, a hora de saída nos escritórios da CP era às 17.30 e como faltava ainda muito tempo para a hora do encontro, vim a pé, desde Santa Apolónia, caminhando sem pressas, olhado distraidamente as montras e com mais atenção as garotas, até ao Rossio. Aí, entrei na Tendinha, à esquina da Rua do Arco Bandeira, comi uma bifana, daquelas que fritavam eternamente numa enorme frigideira negra, cheia de banha, na montra, bem à vista dos transeuntes. Sempre desconfiei que o gorduroso molho da fritura nunca era renovado, mas a verdade é que exalavam um cheirinho tão apetitoso, que faziam crescer água na boca ao mais enfastiado dos mortais.

Ora eu, como bastante mortal que sou (ai de mim!) e nada enfastiado, aproveitei a paragem para me regalar com uma dessas apelativas bifanas, que fiz questão de regar com um bem aviado copo de três, a transbordar daquele carrascão que deixava argolas roxas no mármore encardido do balcão, lembram-se?
Nessa altura a cerveja estava longe de merecer a preferência que hoje, sobretudo os jovens, lhe dispensam, toda a gente preferindo o tintol, muito por culpa do inquilino de São Bento que incentivava o seu consumo com a cínica máxima de que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses.

Mas sigamos em frente, que com esta história de bifanas e tintol ainda acabo por chegar atrasado ao meu encontro. Verdade seja que, muito provavelmente, esta paragem terá sido para disfarçar a cagúnfia que o dito encontro me infundia, pois o meu coração balançava entre o entusiasmo juvenil por uma experiência nova com um vago cheiro a aventura e o inevitável “cagaço” pelos possíveis (mais que certos) riscos que ela comportava.

De qualquer modo, seria imperdoável não fazer uma alusão à famosa e mais que centenária tasca do Rossio - paragem obrigatória nas minhas diárias caminhadas pela cidade, desde Santa Apolónia até à estação ferroviária de Entre Campos – percurso que não andará longe dos seis quilómetros - numa idade em que eu tinha sempre fome (fome de tudo, graças a deus)

Pois é verdade. Por essa mesma altura a que se referem os acontecimento que venho relatando, namorava eu a uma esbelta moça que trabalhava como caixa de um perfumaria ali para os lados do Saldanha. Pois, com a força que a paixão me emprestava (pudera era a minha primeira namorada!) e o vigor dos anos permitia, todos os dias, depois de sair do emprego, fazia a pé o mesmíssimo percurso que acabo de vos descrever, até ao Rossio. – só que este constituía a mais pequenas da etapas do longo périplo que me faltava percorrer.

Forçoso era, pois, revigorar forças na já citada Tendinha (tarefa a que de bom gosto com muita aplicação não deixava de cumprir) para depois, sempre a butes, atravessar os Restauradores, subir a Avenida da Liberdade, contornar o Marquês de Pombal, palmilhar a Fontes Pereira de Melo e chegar finalmente ao Saldanha, a tempo de, por volta das 19.00, ver surgir da perfumaria a figura resplandecente da minha amada.

E partir daí juntos, de mãos dadas ou enlaçados pela cintura (esta era a parte mais gostosa da maratona) percorríamos a pé e sem pressa, claro, toda a avenida da República até à estação de Entrecampos onde tomávamos o comboio para Moscavide, local da nossa residência. Pois acreditam que, pouco tempo depois, comido à pressa o jantar e sendo dia de namoro (sim que havia dias para isso, ou julgam que era à balda?) lá voltava eu, sempre a pé claro, a percorrer toda a rua principal lá do sítio (eu morava numa ponta e ela na ponta oposta, para debruçado no peitoril da sua janela (e esta sim era a parte melhor da história) passarmos um ror de tempo, que nos parecia sempre curto, trocando aquelas sabidas manifestações de amor que, por essa altura, tinha a veleidade de julgar eterno. O enlevo só terminava com a voz imperiosa da mãe, invisível mas atenta guardiã, lá dentro, a dizer que se queria ir deitar – o que significava, em linguagem de namorados, que o paraíso ficava adiado para a próxima sessão do programado dia de namoro. Amor, amor, a quanto obrigas!
* * *
Pois desta vez a amada teve de voltar para casa sozinha, coitada. Coitada dela e coitado de mim, que a essa hora, além de não gozar da sua habitual e desejada companhia, estava a caminho do princípio de uma eventual grande encrenca.

Deixada então para a trás a Tendinha, dirigi-me ao Martim Moniz, bem devagarinho, como que a retardar o esperado e temido encontro, sempre olhando para os lados, sempre receoso que qualquer pessoa que me fixasse mais demoradamente pudesse ser um bufo ou um pide que lesse na minha cara os subversivos desígnios da minha missão. Só quem viveu esses tempos sabe do que estou a falar. O regime nem precisava de agir para trazer todo o mundo em transe, num estado de receio e suspeição permanentes

Subi depois as tais escadinhas por detrás da capelinha da Senhora da Saúde e achei-me no sítio indicado.. Lá estava o pilarete ao cimo das escadas, num larguinho onde, se bem me lembro, (nunca mais ali passei) convergiam duas ou três ruelas – um típico terreiro de aldeia implantado na centro da cidade..

Fiquei postado na embocadura de uma dessa ruas, olhado fixamente o pilarete, sem dele me aproximar, não fosse tratar-se de uma cilada, e aguardando que alguém, coxeando, dele se aproximasse. Pois faltavam três minutos para a hora combinada, quando um fulano, aparentando uns 40 anos e inequivocamente coxo, surgiu de uma das ruelas, parou junto do pilarete, olhou em volta e ali permaneceu, meio encostado, meio sentado, talvez para descansar a perna bamba,

Embora um pouco surpreendido pelo ligeiro avanço em relação à hora fixada, pois uma das normas destes encontros conspirativos era, por motivos de segurança, a observação de uma rigorosa pontualidade, concluí que só podia tratar-se do meu contacto. Saí então do meu posto de observação, dirigi-me a ele, bati-lhe nas costas e com o melhor sorriso e a expressão mais afável que consegui arranjar, saudei: “olá Amigo, sou eu...” Pois em vez do sorridente “olá camarada” que esperava, vi o homem levantar-se, encarar-me de rosto fechado e hostil e invectivando-me de forma grosseira, num tom de voz audível por toda a gente que passava e por algumas velhotas que, debruçadas à janela, apanhavam os últimos raios de sol da tarde que declinava e espreitavam os transeuntes, como é de hábito em bairros populares como aquele. E o que os meus incrédulos ouvidos escutaram foram mimos como: “Que é isso? Temos paneleirice a bordo ou quê? Olha-me este gajo! Põe-te a milhas, pá..Daqui não levas nada.” Corei (como todos os louros sempre corei com muita facilidade) titubeei e só consegui balbuciar “mas eu sou....” “ Quero lá saber quem tu és, pá, desaparece.... paneleiro do c......”

Começou a juntar-se gente, eu engasgado, atarantado, atónito, sem saber que fazer à minha vida, só achei uma solução: desaparecer o mais rapidamente dali para fora, sob os insultos dos circunstantes que, como é habitual (e então naquele tempo !) acharam por bem tomar partido pelo pacato cidadão que eles quiseram acreditar fora molestado pelo indecente “paneleiro” que eu era.

Assim, em jeito de farsa cómica, acabou o meu primeiro encontro conspirativo.
** *
Vim a saber mais tarde que o meu verdadeiro contacto chegou ao local logo a seguir, mas perante o burburinho em que me viu envolvido houve por bem fazer uma imediata retirada estratégica, conforme as normas conspirativas obrigavam.

Mas, como diz o ditado, há mais marés que marinheiros e para bem ou para mal houve ocasião para outros encontros que vieram a causar-me alguns, esperados dissabores, mas dos quais não me arrependo até hoje..

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

António
Pelo que aqui nos contas, naquele tempo não eram lá muito exigentes no que diz respeito a sinais de identificação para êsses encontros mais ou menos clandestinos!
Que era coxo..
Dizia o saudoso Vasco Santana num filme cujo nome agora não recordo, "...chapéus há muitos!". Pois coxos, não há tantos mas sempre há alguns.
Se fosse hoje a coisa fiaria mais fino, o indivíduo traria na mão o DN ou o Correio da Manhã,(na mão ou debaixo do braço, direito ou esquerdo ), ou um cravo na lapela ou um ramo de fores na mão, enfim, qualquer coisa mais sofisticada.
O tipo podia ao menos ter dito de que perna coxeava, sempre era uma ajuda !
Bem, agora a sério, este escrito está ao nível a que já nos habituaste nos "Outonais", melhor do que bom. Começa-se a ler e só se pàra no fim.
Um abraço.
Xico

16 abril, 2006 10:06  
Blogger António Melenas said...

Amiga Sara,
Sabes que tendo lido o teu comentário ainda meio ensonado, logo que me levantei,confundi tudo e entendi que tinhas achado exagerada a minha reacção face à atitude do coxo. E logo pus aqui também um comentário em que estranhava a tua estranheza. Foi só depois de editado, que tomei consciência de que o que tu achavas exagerada era atitude do coxo. Apaguei, portanto, esse meucomentário (felizmente isso pode ser feito!) que substitúo por este. Quanto à reacção do homem, não fazes ideia de como, nesse tempo um fulano, sobretudo do extracto social a que aquele devia pertencer, odiava viceralmente qualquer manifestação de homosexualidade. Agora imagina um desconhecido, lourinhho, franzino, delicado,com sorriso cativante,a bater-lhe no hombro chamando-lhe amigo... Tás a ver... Só me restava pôr-me a milhas
Bjs
António

16 abril, 2006 11:33  
Blogger António Melenas said...

Oi Xico,
não te esqueças que o meu interlocutor não precisava de uma identificação muito exigente, uma vez que ele me conhecia. Falas em levar um ramo de flores ou coisa assim pra melhor identificação...´´É claro que é uma "plaisanterie" da tua parte, mas, se assim já foi o que foi, imagina se eu aparecesse com um raminho de flores
Abr.
Toino

16 abril, 2006 20:39  
Anonymous Anónimo said...

Toino

Se o fulano com quem te ias encontrar já te conhecia,tu não precisavas de sinal que te identificasse!
Como não o conhecias, era êle que precisava de qualquer coisa que te desse a perceber que era êle o tal.
Portanto, se o sinal combinado fosse o ramo de flores, não serias tu a levá-lo !
Inté.
Xico

16 abril, 2006 21:06  
Blogger Ricardo Pereira said...

gostei muito desta historia antonio, alias, como gosto sempre.
devem de ter sido tempos muito dificeis aos quais não damos o minimo valor nem fazemos a mínima ideia de como eram e de como somos sortudos por podermos ser "livres".
e o final...ai aquele final...de ir ás lagrimas de riso.
aquele abraço.

19 abril, 2006 23:43  

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