5.06.2006

PEÚGAS BRANCAS ( texto e som)


Naquele tempo não havia betinhos nem betinhas. Eles eram “pipis” e elas “flausinas” e ponto final. Nunca cheguei a apurar se as flausinas que nós conhecíamos da vida real inspiraram a criação da personagem “Flausina”, dos Parodiantes de Lisboa, ou se foi o nome dessa personagem que depois passou a designar determinado tipo de moças a quem o seu estilo e características sociais se adaptavam. Julgo no entanto que esta última hipótese seja a verdadeira

Bom, na verdade não há comparação possível entre os betinhos e betinhas de hoje e os pipis e flausinas de então. Os actuais betinhos e betinhas, são meninos e meninas muito afectados, muito bem comportadinhos e pertencem (ou julgam que pertencem) à classe média alta.

Os pipis e as flausinas pelo contrário, pertenciam à classe media baixa e mesmo ao proletariado. Eram jovens que estudavam na Afonso Domingos, Veiga Beirão, Machado de Castro, Marquesa de Alorna, Marquês de Pombal ou similares, ou trabalhavam nas mais diversas profissões, em fábricas, oficinas, comércio e por aí…

Os pipis, durante a semana andavam vestidos de acordo com as respectivas profissões, levavam almoço, numa pasta ou numa lancheira, mas nos fins de semana envergavam as suas melhores fatiotas, suas calças-bocas de sino, seus jaquetões, seus sapatos de tacões altos à Elvis Presley ou de salto baixo, em pelica , pretos e brancos e usavam o cabelo bem engraxado, com uma poupinha à tirone (do actor Tyrone Power)) que bom trabalho dava a manter impecável à custo de boas camadas de brilhantina e fixador., que por vezes, de tão oleados, até parecia que tinham acabado emergir da talha do azeite. Quem não se lembra do Rogério um jogador do Benfica (muito bom por sinal) e a quem pelo seu ar afadistado, e bairrista, tão ao estilo da época, todos conheciam por “ o Pipi”?

Mas os pipis, se nada tinham a ver com os betinhos de hoje, muito menos se pareciam com os actuais jovens da periferia e bairros degradados, violentos por vezes, que se drogam, e enchem as paredes de grafittis, mais ou menos atrevidos, mais ou menos artísticos, mais ou menos provocatórios.

Na verdade, droga era uma palavra e uma prática que não fazia parte do vocabulário e dos usos dos pipis de que falo. Por essa altura as drogas, e de uma forma muito recatada e sigilosa, eram apenas utilizadas nos meios da alta burguesia ou aristocracia endinheirada, ou em certos meios intelectuais. Lembro-me por exemplo do caso do assassinato do Carlos Burnay, no seu palacete de Cascais, no decurso de uma orgia de droga, álcool e práticas homosexuais, mas isso era lá entre eles e o aspecto da droga passou quase despercebido junto da opinião pública.

Quanto a inscrições nas paredes (ainda não se tinham inventado os sprays), para além das palavras de ordem revolucionárias, escritas à socapa, a tinta ou nitrato de prata, a malta limitava-se a desenhar a carvão ou a giz, conforme a cor da parede, uns ingénuos símbolos fálicos, alguns de um tamanho descomunal mas todos muito mal enjorcados, um par de corações trespassados por uma seta e uns pinguinhos a significar a profundeza da paixão, ou uma ou outra frase, quase sempre relacionada com o sexo, do género o Zé foi à c… à Manuela, o Gigi é um ganda paneleiro, o Xico namora a Micas – escrita vernácula e contudo, inofensiva, como se vê.

Os pipis gostavam mesmo era de dançar e faziam desse gosto a sua actividade lúdica principal, sempre que podiam. Era vê-los em tudo o que fosse colectividade de recreio ou salão de baile, apertando o jaquetão e ajeitando o nó da gravata, caminhar com ar confiante e gingão a fim de tirar para dançar a dama de quem, de longe e por mímica, se obtivera já uma prévia anuência. Sim, que a malta não arriscava a avançar para levar uma realíssima tampa, e perder ascendente junto da sua tribo e prestígio perante o miudame. Isso é que era bom!

Era dançar, namorar, ir ver dois filmes seguidos num cinema de reprise e beber uns copitos aqui e além – que era uma coisa muito de homem. Nada de copinhos de leite. Para isso havia os chamados “meninos de copo de leite”, versão antiga dos actuais “queques”. A cerveja, por seu lado não tinha, nem de longe, a saída que tem hoje. Lá marchava uma de vez em quando, ou mesmo um “champanhe saloio” (mistura de vinho branco com gasosa) ou um pirolito para arrotar, mas o “tintol” e os petiscos, (bifanas, bacalhau assado, pratinhos de caracóis e de berbigão com cebolada) é que satisfaziam as exigências pouco “gourmands” dos irresistíveis “pipis”.

Alguns havia que exageravam no uso da bebida, mas nada que se parecesse com o que acontece nos tempos de hoje, em que as noites de fim de semana e festas de estudantes se caracterizam pelo consumo excessivo de álcool, e não só (por parte tanto dos rapazes como das raparigas) tão excessivo e descontrolado que, por vezes, vai até ao coma alcoólico e à overdose.

Tão raro era esse abuso por parte dos jovens que, aqueles que se excediam, ficavam marcados por alcunhas, como um moço lá do sítio que ficou conhecido como o “pipi do vinho”, e por esse nome foi chamado durante muitos anos, pelo menos enquanto lá residiu.

Sendo namorar e correr atrás das flausinas um dos passatempos preferidos dos “pipis”, apesar de todos os cuidados para o evitar e da enorme responsabilidade que era, na altura, tirar a virgindade a uma moça, a verdade é que por vezes isso acontecia. Como diz o ditado “o lume ao pé da estopa vem o diabo e assopra”, a verdade é que o mafarrico soprava mesmo e às duas por três lá havia uma que “perdia os três” e isso constituía uma verdadeira tragédia. “aqui d’el rei que desonrou a minha filha” e vá de um furibundo e desonrado pai encostar o rapaz à parede e obrigá-lo a lavar a honra da família. Pelo casamento ou com sangue – que a coisa não se fazia por menos.

Dá vontade de rir ouvir, hoje falar de “honra" nestes termos, não dá? Pois nesse tempo era assim. No entanto, sempre havia pais mais complacentes ou mais conscientes da dose de culpa das filhas que possuíam, pois me lembro do caso de um figurão lá do sítio – um fraca figura, diga-se – que já levava 3 “cabaços” (três) no papo e lá continuava são e salvo e solteiro, mercê não sei de que manhas ou compromissos. Devido à sua notoriedade pelo cometimento de tais proezas, passou o dito cujo a ser conhecido por “D’aço” (óbvia abreviatura de “Pixa d’aço” – que nesse tempo havia muito respeitinho no que concerne ao uso de palavrões”. Refiro-me, bem entendido palavrões ditos em voz alta e em presença de outras pessoas, sobretudo mais idosas, ou de senhoras, porque escritos nas paredes e às escondidas, eram mais que muitos, como já tive ocasião de referir.

Aliás, “palavrões” não será a palavra mais adequada para o tempo de que venho falando, pois o termo que mais se usava era “asneiras”: “Ò mãe o Chiquinho está a dizer asneiras”; Sô pessor este menino disse uma asneira;” “ ò tia, o Becas e a Mariquinhas estavam no fundo do quintal a fazer asneiras”. Este “fazer asneiras” geralmente referia-se a inocentes brincadeiras de crianças, a quem a curiosidade levava a mostrarem um ao outro os estranhos atributos com que a natureza os distinguira.

Eram frases como estas que frequentemente se ouviam, a propósito de palavras ou actos que nem sequer, por vezes, eram palavrões ou eram intimidades de crianças que nada tinham de censurável. Hoje, para ouvir ”asneiras” basta ligar a televisão. Aí elas pululam, e de toda a ordem: desde as mais cabeludas, por parte dos actores de filmes e novelas, até aos pontapés na gramática de alguns apresentadores, sendo que as últimas me custam mais a suportar. É asneira que ferve!

Mas, voltado ao “d’aço” era cómico (acho hoje cómico) a naturalidade com que a malta, de ambos os sexos, dizia “lá vem o d`aço” ou “já dançaste com o d’aço?”, e o fulano, baixinho, de pernas curtas em relação ao tronco (tipo caga-tacos) gingão, muito empertigado e ufano da sua fama de “matador”, atravessando o salão de baile, enquanto as mamãs murmuravam para as filhas”cuidado que vem aí o d’aço”

Não mais soube o que foi feito do “d’aço”. Não sei se, por mais outra proeza, algum pai mais façanhudo o terá obrigado a devolver a honra perdida a uma (neste caso, pouco incauta) donzela. Só espero que o cangalheiro não tenha tido, ou não venha a ter - caso não tenha ainda batido as botas, uma trabalheira dos diabos para baixar a tampa do caixão – dada a indómita firmeza do atributo masculino que tanta fama (e proveito) lhe proporcionou.

Uma das imagens de marca dos pipis que ainda não referi e que seria imperdoável eu deixar passar em branco, era, precisamente, o uso obrigatório de peúgas brancas. Pipi que se prezasse, jamais, repito, jamais se atreveria a apresentar-se (sobretudo nos dias em que saía “para matar”, se não ostentasse um par de imaculadas peúgas branquejando no largo espaço que ia do rebordo dos sapatos de pelica, de duas cores, bem lustrosos, “à maneira”, e a bainha das calças, que se usavam suficientemente curtas, para o efeito. Cabe aqui referir que esta moda das peúgas brancas é cíclica. Esmoreceu uns anos depois da época que aqui evoco, voltou a estar em voga nos anos oitenta e agora o seu uso, tanto quanto julgo saber, é considerado “fatela”. Vá lá uma pessoa guiar-se por modas! Mas, deixemo-nos de divagações e voltemos ao fio da nossa história e ao tempo dos “pipis” em que as peúgas brancas constituíam uma das suas imagens de marca.

Ora, como os miúdos gostam sempre de imitar os grandes (na ilusão, talvez, de que assim crescem mais depressa) e ser grande, nessa altura, era ser “pipi”; e ser “pipi” era, para além da poupinha à tirone, usar peúgas brancas, o Raul - um puto reguila, meu conhecido, que tinha, na altura uns 12 ou 13 anos, morava nos Olivais e viria a ser meu colega escuteiro no saudoso grupo 146, fundado e dirigido pelo padre holandês Gregório Verdonk – morria por ter peúgas brancas, para poder ser um “pipi” a sério, e assim impressionar uma garota que ele vinha cortejando de longe, com sorrisos e troca de olhares, mas à qual nunca tivera coragem de dirigir a palavra, Uma daquelas paixonetas infantis que todos tivemos uma vez na vida.

Só que estava-se em plena guerra (a 2ª Guerra Mundial), a vida não estava para flores (para os pobres nunca está, puta de vida!) o ordenado do pai do Raul, como operário têxtil mal dava para pôr em casa o essencial para alimentar e vestir a família, e as promessas da mãe de que um dia havia de lhe comprar as almejadas peúgas brancas iam ficando sucessivamente adiadas, pois outras inesperadas prioridades iam sempre surgindo.

Porém o Raul não era de se atrapalhar. O rapaz andava obcecado pela peúgas brancas e tinha de as arranjar. Aproximava-se o dia em que a banda ia sair à rua e correr toda a povoação, com um ror de gente a acompanha-la e ele era dos que nunca faltava, tanto mais que o pai era um dos músicos. Os de Moscavide, tinham a mania de dizer que sempre que a banda dos Olivais saía era chuva certa, mas ele sabia que isso dor de cotovelo por não terem banda nenhuma e que desta vez ia estar, tinha a certeza, um sol radioso – altura ideal para ele se passear com as suas ambicionadas peúgas brancas.

Assim, na véspera da saída da banda, o bom do Raul que há vários dia já tinha todo o plano traçado, antes de se deitar, vai à gaveta da cómoda, tira uma camisola interior da irmã, branquinha, branquinha, daquelas de manga comprida, que ele já tinha debaixo de olho, corta-lhe metade das ditas mangas, pega em cada um dos pedaços cortados, dá uns pontos mal alinhavados na extremidades mais largas, opostas ao canhão, mais apertado dos punhos, e em três tempos ele está com o sonhado par de peúgas na mão. Bom, as meias, como se pode imaginar não seriam especialidade por aí além, mas para o Raul estavam melhor do que boas e foi todo contente esconde-las debaixo do travesseiro para que logo de manhã – que a banda saí cedo – pudesse finalmente sair para a rua de peuguinha branca, “todo à pipi”. Nem dormiu como devia ser, só a pensar na inveja que ia causar a alguns peneirentos lá da rua.

E assim foi. No dia seguinte, de calções lavados, camisa branca, sapatos engraxados (que até a mãe se admirou do seu inusitado esmero no puxar do brilho) e de peuguinha branca, â maneira – o canhão do pulso adaptando-se à perna na perfeição, lá foi o Raul atrás da banda, envolvido pela estridência dos metais e o batuque dos bombos e caixas de rufo, tchim-tátchim-pum, pum-pum-táchim-pum, e o estrelejar de foguetes, fffffffpuum! puuum! catrapum, pum pum!… o ladrar dos cães espavoridos com o chinfrim, a gritaria do rapazio e as palmas e dichotes dos pacóvios que sempre ficam à beira do passeio.

E o nosso Raul todo pimpão, convencido de que toda a gente estava embasbacada com as suas peúgas brancas, quem sabe até se as palmas não lhe eram dirigidas. Infelizmente as coisas nunca são como a gente as imagina e as pessoas só repararam nas peúgas brancas do cachopo quando uma delas, desfeitos os pontos mal alinhavados da improvisada biqueira com o movimento calçada fora, começou a fugir do sapato e a subir pela perna acima, deixando a descoberto e desnudado, um bom palmo da canela, a partir da borda do sapato

Aí foi a risada geral e a assuada por parte da outra garotada cruel, como às vezes sabe ser, em semelhantes circunstâncias. E foi a chorar que nem uma madalena que, humilhado e inconsolável, o nosso Raul entrou em casa, se trancou no quarto e não quis ver mais ninguém, nem tão pouco tomar qualquer alimento, durante o resto do dia.

Também foi remédio santo. A mãe, condoída pela humilhação do filho e vendo tanta tristeza no seu rosto, logo que os afazeres da casa lho permitiram foi-lhe comprar não um, mas dois belíssimos pares de peúgas brancas da melhor qualidade, O prazer dado ao filho valia bem qualquer poupança que o adiamento da compra lhe permitiria.

E no Domingo seguinte, no baile da SFUCO (Sociedade Filarmónica União e Capricho Olivalense), onde o pai também ia tocar, lá estava o Raul, desta vez com umas peúgas brancas a sério, que ele fazia questão de exibir de forma bem ostensiva, sentado, de pernas cruzadas, numa das cadeiras do salão onde os pares rodopiavam. E tão confiante estava do seu sucesso e do seu ar de “pipi”, que se atreveu a ir buscar a tal garota que de longe cortejava. E ela aceitou. E juntos rodopiaram no salão. E ele, imaginado-se o Mickey Rooney volteando com a Judy Garland num dos seus filmes famosos na época, sentiu-se o puto mais feliz em toda a roda da terra. Ai a felicidade que a um garoto de 12 anos - reguila, de mais a mais - podia proporcionar, então, um simples par de peúgas brancas!
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Gostou de ler este Texto?
Então vai vai gostar ainda mais de o ouvir
na voz inconfundível de Luís Gaspar
http://www.truca.pt/armazem_som/ant_gouveia_peugas.mp3



1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Descobri este texto após uma pesquisa por SFUCO, uma colectividade que muito prezo e estimo.
Não conhecia o António Melenas mas fiquei fã e vou certamente passar por aqui mais vezes. O seu texto fez-me recordar as histórias que o meu avô me contava e que ainda hoje o meu pai conta com um brilho no olhar, histórias de uma época muito diferente da actual em que a SFUCO era verdadeiramente um pilar da cultura nos olivais, da coesão e sentir colectivo da freguesia (eu toco na banda da SFUCO, há quase 20 anos, e sinto o distanciamento entre a colectividade e a população).
É para mim bastante enriquecedor esta partilha do viver de outros tempos e o descobrir como as pontas soltas da história acabam por se unir e obter um significado tão distinto quanto surpreendente. Para si, a referência à SFUCO é certamente apenas um facto e uma pincelada do verdadeiro tema do texto e deve ser surpreendente que alguém sinta esta referência de uma forma tão intensa. As boas histórias são assim ...
Obrigado.

06 julho, 2007 20:18  

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