5.27.2006

A VELHA SENHORA DA MORTE FELIZ


Naquele dia, 18 de Abril de 2001, dona Gabriela acordou excelentemente bem disposta. O sol, espreitando pela gelosia. meio corrida, anunciava um dia luminoso, um daqueles dias primaveris que reconfortam a alma e despertam, numa pessoa da sua idade, um renovado gosto de viver. Nos últimos meses tinha andado esquisita, talvez por efeitos do tempo que, naquele ano se tinha revelado particularmente chuvoso e incerto, nada bom para os seus ossos nem para o seu bom humor.

Mas naquele dia estava tudo bem. Não sentia dores nas articulações e o humor não podia ser melhor. É que, naquele dia, comemorava as suas bodas de ouro de casamento. Isto é, comemoraria, se o seu amado Frederico não se tivesse finado trinta anos antes. Mas datas são datas e a verdade é que, apesar de todos os últimos anos de solidão, se completavam cinquenta anos desde a data do seu casamento e nunca essa data deixara de ser lembrada e evocada, com mais carinho ainda desde a morte do marido.

Foi enlevada em tais pensamentos que dona Gabriela se levantou e se dirigiu à janela para levantar por completo a entreaberta gelosia. Tal como pensava, estava um dia maravilhoso, como se Deus lho tivesse enviado expressamente para a acompanhar na sua solitária celebração.


Lá dentro o relógio da sala acabava de dar as oito. Tinha de se apressar, que os seus movimentos já não eram como dantes e às nove o padre ia começar a missa que encomendou por alma do seu amado marido. Dirigiu-se à cómoda, de onde retirou a roupa interior novinha, guardada expressamente para este dia e dirigiu-se à casa de banho. Felizmente que o seu Frederico (pensava em tudo aquele querido) tinha trocado a banheira por uma base de chuveiro, senão teria agora muita dificuldade em levantar a perna para entrar na banheira. Ali tomou um duche bem quentinho.

Enquanto se limpava e vestia olhou-se no espelho. Onde estavam agora as curvas sinuosas, as nádegas rijas os seios firmes que o Frederico tanto apreciava e que ela tanto gostava que ele explorasse com os dedos suaves ou com a língua húmida e irrequieta? Aspergiu o corpo com uma suave água de colónia da mesma qualidade e marca que de que ele gostava e começou a vestir lentamente a roupa interior com um suspiro profundo que era, ao mesmo tempo, saudade do marido e saudade de si mesma – da Gaby esbelta e sensual que fora. Ai ai!

Acabou de se vestir no quarto. Um fato preto de saia e casaco, e uma blusinha creme que tinha deixado de véspera nas costas de uma cadeira, meias e sapatos pretos, de meio salto, a condizer. Na cabeça colocou uma finíssima mantilha de rendas, pegou no livro de orações e na malinha e saiu para a rua, onde já a esperavam as vizinhas, a dona Rita e a dona Carlota.

Entraram na cafetaria da esquina para tomar um galão e um queque. Convidou as vizinhas mas elas já tinham tomado o pequeno almoço. Melhor assim, que menos se demoraram. Quando chegaram à igreja, logo ali pertinho, já o padre subia para o altar para iniciar a missa., que anunciou, como lhe competia ser por alma e eterno repouso do falecido irmão Frederico Fernandes Ferreira. Bem longo ia já o seu repouso pois já lá iam trinta anos que Deus o chamara a si, na força da vida, pois sendo mais novo cinco anos, tinha apenas quarenta na data do seu falecimento. Deus não tinha sido justo com ele nem com ela, pensava dona Gabriela, meio absorta, enquanto o oficiante ia recitando em voz monocórdica as palavras decoradas que a liturgia impunha. Agora é tudo em português, não tem graça nenhuma. Quando era em latim parece que impunha mais respeito, mais adequado para falar com Deus, ia pensando dona Gabriela. Mas por esta altura já a missa estava a chegar ao fim, que o raio do padre, parece que ia apagar algum fogo, tal a pressa em se despachar daquela incumbência.

De regresso a casa, despediu-se das vizinhas à porta da rua, não sem antes lhes recomendar: então não se esqueçam vizinhas que logo, por volta das cinco, espero pelas senhoras para tomarmos um lanchezinho juntas. Lá estaremos, lá estaremos responderam as duas em coro.

A senhora Maria, a empregada, que vinha todos os dia tratar-lhe da lida da casa e preparar-lhe as refeições, já tinha chegado, entretanto, tinha feito a cama, arrumado o quarto e preparava-se agora para fazer o almoço, que a patroa fizera questão de ser constituído pela ementa preferida do falecido: uma sopinha de grão e bacalhau-à-gomes-de-sá, com bacalhau de primeira, à lascas, muita cebola, muito ovo e muito azeite, azeitonas, salsa, tudo muito apuradinho, tostadinho por cima, tal como ele gostava. Para ela ele continuava presente, como se tivesse ido à mercearia da esquina comprar cigarros e logo, logo, estivesse a meter a chave à porta, com o seu sorriso sedutor. Dona Gabriela foi entretanto regar as flores da varanda, suspirando, como sempre, por aquela roseira que dava umas rosas de um vermelho escuro de que o marido plantara, que tanto apreciava e que ela, por falta de conhecimentos de jardinagem, acabara por deixar morrer. Terminada a rega, sentou-se num maple, junto à janela e passou o resto da manhã, a ler, pela décima milionésima vez, o Orgulho e Preconceito da Jane Austen, que era o livro que lia quando o Frederico, meteu conversa com ela no eléctrico da carreira 28.

Ai, ai! Tinha ela 28 anos e ele 23. Filha única, bonita, prendada e razoavelmente rica, nunca tinha namorado. Os pais eram proprietários de uma retrosaria na Graça onde sempre moraram e ela pouco saía à rua como acontecia com a maior parte das raparigas do seu tempo. Acabada a instrução primária numa escola da vizinhança, a sua vida decorria entre as quatro paredes, lendo fazendo renda, ajudando a mãe na lida da casa. Aos domingos ia com frequência ao cinema, sobretudo ao ao Rex ou ao Lis, mas sempre acompanhada dos pais e até àquele dia nenhum rapaz se chegara junto dela. Vá lá saber-se porquê? Conhecia outras moças, menos bonitas do que ela, mas parecia terem mel, visto que os rapazes zumbiam como moscas à sua volta. Talvez o seu ar sisudo e o seu olhar recatado afastassem os eventuais pretendentes. As poucas vezes que saía de casa sem ser para ir à retrosaria ou comprar as “Modas e Bordados” no quiosque próximo, era para, a pedido do pai, ir de eléctrico à baixa, comprar umas meadas de lã ou qualquer outro artigo que se tivesse acabado na loja, de forma a servir uma cliente mais apressada, enquanto não vinha a remessa encomendada para reposição do stock.

Esta era uma dessas vezes. Foi nesse dia que aquele moço sentado a seu lado, no eléctrico, meteu conversa com ela. Ela nunca tinha reparado nele, mas ele já a conhecia de a ver passar na rua com os pais e só nunca tinha falado com ela por falta de oportunidade e algum acanhamento, diga-se. Chamava-se Frederico, tinha 22 anos, possuía o Curso Industrial e era mecânico de automóveis na FIAT. Era um bonito rapaz, meio tímido e como ela e nunca tinha namorado. Simpatizava com ela e pediu-lhe se queria namorar com ele. O que tem que acontecer mais tarde ou mais cedo acontece. Ela teve a certeza que tinha chegado a sua vez.

Os pais oferecerem alguma resistência, sobretudo o pai que gostaria que a filha casasse, talvez com o filho de um comerciante como ele, alguém mais do seu nível, mas foi a mãe com o bom senso de todas as mães e que entretanto já se tinha infirmado de tudo quanto ao rapaz dizia respeito, que convenceu o marido de que se tratava de um bom moço, modesto, bonito até, que não ganhava mal, que de qualquer modo eles tinham amealhado dinheiro suficiente para pôr a filha a salvo de qualquer percalço e sobretudo que a rapariga estava mais do que em idade de casar não podendo deixar escapar esta ocasião. Este último argumento foi o que mais pesou na decisão pois, velhos e achacados os dois, não queriam partir sem deixar a sua filha única sem um rumo de vida.

Menos de uma ano depois estavam casados e a residir nesta mesma casa onde hoje ela mora e que os pais compraram expressamente para eles. E como foram felizes ali! Ele era uma jóia de rapaz, tratava-o como se fosse uma rainha, era amável, bem humorado, gentil, fez-lhe despertar uma sensualidade que ela de todo ignorava e ensinou-lhe coisas sobre o amor que nunca sonhou existirem.. Só lamenta nunca ter podido dar-lhe um filho que ele tanto ansiava, mas nunca se queixou nem lhe cobrou nada por essa lacuna.

Foram 17 anos. Dezassete anos apenas de vida em comum, mas felizes, felizes, como pouca gente - acha dona Gabriela - se pode gabar de ter. O maldito cancro, porém, que subitamente se manifestou, em seis meses apenas pôs termo ao estado de graça que era a sua vida em comum.

No meio destes pensamentos a sonolência venceu-a e quando a empregada a veio chamar para almoçar encontrou-a de cabeça pendida e o livro caído no chão. Almoçaram juntas. A comida estava uma delícia, como o Frederico teria gostado. Entreteve-se depois a ver um pouco de televisão, deitou-se um pouco para descansar e às 17 horas em ponta lá estavam a vizinhas para o combinado chazinho. Claro que não era só o chá. Havia torradas, geleia de marmelo, compota de maçã, petits-fours e scones. que a senhora Maria, hábil no manejar do fogão e na justa mistura dos necessários ingredientes, tinha preparado de uma forma que fazia soltar exclamações de prazer e bastos elogios às velhas senhoras. Durante largo tempo ficaram bebericando, e dando largas à sua conhecida apetência por guloseimas e à sua infatigável veia de conversadoras, evocando tempos felizes de juventudes longínquas e de prazeres não mais repetidos mas jamais olvidados.

De súbito, Dona Gabriela lembrou-se que era altura de abrir, para beber ou deitar fora talvez, se fosse caso disso, uma das garrafas de ginjinha preparada ainda pelo Frederico e que guardara religiosamente, deitada na garrafeira, para uma ocasião especial Ora hoje era uma ocasião mais do que especial. Pediu à Senhora Maria para a ir buscar e abrir. Estava óptima, Docinha, docinha e espessa que parecia xarope. Todas se serviram e as vizinhas propuseram um brinde à saúde da dona da casa. E depois desse outro aos cinquenta anos do seu casamento e outro em especial à memória do falecido Frederico outro ainda já nem sabiam a quê, tudo isto no meio de risadinhas histéricas e despropositadas. Entretanto começou a anoitecer e todas concordaram que era altura de acabar, pois a cabeça lhes começava andar à roda

Ficando sozinha, dona Gabriela, bebericou ainda mais dois ou três copinhos da saborosa bebida. A senhora Maria bem lhe pedia para não beber mais, que se ia sentir mal, mas ela sentia-se tão feliz, tão solta, como se voasse numa nuvem de algodão. Por fim, levantou-se, meio a cambalear e pediu à empregada que a ajudasse a meter na cama. Teimou contudo que não queria deitar-se, pois não queria adormecer ainda. Ficou sentada na cama recostada num almofadão, olhado a enorme fotografia do casamento, pendurada na parede mesmo em frente da cama.. Antes de se ir embora a senhora Maria perguntou se precisava de alguma coisa, se ficava bem. Que sim que estava tudo bem, que, viesse na manhã seguinte às nove, como de costume

E ali ficou, sozinha, olhando o retrato. Lá estava no seu lindíssimo vestido de noiva com uma cauda enorme, segurando entre as mãos um lindo bouquet e o Frederico a segurar-lhe delicadamente o braço, alto, elegante, bonito, no seu fato preto com leves risquinhas brancas, olhando-a com ares apaixonados. E a cabeça a andar-lhe à roda, à roda, que a ginjinha era doce mas forte, forte, agora é que se dava conta, e o retrato como que ganhava vida e já não era mais um retrato, parecia tudo real, como fora naquele dia há quantos anos? Não, não podiam ser tantos... e a cabeça à roda. à roda... e foi então que o Frederico saiu da fotografia, alto bonito sedutor, com uma rosa igualzinha à da roseira que ela deixara secar e caminhou para ela e lha ofereceu e a beijou e despiu, lentamente, como costumava fazer; e também ele se despiu; ela viu-se reflectida no espelho do roupeiro e viu-se nova, os seios durinhos, durinhos, que ele beijava com ternura, e as nádegas firmes como dantes; e ele forte, másculo, belo como o vira na noite de núpcias; e ele a tomou nos braços fortes e, como na noite de núpcias, os seus corpos se fundiram; e ela se sentiu desfalecer; e a cama começou a ficar longe, cada vez mais longe… até que, nos braços dele, subindo, subindo sempre, por entre nuvens branquinhas como algodão, de todo desapareceram e só restava um céu azulinho, luminoso, sem qualquer sombra de nuvem, como ela sempre imaginou que fosse o Paraíso.

Na manhã seguinte, quando a senhora Maria chegou foi dar com ela morta, deitada de costas, destapada, completamente despida, pose de voluptuoso abandono, com um estranho sorriso a iluminar-lhe o rosto e com um inexplicável ar de felicidade que não dava para acreditar. Nas mãos, uma rosa igualzinha às que a dona Gabriela passava os dias a descrever-lhe como sendo daquela roseira que o seu marido plantara e que ela lamentavelmente deixara morrer. Rosa essa que, tinha a certeza, não existia, quando na véspera tinha deixado a patroa sentada na cama olhando o retrato do seu casamento, como fazia todas as noites, e que exalava um perfume como nunca tinha sentido e que parecia mesmo não ser deste mundo.

Os homens da agência funerária que vieram preparar o corpo para o funeral, acharam que não ficava bem uma morta com uma expressão de tão irradiante felicidade. Sentiam-se mesmo ofendidos na austera dignidade da sua profissão. Que diabo, um morto que se preze, tem que ir com um ar grave e sisudo!
E ainda por cima aquele cheiro penetrante da rosa, nada consentâneo com o cheiro a morte tão do seu conhecimento. Tentaram pôr fim a tal afronta atando-lhe um lenço da ponta queixo ao alto da cabeça, mas sem resultado. Dona Gabriela, levou mesmo aquele sorriso para a cova com grande espanto das vizinhas (houve muitas que vieram só por terem ouvido falar do inusitado sorriso da falecida) e enorme estupefacção do padre, que jurava a pés juntos nunca ter visto uma coisa assim.

Cinco anos se passaram. O caso da morta sorridente permanece ainda na memória de vizinhos e paroquianos. E como as coisas contadas e recontadas tendem sempre a levar aumentos e acrescentos é hoje voz corrente, entre as beatas assíduas da igreja que dona Gabriela frequentava, que a senhora terá morrido em odor de santidade, que a rosa terá sido deixada por algum anjo que Deus tenha enviado para a assistir nos últimos momentos e que o perfume só podia provir das alturas celestiais de onde o anjo descera. Já há mesmo quem, com o pároco à frente, mova influências junto das autoridades eclesiásticas para iniciarem o respectivo processo de beatificação, e quiçá futura santificação, havendo sugestões para que o seu nome canónico seja Santa Gabriela do Divino Sorriso.

Por mim, acho muito bem. E só queria viver o tempo suficiente para poder assistir à entronização desta santa num altar da minha paróquia, onde certamente seria visto como um dos mais assíduos e fieis devotos.



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se gostou da minha crónica "Peúgas Brancas,"
ouça essa mesma crónica
lida pela voz inconfundível de Luís Gaspar em:
http://www.estudioraposa.com/
"Lugar aos Outros 04"

3 Comments:

Blogger Cantar ao Sol e à Lua said...

António um abraço pela história maravilhosa de "A VELHA SENHORA DA MORTE FELIZ", que tão simplesmente nos fala de AMOR.

31 maio, 2006 11:41  
Blogger António Melenas said...

E falar de amor é falar de vida, mesmo se numa história de morte e contada na esfera do fantástico.
Obrigado pelo apoio

01 junho, 2006 14:25  
Blogger Ricardo Pereira said...

Adorei António... como sempre!! Um grande abraço.

06 junho, 2006 21:27  

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