GRAVATAS & BRAVATAS...
Um jovem que leia hoje esta ordem de serviço, vai por certo esbugalhar os olhos de espanto. O quê? não poder trabalhar em mangas de camisa, ou sem gravata, ou arregaçar as mangas, sequer? Vestir um casaquinho, de cotim, ou de alpaca ou de outra droga qualquer, como diz o texto?
Pois era mesmo assim, meus caros. E não se pense que, pelo menos até ao 25 de Abril, a situação se tenha alterado por aí além. Já quase a rondar os anos setenta ainda eu travava guerras com os meus chefes por causa do uso da famigerada gravata, Isto apesar de trabalhar num velho casarão sem contacto, sequer, com o público.
Lembro-me que um desses chefes, na ultima metade dos anos cinquenta, muito se mortificava por não conseguir que eu acatasse a ordem de pôr o bendito trapo à volta do pescoço ou vestir o casaco, quando não me apetecesse fazê-lo. O bom do homem (porque era uma excelente criatura, diga-se, pois se fosse velhaco, teria participado de mim superiormente, como lhe recomendavam ordens de serviço com esta) espelhava mesmo uma indisfarçável expressão de sofrimento de cada vez que encarava comigo desprovido do sacrossanto atavio. Para ele, o trapo em questão era um dos símbolos maiores da iconografia burocrática - religião de que era fiel devoto e na qual assentava toda a sua longa carreira de submisso manga de alpaca.
Pois era mesmo assim, meus caros. E não se pense que, pelo menos até ao 25 de Abril, a situação se tenha alterado por aí além. Já quase a rondar os anos setenta ainda eu travava guerras com os meus chefes por causa do uso da famigerada gravata, Isto apesar de trabalhar num velho casarão sem contacto, sequer, com o público.
Lembro-me que um desses chefes, na ultima metade dos anos cinquenta, muito se mortificava por não conseguir que eu acatasse a ordem de pôr o bendito trapo à volta do pescoço ou vestir o casaco, quando não me apetecesse fazê-lo. O bom do homem (porque era uma excelente criatura, diga-se, pois se fosse velhaco, teria participado de mim superiormente, como lhe recomendavam ordens de serviço com esta) espelhava mesmo uma indisfarçável expressão de sofrimento de cada vez que encarava comigo desprovido do sacrossanto atavio. Para ele, o trapo em questão era um dos símbolos maiores da iconografia burocrática - religião de que era fiel devoto e na qual assentava toda a sua longa carreira de submisso manga de alpaca.
Esta da “manga de alpaca”, muito provavelmente também nada dirá a um jovem de hoje. Se o uso de casaco durante as horas de serviço era obrigatório, o das mangas de alpaca, esse, não havia qualquer ordem de serviço que o impusesse. Só que os vencimentos eram baixos, a roupa era cara, o país era miserabilista e tacanho, a começar pelo “botas” que fazia o elogio da pobreza como se fora uma virtude. Assim, os empregados de escritório, para poupar os casacos e os punhos das camisas, usavam umas mangas de alpaca ou de merino, apertadas com um elástico em cada uma das extremidades, que enfiavam nos braços, desde o punho até um pouco além do cotovelo, só as tirando quando, ao fim da tarde, abandonavam a Repartição
Daí que aos empregados de escritório, especialmente àqueles que mais religiosamente seguissem todas estas normas, fosse dado o desdenhoso epíteto de “mangas de alpaca.
A princípio, o Chefe de que venho falando, e que designarei por C. dos Santos, ainda tentava, primeiro com blandiciosas palavras e posteriormente num tom mais duro, levar-me a cumprir com o preceito do uso da gravata, mas sempre que abordava o assunto eu lhe contrapunha que ninguém tinha nada a ver com o tipo de vestuário que eu usava, desde que o mesmo não trouxesse prejuízo a quem quer que fosse e que se eu cedesse a esse tipo de exigência, às duas por três também teria, provavelmente, de dar conta de qual o tipo de roupa interior que usava. Se vestia ceroulas ou cuecas, ou qual a cor destas, se usava peúgas ou meia até ao joelho, se usava camisola interior ou não, se esta era de cavas, meia manga ou manga inteira, e por aí adiante. Face a estas perguntas o bom do senhor C. dos Santos embatucava convencendo-se que eu era meio maluco, pois a maioria dos empregados aceitava sem reclamar o uso da gravata, ou reduzia-se a um prudente silêncio quando admoestada por contravenção dos “costumes de civilidade e compostura” citados na ordem de serviço atrás referida. Aos poucos, porém, considerando-me um caso perdido, foi aceitando com sofredora resignação o meu arreigado apego à “prática exótica e novíssima” de dispensar o honestíssimo e pudico uso da gravata.
Entretanto chegou o ano de 1960 e – coisa que não deve ter causado espanto nenhum ao senhor C. dos Santos, notório que era o meu perigoso desajustamento às regras do bom comportamento social – a Pide resolveu mimosear-me, durante três meses com a sua reconhecida hospitalidade em Aljube-sur-mer, uma das suas conhecidas estâncias de repouso, ali para os lados da Sé.
Quando voltei à Empresa, o Chefe de Serviço consentiu que eu começasse a trabalhar mas que deveria ir à Pide., o mais breve possível, solicitar uma declaração em como aquela entidade policial não via inconveniente nisso. Claro que “fui aos arames” com a exigência e neguei-me terminantemente a solicitar qualquer declaração a quem me tinha vindo buscar e me soltara, sem qualquer explicação. Quem tivesse dúvidas que fosse lá esclarecê-las. Foi o que devem ter feito pois não mais me voltou a ser pedida qualquer informação por parte da Pide. Este é um exemplo clássico de como as pessoas e os organismos se punham de cócoras diante da polícia de Salazar e iam por vezes mais longe do que ela, com exigências suplementares que escapavam ao seu controlo. É assim o fascismo.
Em contrapartida, poucos dias, depois achei-me transferido, sem qualquer explicação para outro sector onde se efectuava um dos serviços mais chatos que alguém possa imaginar. Não me lembro do Nome da Repartição mas a função dos empregados, sentados em frente de altos ficheiros metálicos, de um verde cor de merda, dos quais se puxavam umas estreitas gavetas contendo cada uma delas uma ficha, era registar, hora após hora, dia após dia as entradas e saídas de material das oficinas, tantos parafusos Rxk4, tantas porcas Pg7, por exemplo, mantendo à vista o saldo existente, quer em quantidades, quer em valor monetário. Enfim, uma seca e um exercício de paciência que só podia ter sido inventada pelo próprio Belzebu para punir no infernos aos impacientes da terra.
Ainda por cima, o Chefe, o senhor F.Silva tinha fama de ser frio, austero, e pouco dado a permitir que os seus súbditos se atrevessem a tomar liberdades que ele não achasse consentâneas com o seu disciplinado rigor. Quando entrei na sala - também eu precedido da fama de ser uma pessoa difícil, rebelde e ainda por cima acabado de sair da “grelha” o que, tendo sido pelos motivos que foi me dava ao mesmo tempo uma aura de prestígio - o senhor Silva levantou-se, veio ao meu encontro de mão estendida e preparava-se para a saudação de boas vindas da praxe ao novo funcionário. Seja bem-vindo senhor Gouveia, muito prazer…. Interrompi-o de pronto: Senhor Silva, que fique bem claro, eu não pedi para vir para aqui e não tenho prazer nenhum em estar cá. O homem mudou de cor. Deixou cair a mão que me havia estendido e resmungou: Pronto, pronto, também não pedi para o senhor vir para cá… a sua secretária é aquela.
O sr. Silva era alto, bastante alto mesmo, seco de carnes, olhos de um azul aguado, mortiços, que faziam lembrar os de um cachucho com largos meses de frigorífico. Os funcionários temiam-no pelo seu feitio ríspido e exigente. Ao contrário da Repartição de onde vinha, desta ninguém se ausentava sem dar uma satisfação ao chefe. Eu porém ignorei esse procedimento de aceitação tácita entre eles.
Entrava e saia sem tugir nem mugir, como sói dizer-se. Certa vez que, reentrando no escritório, passei mesmo rentinho à sua secretária sem a mínima explicação, ouvio-o desabafar entre dentes para o sub-chefe, sentado na secretária ao lado da sua: "Este homem! Eu até tenho medo de lhe dizer alguma coisa! "
No fundo, no fundo, o sr Silva era bom homem. Aliás era quase tudo boa gente. Mau, mau era o sistema político que deformava as mentalidades e obrigava as pessoas, mesmo sem disso se aperceberem, a alinhar o passo pela mediocridade, cinzentismo, autoritarismo do regime que a tudo e a todos sufocava. O mau feitio do senhor Silva, vim a descobri-lo, devia-se sobretudo ao facto de ser uma pessoa doente, enfermiça, e, mais do isso, hipocondríaco. Como ele sofresse muito de asma, confidenciei-lhe que também eu, em mais novo, tinha sofrido bastante com aquele mal e sabia bem avaliar o mau estar que aquela doença provoca. Ora! ficámos irmãos de infortúnio, embora na altura (tinha então 30 anos) não sofresse de coisa nenhuma.
Doenças eram, pois, o tema favorito do Senhor Silva. Eu apanhei-lhe o fraco e o ferrabrás que era transformou-se num pêra-doce para mim – com o que todos, afinal beneficiaram. Quando saía do escritório, dirigia-lhe apenas, de longe, um leve aceno de cabeça, que ele fazia o favor de interpretar como um pedido de autorização. Gravata, continuei a ignora-la, nunca ele me chamando a atenção para isso, apesar de praticamente todos os outros se apresentarem sempre com o sagrado trapinho à volta do pescoço, bem ajustado ao colarinho, pontas direitinhas com ajuda dos esticadores de mica que então era uso meterem-se na bainha das ditas. Quem não se lembra dos vendedores na Rua Barros Queiroz gritando aos ouvidos dos transeuntes o repetido pregão “esticadores p´ró colarinho”,, meia dúzia 10 tostões” seguido de outro em voz sussurrada “camisas de Vénus “, é preciso?”
A verdade é que, apesar das boas relações que acabei por ter com o senhor Silva, o serviço era tão chato que, logo que pude me pirei de lá, tendo sido transferido, não para uma Repartição mas para uma simples secção autónoma, com apenas 3 empregados além do chefe, Jaime Cecílio de sua graça. (deste digo claramente o nome, pois era uma pessoa muito decente e prafrentex, como agora se diz). Apesar de ele próprio se apresentar sempre de gravata, nunca faz o mínimo reparo ao facto de eu e o outro empregado (o terceiro era uma senhora), não a usarmos.
Por volta de 1965, essa secção deixou de ser autónoma, passando a ficar integrada numa Repartição, cujo chefe era, nem mais nem menos, o tal senhor C. dos Santos, do qual falei no início desta crónica e onde me encontrava em 1959, altura em que a Pide me veio buscar..
Mal tinha acabado de me instalar, o dito senhor chamou-me de lado, e com ar sumamente constrangido e tom quase implorativo assim falou: Senhor Gouveia, tenho aqui um problema, para o qual peço a sua compreensão. O Zé Martins (era um colega da minha idade mas com uma ligação de amizade e muita dependência em relação ao chefe) também gosta muito de andar sem gravata, mas consegui que não esteja ao serviço sem ela. Agora, chega você, desgravatado, e veja a minha situação! Se você persistir em andar sem gravata tenho que dar o dito por não dito e dizer-lhe a ele, que a tire também. Que é que você acha que devo fazer? Tão implorativo, como já referi era o seu tom, que a única resposta que ele esperava de mim seria uma conciliatória renúncia da minha parte à teimosia em não usar gravata.
Confesso que balancei um pouco. Mas princípios são princípios e disse apenas Senhor C. dos Santos, por favor não faça nada. Eu vou continuar sem gravata e deixe ver como é que o Zé Martins reage. Ou ele acaba por tirar também a dele e o senhor não vai poder fazer nada, ou ele se faz desentendido e continua a acatar as suas ordens.
- Vai ser o diabo, vai ser o diabo, concluiu o senhor Santos, afastando-se desolado, a coçar a cabeça.
O Zé Martins não teve qualquer reacção. Eu continuei sem gravata e ele com ela. Entretanto o “botas” caiu da cadeira, o senhor Santos reformou-se e aos poucos, todos os que não gostavam do trapo ao pescoço, foram-no deixando em casa. Por essa altura, vigorando ainda a chamada semana inglesa, - em que aos sábados apenas se trabalhava da parte da manhã - a rapaziada tinha adquirido o hábito de aproveitar o resto do dia rumando para uma das praias da Linha, sobretudo Santo Amaro. Assim nessa manhãs os escritórios passaram a ter um aspecto mais colorido com um bom número de funcionários ostentando camisas de fantasia de varias cores, colarinhos bem abertos e mangas curtas. As mentalidades tinham-se transformado e libertado de algumas das imposições que o sinistro regime tinha imposto a toda a sociedade portuguesa.
Só faltava a liberdade política. Essa chegou com o 25 de Abril, mas o povo, já tinha feito quase tudo.
Moral da história: os fascismos não se alimentam apenas da repressão física, mas também, e à vezes principalmente, de medos irracionais, de suspeições , de reverências voluntárias, de submissões não solicitadas de delações não pedidas. O espírito de big-brother paira sobre toda a sociedade, como um obsessão colectiva, sem precisar, por vezes de se impor, nem sequer pela presença dos seus guardiões. Em contrapartida, a resistência, pode ser feita através do que parecem ser pequenos detalhes sem importância: uma recusa, uma não aceitação, uma afirmação de personalidade contra a corrente do geralmente aceite e, sobretudo, contra normas impostas. Confesso até, que usar gravata nem é coisa que me incomode por aí além e tanto assim que, agora que estou reformado, que ninguém me obriga a usa-la e que até pouca gente a usa, de vez em quando, dá-me na mona e engravato-me. Porque quero.
Aliás, esta “guerrinha” da gravata, apenas falo nela, porque veio a talho de foice a propósito da ordem de serviço acima mencionada, mas muitas outras “guerrinhas” houve que eu tive de travar ao longo da minha vida profissional. Tantas que dariam lugar a outra tantas crónicas. Algumas vezes ouvi de outros colegas frases como esta: Eh pá não sejas parvo, não vale a pena arranjar complicações por uma coisa tão sem importância. Só que é de cedência em em cedência que os regimes autoritários se vão impondo. Vezes sem conta ouvi também murmurar nas costas do meu Irmão José Gouveia (quatro vezes preso pela Pide e enlouquecido numa dessas vezes) “Este gajo é um grande parvo, com uma vida boa que tem a sacrificar-se por ideias dos quais nunca vai ter qualquer benefício”.
E não é que tinham razão estas espertísimas pessoas? É verdade, mas são os “pequenos parvos” destas pequenas “guerrinhas” e os “grandes parvos” como o meu irmão (felizmente que parvos destes tem havido sempre, ao longo dos séculos) que dedicando e sacrificando a própria vida na luta pelos seus ideais, impulsionam a penosa marcha da humanidade contra o obscurantismo e pela conquista dos direitos e liberdades que dão sentido à dignidade do ser humano.
E tudo isto a propósito de gravatas? Pois é, gravatas. Quem diria?!
2 Comments:
Gravatas!!! Quem diria?
Allo allo António, peço-te imensas desculpas pela enorme falta de consideração e asiduidade por este que sempre foi um ponto de paragem obrigatório nas minhas vistas diárias da blogoesfera, mas se te serve de consolo (sendo que é mais uma forma de justificar do que consolo) também tenho andado meio parado com o meu perfect e com os comments nos outros blog pois isto tem estado mal de tempo...
Vou aproveitar e ler os outros textos que tenho em falta. Um grande abraço António
eh lá valente! Lido com prazer!
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