ESCRITOS OUTONAIS

10.30.2007

JOSÉ GOUVEIA, MEU IRMÃO (1ª. parte)

Uma simpática visitante deste blogue, teve a amabilidade de me sugerir que, em relação aos enormes textos que aqui , por vezes, publico e dos quais se confessa admiradora, os repartisse em duas ou três partes, consoante a sua extensão. Como este é de facto um texto bastante extenso, resolvi acatar a sua sugestão, pelo que o mesmo sairá em três partes
Será que resulta?

Entre os escassos objectos deixados pelo meu pai, falecido em 18 de Fevereiro de 1996, com a bonita idade de 92 anos), deparou-se-me um recorte amarelecido, quase ilegível, do Jornal “O Século” de Março de 1955 (a data não está visível), referente a uma notícia com o título “No Plenário começou o julgamento de dez indivíduos acusados de actividades subversivas”. Um dos indivíduos, reza a notícia, é “José Augusto Gouveia, de 31 anos, motorista, natural de Moncorvo”

O meu irmão Zé! Meu querido irmão! Tanto lutou, tanto se esforçou, de tanta coisa abdicou na defesa dos seus ideais! Só a morte (pior do que isso: só a doença ainda antes da morte) o fez silenciar.

Que saudades, meu irmão!

* * *

As minhas recordações relativamente ao meu irmão José remontam aos meus três quatro anos. Tinha ele, portanto, dez ou onze.

Estou a vê-lo: rapazinho de aldeia, magrote, espigado, pernalta para a idade, de chapéu preto, à homem, como era de uso e costume nos meios rurais. O meu pai tinha debandado para Lisboa à procura de melhoria de vida para si e para a família. O Zé era, pois, o homenzinho da casa e eu, que mal me lembrava do pai e com a mãe fora de casa, a trabalhar à jorna, na monda, nas segadas (é como lá se chama às ceifas), na apanha da azeitona ou da amêndoa, apegava-me ao irmão mais velho como uma lapa. Onde estava um, estava o outro.

Fazia-me burrinhos talhados em cortiça apanhada nos montes circunvizinhos, efémeros carrinhos de bois com cascas de melancia, cãozinhos de papel recortado que guardavam rebanhos de ovelhas, constituídos por rústicos bugalhos, moinhos feitos de palhas de junco entrelaçadas... Eram os meus brinquedos, que outros não havia naqueles tempos e naquelas paragens.

Os Invernos eram rigorosos e as casas, feitas de xisto negro, não rebocado nem por dentro nem por fora, cobertas com telha vã, isto é sem forro, eram desconfortáveis e geladas. Assim, tornava-se uma necessidade imprescindível ir à lenha pelos montes. Era o Zé que, comigo sempre atrás, ia à loja (a loja era o compartimento onde se alojavam os animais, cuja porta era a mesma da casa de habitação), aparelhava o burrico, velho, lazarento e teimoso como todos os da sua raça (era branco, lembro-me tão bem!) e se metia a caminho, por vezes bem longe de casa, para ir pelos montes, em busca dos troncos e gravetos destinados a alimentar a eterna fogueira que ardia na laje quadrangular implantada no chão da cozinha e onde, em negras e fuliginosas panelas de ferro de três pernas, se confeccionavam as parcas refeições, aproveitando ao mesmo tempo algum do calor que ia minorar a frialdade dos quartos contíguos.

Lembro-me que, certa vez, nessas incursões à serra, deparámos. apavorados, com um grupo de ciganos, afanosa e silenciosamente ocupados a desenterrar um porco que, obviamente tinha morrido vítima de qualquer maleita - caso contrário não teria sido enterrado pelo respectivo dono. Ficámos os dois de borco, tremendo de medo, espreitando por entre as estevas até terminar a macabra cerimónia da exumação do reco e o grupo se afastar, sempre em impressionante silêncio, carregando aos ombros o apetecido manjar, pois era hábito os ciganos desenterrarem os suínos mortos e com eles se banquetearem.

A escola da aldeia era pertinho da nossa casa. Não tinha mobiliário. Era só uma sala, um pequeno pátio para as crianças brincarem nos intervalos das aulas e, por baixo da sala, um cagadoiro que cheirava mal como trinta diabos. Os alunos levavam de casa um banquinho para se sentarem durante as aulas e eu, que não largava o meu irmão, muitas vezes levava também o meu banco para me sentar ao lado dele. Claro que pouco tempo lá parava. Logo o bicho-carpinteiro me impelia a vir para o pátio a atirar pedras às lagartixas ou outras proezas quejandas.

A professora, por quem o meu irmão ficou sempre com grande consideração pela vida fora, era sobrinha-neta do Guerra Junqueiro, que. como se sabe era oriundo de Freixo de Espada à Cinta - localidade próxima da nossa aldeia.

Às vezes, à saída da escola, a malta envolvia-se em zaragatas e aí, sempre que eu via o Zé em maus lençóis, saltava para cima do adversário, aos socos e pontapés, acabando quase sempre a berrar, atirado ao chão com qualquer piparote. Quando o aborrecia, o Zé, para me arreliar, chamava-me “ruço de má-pelo, quer casar e não tem cabelo”, mas eu não despegava dele.

Em várias ocasiões (mesmo anos mais tarde, já em Moscavide, ele fazia isso) pendurava-se no rebordo dos poços, preso só com os dedos e o corpo suspenso do lado de dentro, perante grande aflição da minha parte, que desatava num berreiro até ele se reerguer e saltar para fora como um pimpão, fazendo troça das minhas lágrimas. No fundo eu achava que ele era um herói, por isso. O decorrer da sua vida provou, no entanto, que ele era mesmo um herói e por muito mais do que isso.

Lembro-me de ir com ele pedir o rabo do porco, por ocasião das matanças. Era costume os garotos irem em coro pedir o rabo do porco aos vizinhos quando estes matavam os seus recos. Íamos normalmente de noite, com um facho de palha a arder (a que se dava o nome de “fachuqueiro”), para nos alumiar o caminho através de ruas e quelhas lamacentas. Batíamos à porta e entoávamos uma lengalenga vezes sem conta repetida, até que alguém aparecesse: “ Ò senhor Fulano, dê-nos cá o rabo. Só aqui estamos dois!”. É curioso que só agora, ao ver esta frase reduzida a escrito, me tenha dado conta da conotação maldosa que ela hoje teria certamente e que nunca em toda a minha vida me passou pela cabeça. O certo é que, com frequência lá vinha o rabo, acompanhado de qualquer guloseima, pois o rabo era, afinal, apenas um pretexto.

Quem nunca se recusava era o Ti Baltazar que gostava muito de nós e nos ajudava por saber que o nosso pai estava longe e lá em casa a abundância...sabe Deus. O velhote que também me chamava sempre “ruço de má-pelo”, gostava de se meter comigo: “Ò Gouveia, diz à tua mãe que não te leve à cama sem ceia”. E eu, de pronto, muito espevitado: “Ò Ti Baltazar, bata com o cu no chão e salte p’ró ar!”.

Isso é que o velho se divertia.


No tempo das “partidas” da amêndoa, minha mãe ia seroar para casa das pessoas onde elas decorriam e quase sempre ia com ela o Zé, o filho mais velho, que já sabia fazer aquele trabalho, ficando eu e o mais novito, o Diamantino, convenientemente deitados e recomendados à atenção da vizinha, a ti Cândida Patota, que, paredes meias, ouvia tudo o que se passava na nossa casa e que prontamente nos acudiria, se de algo de anormal se apercebesse.

Eu, contudo, permanecia quase sempre semidesperto, na mira de me regalar com um docinho ou outra guloseima que eles me traziam da espécie de ceia que os donos da amêndoa serviam aos partidores.

Pouco tempo antes de virmos para Lisboa, o Zé fez o exame da 4ª classe. Mas, coitado, nas vésperas apareceu-lhe um carbúnculo na testa, junto ao sobrolho direito, que lhe provocava febre altíssima. Como na aldeia não havia outros recursos, ( e o carbúnculo levava rapidamente à morte caso não fosse queimado) o médico local, em desespero de causa tomou a iniciativa de lho queimar com o cabo de um garfo de ferro em brasa. E no dia seguinte, ainda cheio de febre, lá foi o mocinho escarranchado no burrico, duas horas de caminho, serra fora, sob o sol escaldante de Julho, a mãe a pé, puxando a arreata, a caminho de Moncorvo para fazer o exame. Mesmo assim: aprovado com distinção.

A cicatriz do carbúnculo lá ficou, até ao resto da sua vida.

Continua
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Veja também
A DÍVIDA, DE QUE SOMOS ESCRAVOS
no meu outro blogue

10.17.2007

OS MOSCAVIADAS

OS MOSCAVÍADAS



AS DAMAS E OS VARÕES ASSINALADOS
QUE EM MOSCAVIDE EM TEMPOS HABITARAM
E QUE POR OUTRAS TERRAS ESPALHADOS
SÓ ESTA NA MEMÓRIA CONSERVARAM
NÃO OLVIDANDO NUNCA OS BONS BOCADOS
QUE EM REMOTOS TEMPOS LÁ PASSARAM,
CANTADO ESPALHAREI POR TODA A PARTE
SE A TANTO ME AJUDAR O ENGENHO E A ARTE


E CANTANDO EU GARANTO A TODA A GENTE
QUE OS CARECAS QUE VEJO À MINHA FRENTE
OS CONHECI COM FARTAS CABELEIRAS,
COM MUITA BRILHANTINA E COM PENEIRAS
DE QUEM TINHA O FUTURO PELA FRENTE
E CANTO AS MIL E UMA BRINCADEIRAS
A QUE A MALTA CÁ DO SÍTIO SE ENTREGAVA
QUANDO O PRESENTE APENAS IMPORTAVA


E CANTO O BEM E O MAL, NÃO ESCONDO NADA:
O EIXO E A “PRIMEIRA CAGANEIRA”,
AS PÚRRIAS E AS GUERRAS À PEDRADA
DE PONTARIA ÀS VEZES TRAIÇOEIRA
E AS HOMÉRICAS CENAS DE PORRADA
QUE QUEBRAVAM DO BURGO A PASMACEIRA,
AS QUAIS DECORRIAM SOBRETUDO
À SOMBRA DAS ÁRVORES DO “TALUDO”


DAQUI PARTIRAM MUITOS DOS GUERREIROS
P’RÁ BATALHA DA VIDA, MUNDO FORA
E A LEMBRANÇA DOS TEMPOS PIONEIROS
EM SEUS NOBRES PEITOS ‘INDA MORA
E EI-LOS DE NOVO AGORA NO TERREIRO
P’RA RECORDAR OS FEITOS DE OUTRORA
MAS RECORDAR APENAS, POIS, COITADOS,
P'RA MAIS LHES FALTA O FÔLEGO...TÃO CANSADOS


AS MIÚDAS DESSE TEMPO TENHO EM MENTE
E O MEU CANTO TAMBÉM VAI PARA ELAS.
NÓS A BRINCAR NA RUA LIVREMENTE
E AS POBRES A ESPREITAR PELAS JANELAS!
JÁ FARTA DOS TRICOTS E DOS BORDADOS
POR CERTO MUITA MENINA RECATADA
SONHOU VIR PARA A RUA, E SEM CUIDADOS,
ANDAR TAMBÉM COM A MALTA “À BATATADA”


MIÚDAS DO MEU TEMPO, AQUI VOS DEIXO
MEU CANTO DE LAMENTO INCONFORMADO
POR NUNCA VOS TERMOS CONVIDADO
P’RA CONNOSCO JOGAR, UM DIA, AO EIXO,
AO BILES, À BOLA, AO REI-MANDADO,
TENDO DEIXADO SÓ EM VOSSA MÃO,
COMO EXCLUSIVA E CHATA DIVERSÃO
O PONTO DE PÉ-FLOR E O CHULEADO


E CANTO AS MATINÉS GLORIOSAS
DO NOSSO SAUDOSO "FAMILIAR"
E AS JOVENS ESBELTAS E FORMOSAS
COM QUEM ERA UM PRAZER ENTÃO DANÇAR!
DE NÃO SE “LEVAR TAMPA” HAVIA A ESPERANÇA
MAS NADA SE PERDIA EM ARRISCAR
UM SINAL CÁ DE LONGE, “A MENINA DANÇA”’
E DIZENDO ELA “SIM” ERA AVANÇAR


E ERA VÊ-LOS ENTÃO RODOPIAR
AO SOM DOS BLUES, VALSAS, TANGANHADAS,
AS VIGILANTES MÃES A SUSPIRAR
NÃO FOSSEM SUAS FILHAS, TÃO PRENDADAS
CAÍR NA TENTAÇÃO DAS MARMELADAS
NO ENVOLVENTE ABRAÇO DO SEU PAR...
DAS MÃES SÓ SE ACABAVA O SOFRIMENTO
COM A MÁGICA PALAVRA “CASAMENTO”


AQUILO, SIM SENHOR, ERA DANÇAR!
COM RITMO, COM ARTE, COM GANÂNCIA!
OS PARES AGARRADINHOS A RODAR,
ELE DE LENÇO NA MÃO P’RA PRESERVAR
DOS VESTIDOS DELA A ELEGÂNCIA.
HOJE, MAIS NÃO SE FAZ DO QUE PULAR
E CHAMAR DANÇA, PENSO, É UM TOPETE,
A UM SIMPLES “ABANAR O CAPACETE”

O SÉCULO EM QUE NASCEMOS ACABOU
DIZEM UNS QUE FOI BOM, OUTROS QUE NÃO
MAS TANTA COISA DELE EM NÓS FICOU
QUE NOS ENCHE DE ORGULHO O CORAÇÃO
E AO LONGO DOS SEUS ANOS ELE MARCOU
OS “BORRACHOS” DA NOSSA GERAÇÃO!
QUE O PASSADO, PORÉM, NÃO NOS IMPEÇA
DE HONRAR O NOVO SÉCULO QUE COMEÇA


Ó PODEROSOS DEUSES IMORTAIS,
NESTE FELIZ ENCONTRO DE AMIGOS
QUE OUTRA COISA EU POSSO PEDIR MAIS
P’RA RELEMBRAR OS BONS TEMPOS ANTIGOS
(AQUILO É QUE ERAM TEMPOS DO CARAÇAS!)
SENÃO A CONCESSÃO DAS VOSSA GRAÇAS
PARA OS PODER CANTAR COM ALMA E BRIO
ATÉ QUE A VOZ ME FALTE E EU PERCA O PIO.
PIU!


Moscavide, 8 de Abril de 2000

Num dos almoços dos "borrachos dos anos cinquenta,
no restaurante do estádio do Olivais e Moscavide

10.06.2007

O TITO LÍVIO


O Júlio Barragán é um amigo que, apesar de alguns anos mais novo do que eu, conheceu também a realidade do Moscavide do meu tempo, pois ali passou a sua meninice e ali viveu até ao final dos anos cinquenta.

De quando em vez escreve-me com achegas de alguns pormenores não referidos nas minhas crónicas sobre Moscavide antigo.

No email que agora me escreve e a seguir transcrevo, lembra-me que na rubrica “Figuras de Moscavide Antigo” me esqueci de mencionar o nome de um tal Tito Lívio, figura então tristemente conhecida na localidade e hoje totalmente esquecida.

Amigo Gouveia:

Ao percorrer mais uma vez a sua página e recordando alguns nomes lá expressos, veio-me à lembrança um muito conhecido e que aqui não encontrei. Você vai lembrar-se dele quando lhe disser o nome, - Tito Lívio mais conhecido por Tito e que era uma figura falada por toda a gente que o conhecia. Não direi o motivo, por óbvio, mas tinha outras características. Quando nós garotos, nos metíamos com ele, logo nos ameaçava dizendo que era da União Nacional. Recordo que numa ocasião em que estava pendurado numa escada encostada à parede do prédio em que o seu irmão, José Gouveia tinha a livraria, eu o invectivei por estar a colar cartazes do Carmona. Disse-lhe: Não tens vergonha ? Imediatamente desceu, puxou da carteira e mostrou-me um cartão com duas listas vermelha e verde e encimado pelas letras da União Nacional. Ameaçou-me que tivesse juízo porque senão já sabia o que ia acontecer. Estou a escrever e estou a ver tudo como se fosse hoje. Curioso, não é ? como a nossa memória é incrível. Dizia-se na época muita coisa dele e até lhe fizeram algumas coisas inadmissíveis. Esta é mais uma nota para o seu reportório de estórias.
Um abraço

Barragán

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E daí nasceu esta crónica :

Sim, lembro-me perfeitamente do Tito Lívio: Foi meu companheiro na escola primária. Era um puto meio “destravado”, como nós dizíamos ou “marado”, como se diz agora.A garotada da escola gostava às vezes de brincar às personagens históricas e ele tinha preferências por encarnar sempre, não sei porquê, a figura de Egas Moniz, e era por este nome que nós o tratávamos. Havia outro aluno – O Abreu, também meio desatentuado - a quem chamávamos D. Afonso II, por ser do tipo peidagadocha, isto é um gorducho mal amanhado, como o gordo rei da nossa primeira dinastia. Mais tarde haveria, por sinal, de se tornar um moço muito alto e magro e perder um braço ao descer de um comboio em andamento. Destravado, como sempre.

Pois o Egas Moniz e o D. Afonso II, sentiam uma embirração mútua um pelo outro, que os levava a engalfinharem-se a toda a hora, quer no recreio da escola, quer fora dela, sempre que se encontravam. Na escola, as brigas não duravam tanto, pois o professor Clarinha de pronto lhes acalmava os ânimos mediante uma bem equilibrada dose de palmatoadas que não deixavam nenhum a rir-se do outro. O pior era cá fora, pois aí elas se transformavam em intermináveis correrias, ora dás tu, ora dou eu, perante o gáudio dos circunstantes que, em vez de os apartarem, maldosamente os incitavam a intensificar a briga em que cegamente se envolviam. Não se tratava de uma verdadeira luta pois eram ambos suficientemente desastrados para tanto. Era antes uma rinha de galos que se arrepelavam, se arranhavam e se rebolavam no chão poeirento das ruas então ainda não alcatroadas, de onde um se levantava e o outro o perseguia para se pegarem mais adiante.


Acabada a instrução primária, eu fui para o Seminário e só voltei a ver o Tito em 1947, quando de lá saí, por volta dos 18 anos ou, quando muito, esporadicamente durante as férias. Quanto ao Afonso II, só o tornei a ver já sem o braço, manga vazia enfiada no bolso do casaco, alto, magro, bigodinho à Clark Gable (dado que este nome não dirá nada aos mais novos, adianto que era um galã de Hollywood, intérprete de dezenas de filmes, por exemplo “E tudo o vento levou”). Negociava agora em livros usados. Encarreguei-o de vender pelo melhor preço uma obra bastante valiosa que possuía. Nunca mais lhe pus os olhos em cima, tal como não vi dinheiro algum que compensasse o prejuízo da perda. Vezes sem conta insisti com ele para me devolver o livro ou o produto da venda. Dizia-me que sim mas que também, e ia sucessivamente adiando a data de prestação de contas até que ele próprio desapareceu da minha vista, e do meu pensamento, até hoje, que aqui o evoco, a propósito do Egas Moniz que se chamava Tito Lívio. Era fresco este D. Afonso Segundo!

Voltando ao Tito. Pertencia a uma família da classe média muito equilibrada, muito respeitada no Moscavide de então. O pai era militar de carreira, tinha duas irmãs muito recatadas e morava no último piso de um prédio de dois andares, muito interessante, pois a passagem do primeiro piso para o segundo se fazia por uma escada exterior, de ferro, tão ao gosto da época. Bem gostaria eu de possuir fotos dessa construção e de outras muito interessantes que havia lá na terra. Situava-se na esquina da Avenida de Moscavide com a rua que hoje se chama 25 de Abril, sobressaindo de uma correnteza de casas baixinhas que o ladeavam nos dois lados do ângulo recto, de que ele era o vértice, formado pelo cruzamento das duas ruas. Em frente ficava o velho casarão do cinema, onde hoje se ergue a igreja paroquial. Claro que esse prédio há muito foi substituído por outro que em nada se distingue dos incaracterísticos irmãos gémeos que o rodeiam.


Quando voltei a encontrá-lo, por volta dos dezoito anos, como atrás referi (meus e dele, pois éramos da mesma idade) era um moço mais para o baixo que para o alto, franzinote e o mesmo ar desengonçado que tinha em garoto. Não me lembro se chegou a concluir a instrução primária (quatro anos, nessa altura) mas se concluiu deve ter-se ficado por ali, pois nunca lhe conheci um emprego razoável – o que seria natural se tivesse mais habilitações, sobretudo tendo como pai um militar de carreira – vantagem nada despiciente na época.


Ao cruzarmo-nos na rua, o nosso cumprimento (o primeiro que se lembrasse de o fazer) era sempre, “destas favas nem em Paris, Melchior amigo” – frase com que o deslumbrado Jacinto de “A Cidade e as Serras” , se atirava à rescendente pratada de favas ,no seu regresso de Paris à pacata Tormes da sua infância no Douro. Reminiscências do nosso tempo de escola e do professor Clarinha que muito cuidava da nossa iniciação no apreço pela prosa dos nossos vernáculos escritores. E sem mais palavras seguia cada um o seu caminho.


Aos poucos, porém fomos deixando de nos falar. Ele sabia que eu não apreciava o governo de Salazar e ele, que entretanto tinha aderido à União Nacional, passou a evitar-me e raramente nos víamos. Lá aparecia de tempos a tempos - sobretudo em época das fingidas campanhas eleitorais que, de longe em longe, o Estado Novo se via obrigado a tolerar para estrangeiro ver - a colar cartazes de propaganda do governo, ou fazendo parte de um grupo de legionários ou arruaceiros contratados, a rasgar os cartazes da oposição ou a sabotar e fazer provocações nas raras sessões que esta conseguia organizar. A mim, pessoalmente nunca me provocou. Evitava-me simplesmente e eu a ele.


Tirando estes trabalhos , pelos quais receberia, julgo, alguns tostões, nunca lhe conheci emprego certo. Durante algum tempo terá exercido a profissão de varredor por conta da junta de freguesia, mas foi sol de pouca dura. Penso que depois disso, pelo modo de vestir, trabalharia ocasionalmente como servente de pedreiro ou coisa do género e lá ia vivendo, provavelmente com o que as irmãs lhe davam, após o falecimento do pai. A sua desgraça maior foi outra. É que o pobre do Tito tinha um defeito que a sociedade de então não perdoava: era homossexual. Quanta desgraça junta para um homem só! Adepto de práticas sexuais que a moral vigente abominava, bufo e defensor de um regime que a população detestava e pobre ainda por cima (sim, porque rico sempre arranja dinheiro para comprar discretamente os serviços que a satisfação das suas necessidades sexuais exige) reunia em si um conjunto de factores negativos que só podiam levar a uma situação dramática, nesse tempo de repressão, obscurantismo e intolerância. Para o Tito e para quantos tivessem a infelicidade (infelicidade, digo bem) de, não tendo dinheiro, terem tendências sexuais consideradas desviantes .É que, se por lado era perigoso revelá-las, por outro lado não podiam deixar de o fazer - de forma atabalhoada quase sempre - para o estabelecimento de contactos que permitissem a satisfação das necessidades que a sua natureza lhes impunha.

A vida do Tito virou um inferno. A sua aproximação aos contactos que lhe podiam interessar do ponto de vista dos seus mal-vistos impulsos situava-se, fatalmente, a um nível que nada tinha a ver com a sua educação de infância e com o estrato social a que pertencia. Os seus parceiros passaram a ser gente desqualificada, sem escrúpulos, de baixo nível moral e social, que dele se serviam mas que odiavam. Além do mais o Tito começou a beber e andava sempre bêbedo e vestido de forma descuidada, sujo mesmo. Todos o usavam, todos lhe batiam, todos o humilhavam. Contra ele se praticaram as maiores sevícias, chegando ao ponto, diz-se, de lhe enfiarem um rabo de porco pelo recto. Até que um dia apareceu morto, moído de pancada. Não se sabe se da última sova se resultado das inúmeras sovas e maus tratos com que constantemente era mimoseado. Ninguém se importou. Ninguém quis saber. Era apenas o Tito

Pobre Tito Lívio! A esta distância, não sou capaz de pensar nele sem uma imensa piedade, pelo menino que foi meu companheiro de escola e que teve uma vida tão desgraçada e um fim tão trágico .

Nunca fiz qualquer alusão a seu respeito. Se não o incluí na lista da “figuras” de Moscavide, não foi por que não me lembrasse dele. A omissão foi propositada. É que o Tito não foi figura preponderante, não foi um benemérito, não foi comerciante, não foi um conhecido proprietário, não foi um herói, não praticou nenhum acto digno de louvor, não foi um boémio engraçado, não foi uma figura “gira” de Moscavide dos meus tempos. O Tito foi simplesmente um infeliz e achei que a infelicidade não havia interesse em expô-la.


A carta deste meu amigo, recordando-me esta vida esquecida, fez-me, contudo, reflectir e mudar a minha maneira de pensar. É que o Tito, infelizmente não pelas melhores razões, foi uma “figura” local por volta dos anos cinquenta. Uns o ignoraram, uns o desprezaram, uns o usaram, uns o maltrataram, mas todos em Moscavide o conheciam...Foi, pois, uma “figura” que não posso ignorar na lista de figuras que elaborei. E acho que pode ser pedagógico recordar de forma crítica como funcionava a sociedade falsamente moralista dos tempos do “Deus Pátria e Família”. Convém até recordar o mal que se fez no passado, para que a repulsa da evocação de factos tão tristes como este, leve as pessoas a tomar consciência de que ninguém tem o direito de interferir na vida e nas opções de cada um. É que a intolerância pode mesmo levar ao crime.


Felizmente a mentalidade de hoje começa a mudar, mas que longo caminho ainda a percorrer! Basta recordar o sucedido na cidade do Porto com o travesti brasileiro, Gisberta, assassinado com requintes de crueldade por um grupo de adolescentes.

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PS: Quando digo que o Tito era homosexual, estou a usar a linguagem actual, que aliás acho correcta. No entanto, em relação ao espírito da época que nesta estória evoco, tal designação não é minimamente rigorosa. Com efeito e para que conste, nunca, nem uma só vez, ouvi chamar homosexual ao Tito, mas sim e sempre, paneleiro, em frases como “0lha ali vai o paneleiro do Tito”.
Naquele tempo, os epítetos usados para designar o homosexual eram paneleiro, panasca, rabicho, rabeta, larilas, apara-lápis, azeiteiro e outros quejandos. Já as lésbicas eram apelidadas de fressureiras e fufas.
Esta é a verdade histórica e ao descrever aqueles tempos é meu dever registá-la. Outra coisa que naquele tempo ainda não tinha sido inventada nem sonhada, era a curiosa e para mim inexplicável expressão “orgulho gay”. Tenho muito respeito pelas opções da cada um, mas este apregoado orgulho, confesso, nunca percebi.