4.29.2006

ONDE ESTAVA NO 25 DE ABRIL?



Lembram-se do programa do Baptista Bastos em que ele fazia esta pergunta a todos os convidados? Pois é a essa pergunta que eu me proponho responder . Em homenagem ao 25 de Abril vou dizer onde estava e como foi o meu 25 de Abril. É mais um testemunho a juntar a tantos outros:


O MEU 25 de ABRIL


Ao sair de casa, naquela manhã de quinta-feira, 25 de Abril de 1974 - uma bem
cinzenta e algo enevoada manhã, por sinal - estava bem longe de pensar no fervilhar de emoções que iria experimentar ao longo desse memorável dia.


Quando, por volta das 8.30,vindo de Almada desembarquei no Cais do Sodré, para me dirigir à Faculdade de Letras, onde frequentava, na altura, o 3º ano de curso de Filologia Românica, encontrei a rua do Arsenal, pejada de tanques e de soldados, mas tudo na maior das calmas, como se aguardassem o sinal verde dos semáforos ou alguma ordem superior para se porem em marcha. Passou-me pela cabeça que fossem manobras de prevenção, pois ainda um mês antes tinha havido uma tentativa falhada de golpe militar. Admiti mesmo que pudesse ser um golpe de antecipação dos ultras.


Atravessei a formatura com o ar conformado e os resmungos interiores que estas soldadescas exibições sempre me suscitavam, subi a rua do Alecrim, desci ao Rossio, onde consegui apanhar um autocarro e lá segui para a Faculdade, onde - perante a falta de aulas, devido à não comparência da grande maioria dos alunos e dos professores - me refugiei na biblioteca, tendo ali passado toda a manhã, aproveitando o pouco tempo de que dispunha, como trabalhador estudante, para pôr em dia os meus apontamentos e preparar as frequências que se aproximavam.

Assim, tendo saído de casa sem ouvir o noticiário das 8.00, ao contrário do que era meu hábito, perdi toda uma manhã de gozo, pois quem ouvisse os noticiários da rádio e fosse minimamente politizado facilmente concluía - pelo estilo dos apelos à calma, pelo tipo de canções insistentemente transmitidas e pela personalidade dos locutores - que o golpe, fosse qual fosse o desenlace, era nitidamente de esquerda e anti-governamental.


Só quando, por volta das 12.30 cheguei ao meu emprego, na Calçada do Duque, me dei conta, com a mais louca alegria, do que realmente se estava passando e do gozo que tinha perdido durante toda a manhã encafuado na biblioteca. Claro que na CP não se trabalhou mais nesse dia, até porque o nosso local de trabalho ficava pertinho do quartel do Carmo, onde se tinha refugiado o Chefe do Governo e outras figuras importantes do regime e era nesse momento o ponto nevrálgico e decisivo da revolução.


É óbvio que, depois da manhã falhada, eu não iria perder pitada dos acontecimentos pelos quais esperara a vida inteira e já quase perdera a esperança de ver realizados. Assim, enquanto a grande maioria dos meus colegas aproveitou para ir para casa, aliás como recomendavam os insistentes apelos do M.F.A. (Movimento das Forças Armadas) - sigla que nós ouvíamos pela primeira vez mas rapidamente entrou nos ouvidos e no coração do povo - eu fiquei-me pelas redondezas. Lembro-me que fui almoçar a um restaurante de nome “Faz Frio”, ali para os lados do Príncipe Real, acompanhado de uma colega que também fazia questão de seguir os acontecimentos de perto. A esta distância - tão marcante foi o dia para mim - consigo lembrar-me com toda a nitidez, vejam só, de que o almoço era constituído por carapaus assados com molho à espanhola. Mas lembro-me também que o devorámos num ápice pois o nosso sentido estava todo no que se passava lá fora.


Assim, mal acabámos de comer, exultantes mas algo receosos, nos dirigimos para o quartel do Carmo cercado pelas tropas do capitão Salgueiro Maia. O pior é que para lá chegar foi necessário passar por ruas onde soldados da GNR emboscados em cada esquina e de armas em punho cercavam os cercadores. E lá íamos nós, esparvoados, entalados entre dois fogos que poderiam rebentar a qualquer momento. A nossa sorte e a sorte da revolução foi que o largo do Carmo - contrariando todas as recomendações do comando revolucionário - começava a encher-se de povo, o que inibia as forças da GNR de disparar. De qualquer modo, estou convencido de que só não dispararam por terem tomado consciência de que o movimento era irreversível e não quiseram ficar colocadas em má posição. Em inúmeras outras ocasiões elas tinham disparado sobre as populações, sem que qualquer prurido de consciência lhes travasse o gatilho.


Lá dentro, após varias rajadas de metralhadoras disparadas contra o quartel, negociava-se a rendição dos assustados restos do governo que durante 48 anos, com soberba e prepotência tinham sido os donos de um país amordaçado, mas onde alguns nunca se vergaram. Aproveitei o impasse para, por volta das 15 horas, dar uma saltada a Almada sossegar a minha mulher que deveria estar inquieta sem notícias minhas, num dia tão conturbado.


Mas eu não sossegava. As notícias da rádio, para além de transmitirem apelos à calma e passarem continuadamente canções proibidas até então, não adiantava grande coisa sobre o desenrolar dos acontecimentos. Assim, não tardei a meter-me num cacilheiro e voltar ao “local do crime” - neste caso ao “local da redenção”. Na baixa lisboeta passavam carros cheios de soldados que os populares aplaudiam entusiasticamente e a quem ofereciam cravos vermelhos. Vários deles traziam cravos ao peito, nos tanques e no cano das espingardas. Quando, por volta das 17 horas, cheguei ao Rossio pejado de gente e arrebatando das mãos dos ardinas o jornal “República” que já em grandes parangonas se borrifara para a censura e noticiava o golpe militar na primeira página, entraram na Praça vários carros apitando. Num deles seguia o velho general Spínola com o seu inseparável monóculo, lábios esticados no jeito insolente que o caracterizava, rosto carregado, mas correspondendo com um aceno de mão aos aplausos frenéticos das pessoas que sobre o carro se debruçavam dificultando a sua marcha.


Era para o Quartel do Carmo que se dirigia, pois que Marcelo Caetano, para que a humilhação não fosse tão grande, fazia questão de se render a um oficial de patente superior - exigência que os valorosos capitães estavam em condições de rejeitar, mas a que generosamente acederam. E eu, claro, toca de seguir também para o largo do Carmo.


Foi longa a espera. A multidão que agora enchia por completo o Largo, trepava às árvores, se encarrapitava no chafariz central se amontoava nos carros de combate, misturada com os soldados de cravo ao peito e se escarranchava mesmo nos canos dos canhões, numa moldura humana impressionante, impacientava-se e vaiava ruidosamente os sitiados que tardavam em aparecer.


Foi então que o advogado e antifascista, Francisco Sousa Tavares (pai do jornalista Miguel Sousa Tavares), ajudado por alguns populares subiu para cima de um das guaritas à entrada do quartel e através de um megafone pediu calma à multidão que assim se aquietou um pouco mais. Já a noite começava quando finalmente saiu de dentro do quartel a chaimite que transportava o último chefe do governo do regime que durante 48 longos e penosíssimos anos nos desgovernara. Foi entre vaias e apupos monumentais, mas sem desacatos que seguiu para lugar seguro, De onde embarcou dias depois para a Madeira e mais tarde para o Brasil, tratado com uma generosidade que o regime nunca usara para com os seus opositores.


Entretanto por todas as ruas da cidade o entusiasmo era indescritível. Os cravos vermelhos esgotavam nas ruas de Lisboa e enfeitavam agora as fardas e as armas dos soldados, garotos mais atrevidos partiam as montras de lojas de comestíveis no Chiado e levavam comida e bebida aos jovens militares , que um pouco por todo o lado, sem dormir, e sem comer ocupavam posições estratégicas de acordo com ordens recebidas dos capitães revoltosos. Os jornais da tarde faziam edições sucessivas que rapidamente se esgotavam, face à procura impaciente das multidões que pejavam as ruas e praças da capital, ansiosas por saberem pormenores do que estava acontecendo.


À noite, tudo era diferente no noticiário da RTP - a única estação de televisão existente na altura. Caras que nunca tinham aparecido, rostos sorridentes em vez em vez do ar solene e formal dos habituais noticiaristas. Ainda que o som faltasse nessa ocasião todo o mundo entenderia que algo tinha mudado, mas foi tarde, por volta da uma da manhã do dia 26, que surgiram no pequeno ecrã as figuras dos membros da Junta de Salvação Nacional, composta de oficiais de alta patente e presidida pelo General Spínola - a quem os capitães vitoriosos - num gesto sem precedentes e algo ingénuo, diga-se de passagem - tinham entregado o poder que acabavam de conquistar. Só então os portugueses foram descansar, depois de um dia que parecera não ter fim. Os portugueses, em geral, porque os homens da revolução iam continuar por muito mais horas sem dormir, merecendo por isso, nos órgãos da comunicação social o epíteto de “homens sem sono.


Os dias seguintes foram de euforia e de incredulidade ao mesmo tempo. As pessoas beliscavam-se para ver se estavam realmente acordadas, pois ainda parecia um sonho que o odiado regime fascista que parecia não ter fim, acabasse por se derrubado com aparente facilidade. Custava a acreditar e havia razões para isso, pois no dia seguinte, ao fim da tarde, a PIDE resistia ainda cercada por enorme multidão, na sua sede, na Rua António Maria Cardoso. O medo e a raiva levaram-nos a um último acto de selvajaria: disparando sobre a multidão fizeram as únicas vítimas do movimento triunfante. No chão daquela sinistra rua tombaram sem vida mais seis pessoas inocentes e desarmadas, a acrescentar à longa lista dos assassinatos cometidos ao logo do regime.


Nos dias seguintes a euforia continuou alastrando-se aos poucos por todo o país. Foi como se um dique que, tendo durante anos contido a vaga de anseios de todo um povo, rebentasse de repente e esses sentimentos finalmente libertos extravasassem do seu leito e impetuosamente alagassem o país. As imagens da televisão eram eloquentes. Por todo o lado, as ruas das cidades e vilas e aldeias eram rios de bandeiras e cravos vermelhos desaguando em praças e largos que se enchiam desde as calçadas atè janelas, varandas, terraços e topo dos telhados. Era toda uma nação gritando a uma só voz os mais diversos e estribilhos, saídos da mente criativa e jubilosa do povo, entre os quais sobressaía um que era gritado e repetido e repetido, até à exaustão O povo unido jamais será vencido, O povo unido jamais será vencido.


O meu local de trabalho, a meio da calçada do Duque, situava-se no centro mesmo dos acontecimentos importantes daqueles dias, pertinho como era do Quartel do Carmo e da sede da PIDE. É óbvio que, em tais condições, era difícil ficar sentado à secretária o dia inteiro, sabendo que à volta se viviam acontecimentos históricos irrepetíveis. Eu, por mim, volta não volta, vinha até ao Chiado ver como estavam as coisas.


Lembro-me de, numa dessas sortidas, encontrar o meu colega e amigo, o escultor José Santa-Bárbara eufórico, excitadíssimo, de braços no ar: “Eh pá, quando é me passou pela cabeça ver apanhar Pides à mão. À mão pá, à mão !!!” e frase morria-lhe na garganta, com a voz embargada de comoção, É que de facto, bastava alguém reconhecer um Pide na rua e gritar “agarra que é Pide!”, para que logo a multidão que enchia as ruas lhe deitar a mão e entregá-lo ao soldado mais próximo. E isto sem violências ou desacatos - o que muito deve ter surpreendido os próprios Pides, aterrados e paralisados de medo, como tive várias ocasiões de constatar.

Quando chegou o 1º de Maio, a confiança era completa. E então foi a loucura, o êxtase. De norte a sul, em todas as cidades, mas sobretudo em Lisboa, as populações vieram para a rua em desfiles intermináveis, com cartazes, bandeiras, cravos, fanfarras, gritando o seu entusiasmo, a sua confiança, a sua esperança no futuro que a revolução lhes fazia antever.

Na Praça do Areeiro, onde com a minha mulher, a minha filha (com catorze anos então) e o meu irmão José, assisti ao desfile de toda a imensa multidão da Alameda para o até então designado Estádio 28 de Maio e a partir desse dia baptizado pelo povo como Estádio 1º de Maio, pude apreciar a passagem infindável das mais diversas delegações, cada uma mais engenhosa e mais vibrante na expressão do seu fervor revolucionário, no súbito extravasar do seu sentimento de liberdade tantos anos contido. Os nossos olhos viam e nem queriam acreditar na profusão de bandeiras vermelhas com a foice o martelo, flutuando ao vento, após 50 anos de proibição absoluta. Lá vinha o Mário Soares e o Álvaro Cunhal, regressados do exílio (este ladeado de marinheiros, fazendo lembrar a revolução soviética) e tantos outros vultos da oposição perseguida. Lá vinham os presos libertados pela revolução e tantos outros que a PIDE perseguira e encarcerara.


As pessoas abraçavam-se beijavam-se, choravam de alegria. Pela parte que me toca, nunca chorei tanto na minha vida, como nesses dias inesquecíveis. A cada encontro, a cada abraço, lágrimas de emoção me corriam pelo rosto Confesso que várias vezes tive receio de não resistir a tantas e tão repetidas emoções. Era uma loucura!

Lembro-me da espontaneidade e o afecto com que o jovem advogado Jorge Sampaio, bem longe de pensar que viria um dia a ser Presidente da Republica - abandonou momentaneamente o desfile para vir, muito emocionado, cumprimentar e dar um abraço ao meu irmão José, ainda tão combalido da sua última prisão e da grave doença que esta lhe ocasionara. Aliás o 25 de Abril foi remédio santo para ele. Quando parecia estar definitivamente perdido para a vida activa, a sua mente, como por milagre, saiu do buraco escuro em que mergulhara e voltou à vida e à luta. Luta política no Partido a que pertencia e luta organizativa, na instauração e administração do poder autárquico em que, até à morte, pôs todo o seu empenho e dedicação.

Quanto a mim, a actividade sindical foi o meu campo de luta. Acabada a festa´, era preciso reconstruir o país. A sociedade civil e os trabalhadores em geral tinham, finalmente, uma palavra a dizer e foi isso que fizeram. Com entusiasmo, com dedicação, com estoicismo por vezes. Mereciam melhores resultados. Mereciam ter obtido um Portugal mais igualitário e mais justo. Mereciam eles e merecíamos todos. Não foi bem isso que aconteceu.

A democracia, porém, mantém-se. E é um bem insubstituível.

6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

As tuas certeiras e emocionadas palavras fizeram-me reviver o "meu 25 de Abril" com percurso não muito diferente do teu.
Obrigado pela viagem.
LG

01 maio, 2006 09:31  
Blogger António Melenas said...

Pois é, Luís, esta é uma viagem de recordação a um tempo doce e amarga. Doce pelo que foi e amarga pelo que deixou de ser ou o foi só pela metade "É a vida!", como dizia o outro.
AG

01 maio, 2006 10:24  
Anonymous Anónimo said...

Tinha eu 8 meses e estava em França com os meus pais.
Aos nove meses, numa visita a Portugal, aprendi a andar na casa da minha avó em Moscavide.

Cumprimentos :)

01 maio, 2006 13:47  
Blogger António Melenas said...

Pois está, Sara, mas mesmo assim, imcomparavelmente melhor do que estava, quanto mais não seja por vivermos em Liberade. A vossa geração não precisou, felizmente, de lutar por ela, mas é vosso dever defendê-la. E sei que ides fazê-lo. É um bem demasiado valioso para que se deixe perder
bjs.
António

03 maio, 2006 21:21  
Anonymous Anónimo said...

Pois é, António, o 25 Abril já foi...

Quando ele se deu tinha eu 23 anos, estava na tropa e andei de G3 na mão (ocupação da RTP)a contribuir para o sucesso do golpe de estado militar (porque o foi, e não uma revolução). Se eu soubesse o que isto ia dar...

Só um pequeno reparo: é que nós nunca vivemos e (infelizmente, creio eu) nunca viveremos numa democracia! Senão, vejamos: democracia é um regime político em que o poder é exercido pela vontade expressa da maioria. Ora eu pergunto: depois de os elegermos, como não existe (convenientemente, claro) mecanismo de controle do seu desempenho político, como é que podemos exercer o poder?!

Não, onde nós vivemos é numa república constitucional (mal parida, coitadinha...) onde o poder é exercido por uma minoria privilegiada e corrupta.

Para terminar, os meus parabéns pela qualidade dos seus escritos, que leio sempre com prazer.

José P. Santos
(contador de histórias)

31 agosto, 2007 23:39  
Blogger António Melenas said...

Obrigado, meu Amigo, pelo seu comentário.
Efectivamente o 25 de Abril foi um golpe de estado, movido até, em grande parte por interesses corporativos. Eu sei. A revolução - o o que pretendia ser uma revolução - fê-la o povo, que ultrapassou os objectivos dos militares.
Infelizmente (quanto a mim) foi sol de pouca dura e hoje é esta desgraça que se vê. E todo o caso, só quem viveu e lutou e sofreu sob o regime fascista, sabe, mesmo assim, apreciar o pouco que ainda resta.
Com todos os defeitos, é bem melhor do que a ditadura salazarista.
Um abraço

01 setembro, 2007 15:04  

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