8.23.2006

OS TARALHÕES - uma estória de putos

NOTA: Este texto pode ser saboreado na bonita voz de Luís Gaspar em "Lugar aos Outros nº 16, no audioblogue http://www.estudioraposa.com/

Todas as estações têm os seus encantos peculiares, mas as primeiras chuvas, fazem-me sempre lembrar os tempos que em garoto, nove dez anos, com as terras lavradas para as sementeiras, ia pelos campos fora, nas muitas quintas que havia em redor de Moscavide, melhor dizendo, na imensa quinta que era Moscavide de então, armar filas de ratoeiras para apanhar a desprevenida passarada que esvoaçava rente à terra revolvida de fresco, em cata de vermes ou de um qualquer grãozito perdido da última sementeira.

Diga-se, em abono da verdade, que nunca fui grande passarinheiro. O especialista era um puto meu amigo, que tanto capturava pássaros vivos, sobretudo canoros, para vender, com o auxilio de uma rede ou com ramo untado de visco , como os aprisionava em ratoeiras de arame apropriadas para o efeito.

“Ratoeira” é, aliás, um termo não usado aqui com muita propriedade, falando-se da captura de pássaros e não de ratos. Emprego-o apenas porque é o nome que se lhe dá, cá por baixo, pois no norte, na minha aldeia e em muitas outras da província, se lhe chama “costelo

Francisco Mendes se chamava este meu amigo, que como todos os Franciscos, respondia pelo diminutivo Chico (vocábulo que tenho sempre dúvida de como se escreve, e tanto que umas vezes o grafo com X e outras com Ch, conforme o Francico com quem falo ou de quem falo). Este, porém, era o "Chico", com CH, e ficamos entendidos

Era um puto franzino, algo enfezado de rosto miúdo e picado pelas bexigas, bom rapaz, mas que se tornava bera como a ferrugem quando as coisas não lhe corriam de feição. Ele era o “expert” das nossas caçadas aos pássaros, mas nunca dispensava a minha companhia, vá lá saber-se porquê. Desconfio, porém que seria para ter alguém que reverenciasse a mestria das suas performances. Não admira, pois era aquilo em que ele era bom.

Morreu novo, o Chico. Tinha catorze ou quinze anos quando a tuberculose, de que já sofria ao tempo em que, juntos, perseguíamos a desprevenida passarada da região, o levou.

Naquele tempo a tuberculose era uma doença muito comum e muito temida, uma vez que a maioria das pessoas que a contraíam, sobretudo na camadas mais desfavorecidas e com menos posses para se tratar e se alimentar convenientemente, dificilmente sobreviviam. Recordo-me que, entre os garotos, quando algum achava um objecto de uso pessoal que lhe apetecesse guardar, logo outro acorria pressuroso "eh pá, deita isso fora, que pode ser de algum tuberculoso", e logo o objecto era jogado para o lixo, com repugnância e temor e se ia prontamente lavar ou mesmo desinfectar as mãos .

O Chico foi o meu primeiro amigo a “marchar”... Depois disso, quantos outros, meu deus! Tantos que já lhes perdi a conta. Pois o bom do Chico, magricelas, meio bexigoso, menino com rosto de adulto curtido, é que era, como atrás referi, o expert das nossas caçadas. Ele é que sabia o nome de cada uma das espécies a capturar, os seus hábitos, a forma de armar as ratoeiras, a forma específica de lhes fazer o cerco, de modo a fazê-las cair na fila de ratoeiras estrategicamente distribuídas ao longo dos regos da terra lavrada,

Lembro-me que os taralhões eram os que mais facilmente se deixavam apanhar. Para isso lá estava a formiga de asa (“agúdia” lhe chamam nalguma zonas do nosso país) que aparecia sempre, precisamente, com o advento das primeiras chuvas. Eu achava mesmo que os simpáticos e utilíssimos bichinhos eram uma oferta de Deus aos putos, enviada expressamente para apanhar taralhões.

E nem era preciso cavar nos formigueiros. Mal começava a chover, elas, vindos não sei de onde, apareciam por tudo quanto era sítio, no meio da povoação, no muros velhos e mesmo nas paredes das nossas casas.

Ora, para apanhar os taralhões, armava-se a ratoeira num montículo de terra debaixo de uma oliveira, com uma inclinação tal que fosse bem visível do alto dos seus ramos, com a formiga de asa, vivinha, a mexer as asas transparentes, na ponta do araminho que prendia a mola; e era vê-los, em voo picado, precipitarem-se, directamente do ramo, em direcção à ratoeira, de onde só saíam, obviamente, para as anilhas que, para o efeito trazíamos presas ao cinto, de forma a regressarmos a casa, todos inchados, com os troféus da caçada ostensivamente pendurados à cintura.

É curioso que em Moscavide (não sei se noutras zonas se passaria o mesmo) quando se queria referir a alguém meio esparvoado, se dizia “ é mesmo um taralhão!”. Anos mais tarde, vim a descobrir, num dicionário, que o taralhão é uma “ave da família dos muscicapídeas”. Cá está: ave que apanha moscas. Só que o taralhão, como “taralhão” que é, e além do mais não dado à consulta de dicionários, devia achar que moscas ou formigas que parecessem moscas, por serem providas de asas, era tudo a mesma coisa, e ... truca.

Uma vez, na quinta do Conde dos Arcos , para onde íamos muitas vezes armar e ir “à chincha” (ou “xinxa”? Vá lá saber-se, também, como se escreve uma palavra que só existia no vocabulário oral moscavidês de putos reguilas!), fiz uma partida ao Chico que ficou pior que estragado comigo.

Tendo ele armado as ratoeiras e afastando-se para um valado. onde se demorou a “gamar” e a comer marmelos (era outro dos nossos “desportos” favoritos), eu entretive-me maldosamente, na frescura da manhã, a "dar de corpo" (eufemismo que utilizo para não dizer “arrear o calhau". "arrear os cabazes" "arrear a jarda", "arrear o preso" - vocábulos muito mais vernáculos e expressivos, convenhamos, mas que não me ficaria nada bem (deus me defenda) usar nesta selecta crónica - entretive-me, dizia eu, a dar de corpo, em cima de uma das referidas ratoeiras. Uma das do Chico, claro.

Vai daí, tive a luminosa ideia de depenar uma das aves que já tínhamos apanhado e com as penas entreter-me a ornamentar o mal cheiroso presente, de forma a dar ideia de um pássaro que se tivesse deixado cair na armadilha. Veio o Chico, topa de longe a ratoeira emplumada e corre excitado para lhe deitar a mão.

Grito-lhe que aquela é uma das minhas ratoeiras, e desato também a correr na sua direcção, o que faz o Chico correr ainda mais para chegar primeiro.
Chegar e jogar a mão ao pássaro que não era pássaro, foi um ver-se-te-avias, com as pestilentas e lambuzantes consequências que se adivinham.

Fui corrido à pedrada, com o Chico furioso perseguindo-me atrás de mim, campo fora, até às primeiras casas da povoação.

Claro que durante alguns dias as nossas incursões predatórias ficaram suspensas, sem grande benefício, aliás, para a passarada, pois meliantes como nós eram mais que muitos e não era a ausência temporária daquela dupla venatória que iria trazer descanso à inquieta e sofredora fauna esvoaçante da região.

Qual é o puto de Moscavide de hoje que sabe o que é um taralhão ou onde é que ficava a Quinta do Conde dos Arcos? Este é um segredo que fica entre mim e o Chico, que criança ainda, no longínquo ano de 1943, para sempre partiu, com as suas ratoeiras e a sua imensa sabedoria.

Quanto a mim, as únicas ratoeiras que voltei a encontrar foram aquelas que a vida me armou e em algumas das quais me deixei cair, mais tontamente que os simpáticos e desastrados taralhões da minha infância.


11 Comments:

Blogger Ricardo Pereira said...

belissimo texto como sempre antónio. do centro de artes de sines te escrevo este comentário. um grande abraço.

23 agosto, 2006 18:27  
Anonymous Anónimo said...

Toino,
mais um belíssimo texto nos Outonais. Não perdeste a inspiração. A lê-lo, fizeste-me voltar ao Moscavide da nossa infância, e lembrei-me da única experiência que tive nessa coisa de ir aos pardais e que vou contar-te o mais resumidamente possível:

Havia um moço, um bocado mais velho do que eu, que costumava ir á pardalada. Era mesmo especialista nisso, como o Chico da tua estória. Era o Jorge e morava nos Olivais.

Um dia, estava eu no "taludo", á toa na vida ( como diria o outro Chico, o Buarque ) quando passa o amigo Jorge com um outro puto e desafia-me : ó Xico, queres ir com a gente aos pardais ?
Como não tinha nada que fazer, alinhei, e aí vamos nós, taludo abaixo, galgámos a vedação da via férrea, entrámos pela Quinta das Litradas ( ou Letradas ? ) e pouco depois estávamos no sítio, hoje pomposamente chamado de Parque das Nações.
Nessa época, como sabes não havia aí nada a não ser mato, algumas árvores, o famigerado poço e um pouco mais além corria o Tejo.

Escolhido o local, uma zona onde havia algumas árvores de pequeno porte, começou-se a preparar as coisas para a caçada, que ia ser com visco e com rede.
O visco, como deves estar lembrado era feito cortando umas aparas de uma borracha usada em solas de sapatos e que nós chamávamos de crepe-Ceilão, que depois eram misturadas com diluente, dando uma pasta bestialmente pegajosa.

Com esta pasta o Jorge besuntava uns pequenos ramos despojados das folhas e montava-os nas pequenas árvores. Pardal que neles pousasse já não saía dali !

A outra forma de caçar era com rede e consistia em armar uma rede no chão, enrolada, e deixando um espaço mais ou menos circular no meio da armação. Atava-se á rede um cordel que se estendia até ao sítio onde a malta se fosse esconder, que tinha de ser perto para não se perder a rede de vista.
No espaço que referi era colocado um chamariz, um recipiente com água e uns grãos de trigo ou coisa assim.

Passado pouco tempo começava a pousar a pardalada, e quando o Jorge via entre eles algum dos que lhe interessavam para vender, puxava o cordel e repentinamente a rede caía sobre os pardais que já não conseguiam fugir..
Depois o amigo Jorge, enfiava a mão pela abertura da rede, apanhava os “ valiosos” que metia numa gaiola que levara. Os restantes, tirava-os um a um, segurava-lhes a cabecita entre o polegar e o indicador e záz, cabeça esborrachada e pardal para o saco !
Esta parte chocou-me de tal maneira ( era miúdo, lembra-te ) que nunca mais fui aos pardais nem com o Jorge nem com mais ninguém !

Um abraço.
Xico

24 agosto, 2006 15:55  
Blogger António Melenas said...

Belos tempos, Xico, em que Moscavide era uma aldeia!
Na verdade conheço todas essas formas de apanhar a passarada, de que falas e em todas elas em todas elas acompanhava o Chico da minha estória (verdadeira) que era um verdadeiro "connaisseur". Mas da vez que conto, a coisa passou-se efectivamente com taralhões, ratoeiras e formiga de asa.
um abraço
Toino

24 agosto, 2006 16:07  
Anonymous Anónimo said...

Olá Antonio,
Acabei agora mesmo de ler a tua estória dos taralhões e
como sempre, mais uma vez me fizeste voltar aos anos da
nossa juventude.
A ultima vez que vi o Chico {que foi nosso colega escuteiro no 146 Moscavide}foi no dia que partimos para o acampamento na Roliça { Agosto de 1942}
parece que ainda o estou a ver, coitadinho, estava com a mãe,a ti Assunção, ele veio despedir-se
da malta, já estava tão doente que não pôde ir acampar comnosco na Roliça. E foi banhado em lagrimas que nos disse adeus.
Poucos meses depois, a maldita tuberculose o levou para o eterno acampamento.
Velhos e saudosos tempos querido Toino
Um abraço
Raul

24 agosto, 2006 18:21  
Blogger António Melenas said...

Pois foi, Raul,
Só viveu mais uns meses,o Chico, depois da pungente cena que recordas. Foi o primeiro a partir e já lá vão tantos anos! Consola-me a ideia de que a sua memória de menino sem história, permanecerá enquanto houver alguém que leia esta minha estória. Para isso serve a escrita,
Um abraço, querido Raul, do tamanho da distância que vai daqui ao Canadá
Toino

24 agosto, 2006 18:33  
Blogger Cantar ao Sol e à Lua said...

Ai António, eis mais uma pérola. E mais um pedaço da memória de todos nós. Mesmo de todos, porque quem é mais novo vai ficando com o retrato das décadas que não viveu... e, em certos casos, em poder de uma realidade que desconhecia... Mais uma vez - porque não é demais - OBRIGADO.

26 agosto, 2006 03:03  
Blogger Ricardo Pereira said...

olá olá... não tens posts novos mas já que aqui passei assinalo a minha passagem. um grande abraço vô António.

30 agosto, 2006 16:26  
Blogger Pedro Aniceto said...

O acaso juntou os nossos textos na voz do Luís Gaspar. Não nos conhecemos mas temos um laço comum, o de ter andado às agúdias. É quanto basta para podermos recordar em comum episódios que nunca vivemos em conjunto. Afinal de contas as nossas hortas nunca tiveram muros, ou se os tiveram fizeram-se apenas para ser transpostos. Um abraço. Pedro Aniceto

01 setembro, 2006 00:37  
Anonymous Anónimo said...



Adorei este texto e já estou mesmo a imaginar-te a planear a brincadeira que fizeste com o teu amigo.hehehe :o)Tem mesmo tudo a ver contigo...Sempre brincalhão e divertido.
Bjs e grande abraço

Vasco

01 setembro, 2006 19:26  
Anonymous Anónimo said...

Gostei imenso, como sempre. Durante momentos, senti-me transportada no tempo e imaginei-me assistir a todos estes acontecimentos. Um grande abraço.

04 setembro, 2006 12:06  
Blogger Poesia Portuguesa said...

E eu ouvi este texto, sim senhor! Por duas vezes, e o curioso é que não associei o teu Blog ao nome que ele disse.
Sou mesmo distraída!
Comoveu-me este texto, fez-me lembrar as histórias do meu Pai, quando miudo e andava à passarada...
Um abraço ;)

12 setembro, 2006 14:53  

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