ESCRITOS OUTONAIS

11.24.2007

MARTA E MARIA


Nos últimos tempos tem-se verificado a proliferação de teorias acerca da vida de Jesus de Nazaré que lhe atribuem irmãos e mesmo um casamento com a jovem Maria, natural da povoação de Magdala (conhecida por tal motivo como Maria Magdalena) e vários filhos.

José Saramago, no seu romance, “O evangelho segundo Jesus Cristo”, descreve uma belíssima e delicada cena de amor de Jesus com a dita Maria, a quem ele chama Magdala.

Pois já em 1945, ano em que – ainda seminarista, com quinze anos - fiz este ingénuo poema, eu deixava antever uma relação vagamente mais do que mística entre os dois.

O episódio de Cristo repreender Marta por ela ligar mais à lida da casa do que aos seus deveres de boa anfitriã, vem na bíblia, mas lá não se fala em cama e em pernoitar.

Claro que nunca ninguém no Seminário pôs a vista em cima destes versos. Nem no seminário, nem fora dele, aliás, pois este como a maioria dos poemas que aqui apresento ,foram, até agora, segredo meu.


MARTA E MARIA

Foto baixada da net, data vénia

Misteriosa e meiga, a noite caia,
Morria o sol ao longe, rubro e cansado
E, preguiçosamente, o disco esbraseado
Banhava, do manso mar, na água fria

Na cidade de Betânia, àquela hora,
Passava-se uma cena encantadora
Na farta casa daquela a quem, outrora,
Chamavam, por escárnio “a pecadora”

Marta, a boa irmã, fazia a ceia.
No fogo que ardia em viva brasa
P’rò bom Jesus, rabi da Galileia,
Que as honrava, pernoitando em sua casa

E o bondoso Rabi, em frente da janela,
Contemplava extasiado, através dela.
A fascinante beleza do sol-pôr

A doce Maria, a seus pés sentada,
Envolvia-o num olhar de apaixonada,
E beijava-lhes as vestes com fervor

Entretanto, Marta, com desembaraço,
Preparava com solícito carinho
Uma alvíssima cama no terraço
Com finíssimos lençóis de puro linho

Maria não vê sequer o que a rodeia,
Brilhando nos seus olhos estranha luz.
Vive apenas p’rò Rabi da Galileia
E seu olhar se perde nos olhos de Jesus

Contemplava-o assim, meiga e calada,
Presa de estranho encanto ou de magia,
Quando se ouviram passos leves na escada
E eis que surgindo Marta assim dizia:

Senhor, não fica bem que eu, com afã,
Trabalhe assim, com tanto e tal calor.
Deixai também que Maria, minha irmã,
Me ajude e me alivie no meu labor

E o bondoso Rabi, que até então,
Silencioso fitava a “pecadora”
Envolve-a num olhar de compaixão
E diz-lhe em voz velada e sonhadora

“Marta, boa Marta, não te afadigues tanto!
Não te prendas tanto à terra que te chama
Só uma coisa interessa: é ser santo
E só é santo aquele que muito ama”

E dito isto, baixou os olhos belos,
Pudibundos e castos, que alguém vê-los,
Era ver, num instante, a eterna vida,

Aqueles suaves olhos que, outrora
Mudaram de Maria “a Pecadora”
O nome, em “Madalena arrependida”

Quedaram mudas as avezinhas no ar.
E ao longe, no alaranjado firmamento,
O sol deu
‘inda luz, mais um momento,
E mergulhou enfim no azul do mar...

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11.13.2007

JOSÉ GOUVEIA, MEU IRMÃO (3ª e última parte)



Em 1948, o prestigiado General Norton de Matos acede a apresentar-se como candidato da oposição à Presidência da República nas primeiras eleições que o regime se viu forçado a permitir (a fingir que permitia) e que teriam lugar no ano seguinte. O Zé mergulha de corpo e alma na preparação da campanha que se aproxima e no movimento de massas que a sustenta. Baldado esforço.

Sem um mínimo de garantias por parte do governo, e face a toda série de obstáculos formais e persecutórios, o general desiste de se candidatar.

Seguem-se vagas de prisões.


Entretanto o Zé conhece a Ascensão, moça bonita - feições, curiosamente muito a lembrar as da princesa Soraya, mulher do Xá da persia - com quem vem a casar em 19 de Setembro de 1948, e que viria a ser a sua dedicada companheira até ao fim dos seus dias, revelando-se uma extraordinária força de carácter, capaz de, com ele, enfrentar todas as vicissitudes que a vida haveria de lhes acarretar, sem uma recriminação, sem nunca o desviar da luta pelos seus ideais.

Em 1949, calha-lhe a vez de ser preso, mas a sua militância não abranda, antes se fortalece.

Em 1951, após a morte de Carmona, novo simulacro de eleições Presidenciais, nas quais participa activamente em apoio da candidatura do Professor Ruy Luís Gomes, ao qual depois de o agredirem e de lhe racharem a cabeça, acabam por considerar “candidato inelegível”, consumando assim uma das habituais trapaças do regime.


Depois destas, não houve eleições, presidenciais ou legislativas, a que não emprestasse a sua militância activa. A sua profissão de motorista distribuidor de petróleo, em todo o concelho de Loures, facilita-lhe a actividade política e o estabelecimento de contactos, proporcionando-lhe um conhecimento profundo de todos os lugarejos do concelho, onde se torna conhecido e estimado.


Em 29 de Julho de 1954, dia dos seus anos ( a PIDE tinha lá a sua ficha e a escolha da data não foi, de todo, inocente), estava a família toda reunida à mesa, preparando-se para começar o jantar de aniversário, quando apareceram para o prender. Eram dois os pides. Meu irmão recusa-se a acompanhá-los sem que se tenha consumado o jantar familiar. Contrariados e com receio do escândalo os agentes acabam por ceder e preparam-se para se sentarem junto à mesa, mas o Zé impede-os de o fazerem, dizendo-lhes que em sua casa e junto de sua família só os amigos se sentam.


É de pé que, hirtos como sentinelas e de rosto fechado, os Pides assistem ao tenso, enervante e infindável jantar, que não deixou, mesmo assim, de culminar com os tradicionais “parabéns a você “, entoados com a raiva que se imagina. Terminado o repasto e depois de virarem a casa do avesso e de “apreender” o que lhes apeteceu, lá o levaram, por fim, indiferentes às súplicas da nossa mãe, ao choro do filho, de cinco anos, e aos veementes protestos de toda a família.


Na sequência desta prisão, que durou 10 meses e apesar de absolvido em Tribunal, perdeu o emprego, de acordo com ordens expressas da PIDE. Durante meses andou sem trabalho e sem saber que rumo dar à sua vida, até que resolveu tomar de trespasse uma drogaria, pertença do filho de um seu antigo patrão e que, embora simpatizante do regime então vigente, atendendo à consideração pessoal que por ele tinha, lhe facilitou o pagamento de uma forma bastante dilatada no tempo. Aqui presto homenagem ao Sr. Virgílio Leitão.


Mais tarde, e por minha influência, abriu uma livraria/discoteca, onde a malta de esquerda sabia que podia sempre encontrar um ou outro livro ou disco dos que a PIDE não gostava e aonde, movida por tal consabido desamor, fazia volta não volta, uma das suas selváticas incursões predatórias.


Participou de forma interveniente nos três Congressos Republicanos de Aveiro (1957, 1969 e 1973) e viveu toda a agitação que os mesmos suscitaram, por vezes, como é sabido, com a intervenção brutal da polícia de choque.


Em 1958, militou intensamente na campanha eleitoral para a Presidência da República. Primeiro em apoio de Arlindo Vicente (sendo mesmo em Moscavide que este candidato fez a sua primeira sessão da campanha, organizada, já se vê, por uma comissão à frente da qual estava o José Gouveia); depois, após a desistência de Arlindo Vicente, e com o mesmo entusiasmo, em apoio de Humberto Delgado, que galvanizou o país, obrigando o “Manholas” a recorrer à fraude generalizada para evitar a sua vitória nas urnas.


Não resisto a registar aqui o facto de a secção de voto, onde eu permaneci até ao fim e tinha como presidente da mesa o dito Virgílio Leitão, ser das raríssimas onde não houve fraude, porque o presidente ameaçou os pides presentes de abandonar a Mesa, caso estes insistissem em interferir na contagem dos boletins de voto. Nessa secção, não só a vitória coube ao General Delgado – como o resultado posteriormente afixado à porta – reproduzia preto no branco, a verdade da contagem lá dentro obtida.


Em 1969, surge a CDE (Comissão Democrática Eleitoral), em cuja criação o Zé colaborou activamente, fazendo parte da sua Comissão Nacional. Novas eleições, sendo Zé candidato à Assembleia Nacional pelo distrito de Lisboa, numa lista de que fazia também parte o então jovem advogado, Dr.Jorge Sampaio. E pela terceira vez, no rescaldo dessas eleições, no dia 1.º de Maio de 1970, voltou a conhecer as masmorras da polícia política.


Em 21 de Julho de 1973, aproximando-se novo período eleitoral, foi preso pela quarta vez, quando com um grupo de amigos (crime tenebroso!) recolhia assinaturas protestando contra o aumento das rendas de casa.


Desta vez a coisa foi mais grave. O “tratamento” foi tal, que dele resultaram gravíssimas perturbações do foro psíquico. Fugindo às suas responsabilidades, a PIDEà sorrelfa e pela calada da noite, abandonou o doente no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda. Médica amiga, que trabalhava no hospital, deu-se conta, de que alguém, em estado gravíssimo, ali tinha sido deixado pela polícia, sem quaisquer formalidades. Averiguou de quem se tratava e fez-nos chegar a notícia alguns dias depois. Tão incorrecta e ilegal era a actuação da PIDE, que apesar de o doente se encontrar debaixo de prisão, veio para casa, meses depois, sem qualquer formalidade. Ele tinha pura e simplesmente sido abandonado, sem cavaco à família, depois de inutilizado, para a luta e para a vida pensavam eles.


E de facto o Zé vinha gravemente perturbado. Só um grande choque o poderia trazer à normalidade. Esse choque aconteceu: foi o 25 de Abril - uma alegria para o país e a ressurreição para o José Gouveia.


Parecia milagre! Aí estava ele, lúcido, activo, pronto para continuar a luta, uma vez alcançado um dos maiores objectivos da sua vida - o derrube do iníquo regime que tanto mal causara ao país.


Poucos dias depois, era eleito, em assembleia popular do Concelho de Loures, para presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal, onde teve de se bater contra aqueles que não se conformavam em perder privilégios e vantagens conseguidas no regime deposto, e galvanizar a admirável iniciativa popular, naqueles dias estimulantes e inesquecíveis que se seguiram à revolução dos cravos.


Mas a actividade do Zé Gouveia não se limitou apenas à militância política. Ele esteve sempre na primeira linha de iniciativas sócio-culturais em Moscavide. Muito jovem ainda, colaborou na criação do Atlético Clube de Moscavide, a cuja direcção pertenceu várias vezes e de que viria a ser Presidente nos anos 60; criou e dirigiu várias vezes a biblioteca daquele clube; foi presidente da direcção do Ginásio dos Olivais em meados da década de 50; foi o grande impulsionador, com outros amigos, da criação, no fim dos anos 40, de um núcleo campista - movimento que se iniciava em Portugal e tinha características e cultura nitidamente de esquerda. Em todas estas actividades se empenhou sempre com o maior entusiasmo, e dedicação e mesmo, frequentes vezes, dinheiro do seu bolso.


Era outra das suas formas de luta. Contra o obscurantismo e em prol de uma consciência social e solidária...


Depois... depois é a história actual: vereador em sucessivas eleições autárquicas, membro da Assembleia Municipal, por último. Mil lutas, mil obstáculos, mil fadigas, o desgosto pela morte trágica do filho... e quando, tendo completado 70 anos se preparava para abrandar um pouco...zás: duas intervenções cirúrgicas no espaço de três meses, e por fim a fatalidade maior - um acidente vascular cerebral que o impossibilitou de voltar a andar, falar ou escrever, durante oito longos meses e até ao fim dos seus dias, em 26 de Agosto de 1993, pouco depois de completar 71 anos.


Não foi justo. Ele, que com o seu feitio temperamental, lutador e com problemas cardíacos, teve tantas oportunidades de se ficar em pleno combate, no meio de uma das suas acesas e truculentas discussões, acabar assim, inerte e sem fala!


“Morreu José Augusto Gouveia: O poder local está de luto” dizia uma revista do Concelho, em que a sua fotografia ocupava todo o frontispício. Assim é. O mundo fica sempre de luto e mais pobre quando perde um cidadão como o José Augusto Gouveia.


Quanto a mim, sinto que perdi uma boa parte de mim mesmo, agora que o “noxo Jé ” vive apenas na imensa saudade que me deixou.


****


Nota final:


O seu desinteresse por tudo o que não fosse a causa que defendia, ia a este ponto:


Tendo perdido o seu emprego na Atlantic por motivos políticos, em 1955, se se tivesse apresentado ao serviço após o 25 de Abril, ter-lhe-iam contado todo o tempo desde essa altura e ficaria com uma boa reforma. Disse-lho vezes sem conta. Respondia-me “Que não. Que a revolução precisava dele. Que foi para isso que sempre lutou”. Acabou por fiicar sem nada.


Quando deixou a Câmara, se fosse outro, faria os possíveis e os impossíveis para ficar mais uns meses (outros o fazem e é razoável que o façam) e ficaria com uma reforma de umas centenas de contos. Ele não. Ele, veio sem nada. Tudo quanto ficou a receber, ao fim de toda uma vida de trabalho, e dos seus descontos para a Caixa dos Comerciantes, foi uma pensão de 30 e tal contos.

Era assim o Zé Gouveia.


________________


Os Amigos, aqueles que com ele conviveram e o admiraram, não o esqueceram porém. Em 1999, apoiados por uma vastíssima comissão de honra encabeçada pelo então presidenta de República, Dr. Jorge Sampaio, promoveram um série de iniciativas em sua homenagem, Em resultado de tais iniciativas, José Gouveia foi agraciado com a ORDEM DA LIBERDADE, foi publicado um livro com a sua biografia e o seu nome é hoje nome de duas ruas e de um Pavilhão desportivo no Concelho de Loures, nome de uma praceta em Moscavide, e nome de uma rua em Moncorvo, esta inaugurada pelo próprio Presidente da República. Tem ainda uma placa de homenagem no prédio onde residia em Moscavide e outra, salientando a sua qualidade de maçorano e lutador pela liberdade - esta a que lhe teria dado, estou certo, maior prazer – na frontaria da Assembleia de freguesia de Maçores, a terra que o viu nascer e de onde saiu em 1934 para uma luta que ultrapassava o horizonte da aldeia, muito para além das montanhas que a cercam e a tornam tão pequenina na encosta onde se anicha, por entre amendoeiras e fragas e terras de pão.




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11.06.2007

JOSÉ GOUVEIA, MEU IRMÃO (2ª parte)


O apego do Zé à liberdade, e às ideias progressistas deve ter começado logo na instrução primária e julgo não andar longe da verdade se afirmar que a isso não deve ter sido estranha a influência da professora, de quem, como atrás referi, falava sempre com a maior admiração e carinho.

Quando, finalmente, o nosso pai achou que tinha algumas condições (bem poucas eram!) para nos receber em Lisboa, mandou-nos vir.

Lá viemos pois de escantilhão, a mãe e os três filhos, “pouca-terra,pouca-terra” num dos ronceiros comboios a vapor da época, durante um dia e uma noite inteirinhos.
Foi em Maio de 1934. Ia o Zé fazer 12 anos e eu acabava de fazer cinco.

O pai esperava-nos na estação dos Olivais onde o comboio chegou de manhãzinha. A Lisboa de que nos falavam era afinal um simples lugarejo nos arrabaldes da capital, de nome obscuro e para nós totalmente desconhecido, Moscavide. Lá veio a tropa-fandanga, sacos às costas, mais de um quilómetro, até à casa que o meu pai alugara havia poucos dias, para nos alojar pois que, antes da nossa chegada, como estava sozinho, dormia dentro de um carro, numa garagem onde se ocupava da guarda e lavagem dos veículos. Ali apanhou uma bronquite asmática de que não mais se livrou e vezes sem conta o levou ao hospital.

Só chegados à porta de casa - um sótão na Travessa do Cauteleiro - os meus pais se aperceberam, com grande consternação, que o Zé, que vinha mais atrás, não aparecia. Passou o dia inteirinho, passou a noite interminável (os pais desesperados, procurando-o por todo o lado, eu e o Tino berrando de fome e desconforto, pois não havia tempo nem cabeça para se ocuparem de nós) e só a meio do dia seguinte nos chegou a informação de que o desaparecido estava na esquadra da polícia dos Olivais, aguardando que o fossem buscar.

O que é que tinha acontecido? O bom do Zé, acabadinho de emergir do estudo da história de Portugal, nutria uma incontida admiração pelo Marquês de Pombal (devido talvez ao que ele julgava ser o seu carácter progressista e à sua notória aversão aos jesuítas) e uma das suas aspirações, imperiosas, pelos vistos, era visitar a estátua do polémico estadista, acabadinha de inaugurar, a 5 de Maio desse ano de 1934, isto é, dois ou três dias antes da nossa chegada. Assim, ao supostamente desembarcar em Lisboa, quando na verdade era na estação dos Olivais que tínhamos descido, imaginou que o Marquês ficava logo ali ao virar da esquina. E como o casario se orientava mais para o sul - já que para Moscavide nós seguíamos por uma azinhaga paralela à linha do comboio e desprovida de qualquer habitação - vá de começar a andar no sentido oposto ao nosso, julgando talvez que dava uma espreitadela à estátua e voltava a correr atrás de nós.

Andou, andou, andou, pergunta aqui pergunta ali, até que lá para o fim da tarde contemplou extasiado a estátua imponente do seu ídolo que, de leão ao lado, o contemplava altivo e majestoso do alto do seu pedestal.

Só então chegou a fome, o cansaço e a angústia de se ver sozinho, num meio completamente estranho e abissalmente diferente da aldeia serrana de onde fora subitamente desenraizado.

Tentou o caminho de regresso mas as ruas pareciam-lhe agora todas iguais e subitamente hostis. Vários transeuntes se aperceberam da perplexidade daquela criança. Um houve que lhe deu de comer.

-“Onde moras?” -

-” Cá em Lisboa

- Em que rua?

- ”Não sei, é cá em Lisboa

- “Mas em que sítio de Lisboa?”

- “ Não sei, é aqui em Lisboa”

Não havia hipótese. Assim andou deambulando, até que alguém tomou a iniciativa de o levar a uma das esquadras da cidade.

Já era noite. Por fim, lá se lembrou que o pai trabalhava numa sapataria de um senhor chamado Lavado. Sapatarias em Lisboa eram às dúzias. E fora de Lisboa? Só no dia seguinte a conseguiram identificar. Era em Moscavide - que nessa altura queria dizer em casa do diabo mais velho. Lá veio o rapaz para a esquadra dos Olivais, de onde contactaram o Sr. Lavado.

Terminava assim a rocambolesca aventura da visita ao Marquês e o desespero da família.

O Zé vira realizado um dos seus sonhos de menino de aldeia. A realidade viria depois. A grande luta ia começar.

Primeiro, a difícil ambientação a um meio completamente diferente. Depois, a rejeição, a troça, às vezes cruel, dos outros rapazes em relação à forma de vestir, à postura e à pronúncia transmontana, inclusive, do recém-chegado.

Lá vinham as púrrias, as brigas, e lá voltava eu de novo e noutros lugares a atirar-me às canelas dos seus opositores, berrando que estavam a bater no “nosso Zé” (que eu pronunciava, claro, “noxo Jé”) para gáudio da pandilha. Tão frequentes eram as minhas intervenções e os meus berreiros, que alguns passaram a meter-se com ele só para me ouvirem, passando eu, que já tinha a alcunha de “Ruço” a ser também tratado por “Noxojé”.

Depois, em casa, as dificuldades económicas. Como o pai não ganhava o suficiente para sustentar a família, que entretanto se viu aumentada com o nascimento do Lau e mais tarde da Alice, a mãe (que passava o tempo a invectivar a“malvada crise” que se vivia - expressão que me deixava atemorizado, sem saber quem era essa megera dessa crise, que tanto mal nos fazia), comprou ao volumoso Zé da Carolina uma máquina de costura que ia pagando em infindáveis prestações, aprendeu a bordar e passava os dias e parte das noites a bordar para lojas e armazéns que lhe pagavam uma ridicularia. Já nós estávamos deitados há muito e ainda ela bordava, bordava, à luz do petróleo, noite fora...

O Zé, tão novo, tão magricela e tão desambientado, teve também de dar o seu contributo. Começou como marçano na drogaria Fénix, perto da nossa casa, na Avenida de Moscavide (pomposo nome dado ao que era, na época, uma simples estrada lamacenta.

Levar as compras a casa dos fregueses. Caixote de madeira ao ombro, calcorrear ruas, subir escadas, descer escadas, enquanto os garotos da sua idade brincavam na rua, jogavam à bola, à bilharda, à rolha, ao eixo, ao pião, ao bílas ou se empolgavam com desenfreadas corridas de arco pelas ruas fora.

E depois dessa drogaria, outra: a drogaria Leitão. E depois a taberna e casa de pasto do Manuel Soares. E depois uma mercearia. E outra. E muitas outras. E servente na oficina do Raul Serralheiro. E servente de pedreiro nas obras de construção do Bairro da Encarnação (nessa época o sítio chamava-se Panasqueira). Lembro-me de lhe ir muitas vezes levar o almoço a pé, 3 ou 4 quilómetros através de azinhagas, com os meus sete ou oito anos. Uma vez, era arroz de lombardo com toucinho e eu, guloso, papei-lhe o toucinho todo pelo caminho, tendo o pobre do Zé, estafado de trabalhar, de se contentar com o arroz e o pão.

E depois, trabalho na fábrica dos amidos, a descarregar pesadíssimas sacas de batatatas. E depois, debaixo do chão, escavando o túnel para instalação do colector de água ao longo da estrada nacional nº 10. À medida que os trabalhos iam avançando cada vez se afastava mais de casa. Assim, teve de alugar uma bicicleta, que pagava à semana, e além do esforço do trabalho extremamente violento, tinha ainda de pedalar vinte ou mais quilómetros para ir e outros tantos para voltar.

Não ganhava para a bicicleta. Acabou por desistir porque teve um acidente em que se ia esfarrapando, ele e o velocípede.

E depois, mais mercearia e mais serventia, que o pai moía-lhe o juízo se ele ficava um dia sem emprego como se a culpa fosse dele, o que sobremaneira o exasperava e o levava muitas vezes a sair porta fora, rosto fechado, e num estado de espírito que deixava a nossa mãe em grande inquietação.

Toda esta labuta, a intolerância do pai, as leituras e os contactos nos diversos locais de trabalho fizeram aumentar o seu espírito de revolta e as suas preocupações de ordem social. Datam desta época, adolescente ainda, os seus contactos políticos e a sua militância nesse campo. Por volta dos dezoito anos trabalhava numa mercearia e casa de comidas, o “Beleza”, num sítio chamado Sentieira, junto a Cabo Ruivo, em cujas proximidades morava uma espanhola fugida à guerra de Espanha, onde perdera o marido, assassinado pelos franquistas. O Zé era, nessa altura um belo moço. Não era mais o lingrinhas que chegara a Moscavide. Tinha fortalecido e era o que se chama um rapagão.

De pronto a viúva, jovem ainda mas mais velha e mais madura que ele, por ele se apaixonou e durante algum tempo viveram um romance que, não só teve o condão de transformar o rapazote em homem feito, como aprofundou os seus conhecimentos políticos que a espanhola, comunista convicta, lhe foi inculcando.

Lembro-me do interesse e preocupação com que ele tinha seguido as vicissitudes da guerra de Espanha, assinalando com bandeirinhas as batalhas de que os jornais davam conta e a sua enorme tristeza quando os defensores da legalidade democrática tiveram de debandar frente às hordas fascistas de Franco apoiadas por Hitler e Mussolini, perante a passividade, que bem cara lhes iria sair, das nações ditas democráticas. Logo de seguida, encorajado pelo êxito conseguido em Espanha, Hitler empreende agressões no centro da Europa que levam ao desencadear da Segunda Guerra Mundial.

Entretanto o Zé faz o serviço militar no Trem-Auto (na Avenida de Berne – no espaço onde hoje funciona a Universidade Nova de Lisboa e onde, curiosamente, estudou e se veio a licenciar a minha filha). Aí aprende a conduzir e tem ocasião de alargar as suas actividades políticas nas suas deslocações com carros da tropa. Ao sair, arranja trabalho na Atlantic (empresa petrolífera antecessora da actual BP), onde a sua tarefa era fazer rolar pesadíssimos bidões de crude descarregados dos navios, cais fora, até à refinaria situada a umas centenas de metros. Lembro-me que chegava a casa ao fim da tarde e se atirava para cima da cama, completamente exausto.

Como lá na tropa andassem a empatá-lo e nunca mais lhe dessem a carta de condução, foi lá e fez um tal barulho que, depois de o ameaçarem de prisão, acabaram por lha dar, finalmente.

Passou então a motorista da empresa. Entretanto tinha acabado a guerra, com a derrota do nazi-fascismo.

A paz e a vitória dos aliados foi acompanhado de gigantescas manifestações. Grande entusiasmo por todo o mundo, inclusive no nosso país, onde se pensava que o salazarismo tinha os dias contados. Criação do MUD (Movimento de Unidade Democrática) e do MUD Juvenil, a que o Zé aderiu imediatamente e de que foi entusiástico militante. Mais tarde, o MND (Movimento Nacional Democrático), onde sobressaia o Professor Ruy Luís Gomes, Virgínia de Moura, José Morgado e outros e a cuja Comissão Nacional o Zé pertencia.

Lançado enfim, na luta política, activa e consequente. inconformado com um regime opressor, tacanho e para o qual o simples acto de pensar era um crime que levava à prisão, à perda de emprego e ao ostracismo político e social.

Continua...

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