4.01.2006

O MÊS DE ABRIL


E eis que chegou Abril. O mês da flores, dos campos verdejantes, dos mil perfumes, da nidificação dos pássaros.

No mês de Abril, a Terra como que entra em trabalho geral de parto, abrindo-se generosamente nas mais variadas formas e espécies vegetais. As plantas distendem-se, espreguiçam-se e crescem ante os nossos olhos. É o mês em que, nas orvalhadas manhãs, ao contemplar os campos verdejantes, me dá ganas de me estender de borco e de abraçar a terra, como se de uma amante se tratasse. Algumas vezes o fiz, em jovem, chegando mesmo a cortar com os dentes, encher a boca e mastigar a erva fresca que, sob o meu corpo, generosamente se oferecia – manifestação de sensualidade, talvez, como outra qualquer.

Abril é, na verdade, por tudo isto e porque nele ocorreram alguns dos acontecimentos mais importantes da minha vida, o mês de que eu gosto de uma forma muito particular.

Há coisa mais importante do que um primeiro amor, quando a vida é, em si mesma uma excitante primavera? Quando o sangue corre mais rápido nas veias, quando o coração bate mais forte, quando todo o nosso corpo tal como a natureza se distende, se excede, se reinventa? Pois foi em Abril – como o poderei esquecer – que, num longíquo domingo-de-ramos, recebi a minha primeira carta de amor. Mais precisamente, uma resposta favorável a uma minha carta de amor, pois não seria natural que, nesses tempos, uma rapariga tomasse a iniciativa de se declarar. “…Gosto de si. mas tanto, que me chega a meter raiva, me faz doer até.. esta era uma passagem da minha declaração, que até hoje não mais esqueci e à qual recebia, agora, a ansiada resposta.

À saída da missa dominical (recém saído do seminário ainda não tinha, por essa altura, quebrado os laços que me prendiam à minha educação religiosa) seguida de uma reunião do grupo de escuteiros a que pertencia, no formoso jardim do seminário dos Olivais - Quinta do Cabeço, como então erra conhecido - quando eu menos o esperava, o Álvaro (um dos meus amigos de então (entretanto falecido), puxou-me de lado e discretamente, meteu-me no bolso a carta que a minha amada tinha entregue à sua amiga Raquel, para esta entregar ao seu namorado (o dito Álvaro) para que este, por sua vez, a fizesse chegar às minhas mãos. Tudo isto com um ar muito conspirativo, muito olhando à volta para que os outros não se apercebessem. Era assim que as coisas se passavam, na altura. Com discrição, com suspense, com uma certa aura de mistério. Momentos mágicos, portanto.

Com o coração a bater acelerado, retirei-me para um canto do jardim e, vezes sem conta, li e reli a doce missiva em que a bem-amada, a jovem objecto dos meus sonhos e de um prévio e longo e sofrido cerco, me afirmava finalmente a sua correspondência aos sentimentos que em prosa e em verso e em inequívocas trocas de olhares, inúmeras vezes lhe manifestara. Era como se Deus em pessoa tivesse acabado de me abrir as portas do paraíso, com toda a corte celestial de anjos e arcanjos e querubins, abrindo alas à minha passagem, por entre cânticos e tanger de cítaras e alaúdes. À minha volta, o gorgeio dos pássaros tornou-se, ele também, parte integrante do mesmo coro celestial. As delicadas flores das inúmeras “sempre-noivas” que me rodeavam ficaram mais brancas, o perfume dos loendros e páscoas tornou-se mais fragrante e o rosa pálido das camarinhas ganhou, subitamente, um rubro incandescente que nunca lhes tinha conhecido...e eu senti-me a mais feliz e a mais priviliegiada criatura do universo. Ah, que ninguém me fale em coisas boas se nunca recebeu uma carta de amor. Sobretudo se essa carta for a primeira de um primeiríssimo amor! Será que ainda hoje se escrevem cartas de amor?

Quando, breves dias depois, o nosso namoro se tornou oficial e o nosso amor não mais era segredo para ninguém, comentava um dos meus antigos companheiros da escola primária: Eh pá, anda aqui a malta armada em vivaça, vem este gajo do seminário e abarbata a miúda mais gira cá do sítio! E era

Foi também num mês de Abril que, mais tarde, tive a felicidade de conhecer a que viria ser (e é até hoje) minha mulher, que” num outro, saí da prisão após, quatro meses detido pela pide, a tempo ainda de ver nascer a minha filha; que noutro, que nunca mais chegava, aconteceu a revolução dos cravos, e que, noutro ainda, nasceu o meu único neto.

Tudo experiências da maior importância na minha vida:
Deslumbrada, a da primeira carta de amor; gratificante, a do encontro com a mulher com quem partilho os meus dias e as minhas noites; jubilosa a da saída da cadeia; empolgante, a da revolução que nos restituiu a liberdade; ternurenta, a do nascimento do meu neto…
Mas quantas outras coisas boas o mês de Abril me trouxe!
Bendito mês de Abril!

3 Comments:

Blogger Ricardo Pereira said...

Bendito mês de Abril e bendito sejas tu pela tua escrita empolgante e emocionada que sempre me arrebata.
Nem imaginas o quanto sinto este texto...o quanto o sinto quando falas de cartas de amor e quando referes o facto de não podermos falar de coisas boas se nunca recebemos uma carta desse tipo, principalmente se for de um primeiro amor...
Além de nunca ter recebido essa carta, hoje sei que nunca a receberei mais a mais pelo facto de, infelizmente, já não se escreverem, quanto muito uma carta a um amigo... agora de amor, usam-se os sms's ou o messenger fazendo com que seja tudo um acto banal.
Se calhar devida ter vivido na tua altura, não teria todas estas tecnologias mas, seguramente, iria aproveitar cada momento com um sabor diferente. E Vivam os meses de Abril
Um grande grande abraço. Ricardo

02 abril, 2006 15:18  
Blogger António Melenas said...

Obrigado meus Amigos pelas palavras simpáticas acerca dos meus escritos. É curioso que também num site sobre Moscavide, terra onde passei a juventude e evoco memórias do passado, sejam quase sempre os jovens quem me escreve e me demonstra o seu apreço por essas memórias. Começo finalmente a entender. Para os jovens, visitar a minha escrita é assim a modos como ir ao museu de arte antiga matar saudades de um tempo que não viveram. Mas atenção, nunca esquecer que se o tempo a que me refiro foi de algum "glamour" (o que eu via, afinal, também com olhos de juventude) foi também um tempo de repressão e obscurantismo.
Bjs.
António

04 abril, 2006 09:30  
Anonymous Anónimo said...

O Seminário, a Quinta do Cabeço,o seu jardim francês junto ao palácio e a estender-se em espaço a bela mata com árvores de fruto por onde ás vezes nos"pisgávamos"para roubar alguns abrunhos, depois de uma sessão de catequese para onde eramos atraídos pelos seminaristas com promessas de filmes antigos e mudos.
A cascata que o Gouveia já referenciou,que era constituida por um amontoado de rochas de onde jorrava a água para o lago que servia depiscina.
O campo de futebol existente ali bem perto onde era divertido ver os seminaristas jogando e sarrafando uns nos outros.
E o medo do padre Mourão, uma autentica fera que a todos nos metia medo.
Os cães Serra da Estrela,que por vezes soltos nos deixavam estarrecidos.
Que bom foi recordar nesta estória que o Gouveia nos contou.

04 abril, 2006 21:59  

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