A CHUVA
Chegou o Outono. E com ele as primeiras chuvas. É tempo de semear e tempo ainda de colher. Falta acabar de apanhar as uvas e fazer o vinho, colher os marmelos e confeccionar as compotas. Lá mais para diante os provaremos, que precisam ambos que o frio, que ainda não chegou, os cure e lhes dê o paladar do nosso contentamento.
Os dias são doces ainda, a temperatura amena, as chuvas esporádicas e passageiras. Só lá mais para diante, em princípio, elas virão para ficar e assentar arraiais, mimoseando-nos com as suas arremetidas, longas e frequentes.
Desde que me conheço ouço as pessoas reclamar contra o tempo, mas a verdade é que agora as invernias são, ou parecem-me que são, menos rigorosas e menos prolongadas que no meu tempo de criança. Também é verdade que tal sensação se deve ao facto de não haver então as distracções que há hoje e o tempo de retenção em casa, por causa da chuva, nos parecesse mais longo, por tal motivo.
Naquele tempo (e estou a falar do final dos anos trinta e primeiros de quarenta) a televisão não existia ainda e em minha casa nem sequer rádio havia, os dias de chuva, numa casa pequena e cheia de crianças eram particularmente difíceis, tristes, irritantes, intermináveis. As costumadas brigas entre nós tornavam-se mais frequentes e mais acesas nesses dias,o que obrigava a nossa mãe a “molhar a sopa”, com alguma frequência, para acalmar algum mais azougado ou mais impertinente e tentar obter um pouco de sossego.
Todos estes desesperados apelos eram repetidos, vezes e vezes sem conta e secundados por garotos das casas próximas que, ao ouvir-nos, se juntavam ao coro
e a esse se juntavam outros e outros ainda, numa berraria que enchia todo o quarteirão, dali se espalhava aos quarteirões vizinhos, ecoava por toda a povoação e só terminava quando as mães exasperadas, com ralhos ou à chapada, punham termo à infernal cantoria.
Era ver a alegria da malta miúda, logo que a chuva abrandava. De todas as casas a cahopada, descalça, vinha para a rua chapinhando nas enormes poças de água, que se formavam em todas as ruas – estavam ainda longe de vir a ser alcatroadas as ruas de Moscavide – ou ao longo das valetas, cheias, a transbordar de água barrenta, na sua fervilhante corrida para o escoadouro das sarjetas, invariavelmente entupidas para nosso gaúdio e proveito.
Uma porta velha boiando num charco era uma jangada, um barrote meio submerso era um crocodilo e nós, aventureiros de uma selva imaginária…que sabíamos de cor, aprendida nos filmes de Tarzan.
A ideia da morte, não sei porquê, sempre me assaltava nessas ocasiões. Assim, o remédio era ir para a caminha cedo. Por volta das 9 horas já toda a gente estava na cama. O pai, para descansar do trabalho da oficina, a mãe, para descansar da labuta sem fim com a casa e os filhos e nós, para descansarmos das mil tropelias do dia e da canseira infinita de nos chatearmos uns aos outros, na esperança de que a manhã nos trouxesse um sol radioso que nos permitisse sair à rua de que éramos então reis e senhores e saborear toda a liberdade que a completa ausência de carros e a vastidão dos campos circundantes, nesses tempos, nos oferecia...
É nesta pátria longínqua que ora me encontro, olhando a chuva mansa que bate na janela, com os olhos arregalados, os beiços e o nariz amachucados contra o vidro, como fazia em menino.
Só que não há ninguém para se rir das momices que faço, do outro lado da rua; já não canto nenhuma das lenga-lengas com que usava acompanhar tais gestos; as vozes já não ecoam no ar lavado, por cima de telhados baixos; já não me apetece ir chapinhar descalço na rua, onde o asfalto já não faz poças; já não existe boa parte dos meus companheiros de cantorias e de donos da rua…e os poucos que ainda existem já, de todo, perderam a imaginação.
E contudo o efeito das gotas de água no vidro, à minha frente, a forma como cada uma delas desliza, mansinha, abrindo caminho através de uma espécie de ribeirinho minúsculo até se juntar a outra mais abaixo, e o conjunto das duas continuar até engrossar uma terceira, e por fim desabar no peitoril da janela, porque já outra lá vem pelo mesmo carreiro… só este efeito, dizia, das gotas de água deslizando no vidro a que encosto o rosto, se mantém igualzinho, igualzinho ao que, em criança, passava melancólicas horas a observar, em dias de chuva. Como este.
-----
Setembro 2006
7 Comments:
Há coisas que nunca mudam! Outras mudam demais...
Sensibilidade, um homem não chora! Isso é coisa de mulheres!
Beijinhos*
Cátia Teixeira
ai antonio, estas ruas crónicas são uma viagem também á minha inafancia. embora sejamos de gerações diferentes, eu já tinha televisão e muitas mais coisas, esta tua maneira de descrever a tua pátria, leva-me também á minha pátria já quase esquecida. como é bom ainda veres as linhas das gotas de chuva da mesma maneira, é essa criança que tens ainda dentro de ti, que me encanta na tua escrita. Desculpe a minha avontade em te tratar por tu, mas hoje apeteceu-me mesmo.
fica bem sofialisboa
Magnífico texto! Impossível de expressar melhor em palavras. Saudações!
Cada texto teu, é uma surprendente viagem, que espero não tenha fim.
Dizer que gostei, seria um lugar comum...por isso deixo-te o meu muito obrigada por partilhares sentimentos e sensibilidades desta forma tão pura.
Um abraço ;)
Olá António... como sabes perdi a minha avó faz agora uns anitos... 8 para te ser mais preciso. E é nestas alturas que gostava de poder ter uma figura como ela aqui comigo e tenho pena de não ter alguém como tu do meu lado a quem possa chamar avô.
Tive um avô é verdade, todos o tiveram, mas infelizmente ele para mim, mesmo vivo, nunca o esteve... pena que ele não tenha sido o que tu és e que eu não tenha quem me fale dessas lembranças e dessas memórias dessa maneira... eu sei que sou muito chorão e sentimentalista. Mas já me caem as lágrimas e tenho de fazer algumas pausas para poder ver convenientemente as teclas.
Sempre que chovia a minha avó fazia uma "brasa" morna para eu beber num copo de galão que, por infelicidade minha, deixei escapar das minhas mãos... nunca mais pude beber dele nem bebi, fosse o que fosse que ela me preparasse, com o mesmo gosto.
Ainda hoje lembro os dias de chuva que passava com ela na sala da casa onde ainda hoje moro, tem alturas em que me parece que ainda a vejo sentada no sofá do cantinho, com uma manta lilás que ela mesma fez, com os óculos de massa castanhos e com a caixa de costura de madeira, também castanha, no chão enquanto fazia um arranjito num botão, passajava umas meias ou alguma outra coisa enquanto cantava para mim. Quando trovejava, cobria-nos com uma manta e dizia bem agarrada a mim a oração a santa barbara…
Ás vezes acho que sou ligado de mais a coisas passadas e aos sentimentos que tenho delas... mas não pode ser mau estarmos ligados a uma coisa que nos fez sentir tão bem, tão felizes. Adoro ler as tuas palavras António.
Por liberdade minha, já o fazia antes e espero que não te importes sempre que te chamo avô... sinto-te como sendo o que nunca tive. Talvez pela semelhança de histórias e vivências que partilhas com aquela que foi, e ainda é, uma das pessoas mais especiais da minha vida.
Um grande abraço e obrigado pelas tuas palavras repletas de memórias.
Aos amigos que comentaram o texto“ chuva” ou aos que o vierem a fazer,obrigado pelos vossos comentários.
É-me muito grato constatar que também vós sois saudosos amantes da tal “pátria” que é a nossa infância.
Isso revela a vossa sensibilidade e sinto-me feliz por ter conseguido que comungassem comigo o doce sentimento de regresso a essa “pátria” afectiva, ainda próxima, contudo, para alguns de vós e para mim já tão distante.
Obrigado por terem gostado e por mo terem dito.
Quanto ao Ritchie, não me importo nada de ser o teu avô, embora no texto da “chuva”eu seja mais o menino – que por sinal, nunca conheceu avôs nem avós
A todos o meu abraço
António
Anonymous said...
As palavras que tão bem traduzem o que sinto mas não sei expressar, fazem-me transportar à pátria, só nossa, em que "a achuva não faltou, só tu faltaste".
Revejo-me nos teus textos e emociono-me sempre.
A que muito te admira
Inês
04 Outubro, 2006 18:39
Enviar um comentário
<< Home