A EDIFICANTE HISTÓRIA DE LUCRÉCIA
O meu nome próprio é Lucrécia. Não sei se foi escolha dos meus pais se dos padrinhos. Sei apenas que sempre embirrei com este nome. A propósito de tudo e de nada lá vinha um dichote: Lucrécia, mas não és a Lucrécia Bórgia, pois não? E eu com cara de parva, pois não fazia a mínima ideia de quem fosse essa tal Bórgia. Aos poucos, porém fui aprendendo que devia ter sido pessoa muito má, pois logo alguém, principalmente o papá, se apressava a garantir: Esta? Esta, coitada, é incapaz de fazer mal a quem quer que seja, é mesmo uma mosquinha-morta.
E assim era. Sempre fui uma menina muito boazinha, muito bem comportada. Era bonita, vistosa – ainda hoje sou – muito lourinha, uma pele delicada mas, diziam todos, um pãozinho-sem-sal. Nunca cheguei a perceber bem se o epíteto me agradava se não. Eu era como era e pronto.
O meu pai tinha feito fortuna na construção civil, especulação imobiliária e negócios não muito claros (escuros talvez fosse a melhor definição) como mais tarde tive ocasião de me aperceber e vivíamos dos rendimentos de avultadas contas em vários bancos da capital. E não só. Sendo, tanto o papá como a mamã muito religiosos, não havia domingo nem dia santo que não fossem à missa e eu, filha única, com eles
Quando completei 7 anos fiz a minha primeira comunhão. A mamã, pessoa frágil e doente morreu uns dias antes, mas como a cerimónia já estava sendo há muito preparada para aquele dia, e se tratava de uma comunhão colectiva de crianças da paróquia, acabou por se realizar na data aprazada. Lá fui eu, juntamente com um grupo de meninas e meninos da minha idade, de vestido branco até aos pés, soquetes e sapatos brancos, tudo a condizer e uma grinalda de rosas brancas envolvendo cachos de caracóis louros , que previamente me tinham levado a pentear no salão de cabeleireiro perto da nossa casa. O papá achou que eu ia muito bonita e não fez senão elogiar-me durante todo o dia. Parecia uma noiva, não se fartava de dizer. À noite , depois do jantar, durante o qual me fitava com olhar embevecido, mandou-me voltar a vestir o vestido da comunhão, levou-me para quarto, deitou-me na cama e violou-me. Esta palavra aprendi-a mais tarde. Na altura, nem me dei bem conta do que se estava a passar. Só sei que senti umas dores horríveis, gritei que nem uma possessa e fiquei com o vestido todo sujo de sangue. No fim ficou tudo bem. O papá deitou-se a meu lado e adormeci como um anjo.
A criada, mulher de meia idade, mas surda que nem uma porta, dormindo num quartinho afastado, não deve ter-se apercebido de nada. No entanto, à cautela, o papá, poucos dias depois, fez contas com ela, meteu-a no carro e levou-a para a terra, onde a tinha ido buscar havia uns anos atrás.. Em seu lugar contratou outra mais nova e mais robusta, para fazer a lida da casa e cozinhar, mas sem direito a dormir.
A partir daí e mais à vontade, volta não volta vinha deitar-se a meu lado, acariciava-me, trepava para cima de mim e repetia tudo o que fizera comigo na primeira noite. Tornou-se um hábito. O papá lá sabia o que fazia. Eu era a Lucrécia, a menina boazinha, incapaz de reagir. Sempre assim fui apresentada e assim acabei por me assumir. É certo que, a partir de certa altura, comecei a sentir algum desconforto, e um sentimento de indefinível angústia que com frequência me acometia. Mas não era culpa, nem remorso. O que me sucedia era simplesmente uma coisa em que eu não tinha voz activa. O papá é que sabia. Agora, já não me doía nada, não era bom nem mau. Sei que ficava molinha, molinha e adormecia depois como um anjo.
O papá tratava-me com muito carinho, nada me faltava. Comprava-me boas roupas, que ele próprio escolhia e trazia-me sempre num brinquinho. Os rapazes olhavam-me na rua, com olhos estranhos de que não sabia bem o significado, demorando-se sobretudo nas pernas um tanto gorduchas, muito brancas mas bem feitinhas, achava eu e achavam eles, pelos vistos, mas isso era-me completamente indiferente. Já o mesmo não acontecia com o papá que não escondia a sua irritação quando via os olhares dos rapazes fixos em mim, chegando mesmo a enxotá-los com manifesta rudeza. Contudo se alguns se dignavam olhar-me e lançar-me alguns deslavados piropos, sobretudo em relação à compleição das pernas, outros havia que os contradiziam confirmando o que desde muito cedo me eu habituara a ouvir, de que era mesmo um pãozinho sem sal.
Também a minha educação não era descurada. Fiz o liceu – onde o papá me levava e trazia de carro e ingressei na Faculdade, onde me licenciei
Também o papá fez questão que eu tirasse a carta de condução de ligeiros, o que eu - a mosquinha-morta - consegui com extrema facilidade e com grande surpresa do papá. Contudo nunca me permitiu que tivesse carro próprio, limitando-se a deixar-me conduzir o seu potente Mercedes, só umas vezes, mas com mais frequência a seu lado, servindo-lhe de motorista. A propósito de carro, devo dizer que tínhamos garagem própria, na ampla moradia, onde residíamos, cercada de um pequeno jardim e apetrechada ainda com um anexo para arrumo de ferramentas.
Entretanto o papá achou por bem arranjar-me um casamento com um fulano das suas relações, também endinheirado mas, pelos vistos, com dificuldade em arranjar mulher por iniciativa própria, dado precisar da interferência de terceiros. Era uma dúzia de anos mais velho do que eu, desengonçado, meio calvo, sem graça. E eu, a Lucrécia, a papa-açorda de sempre, apesar de adulta , e diplomada, conformei-me. Se era a vontade do papá…
Ligado à igreja e à devoção como era o papá, fez este questão que o casamento fosse religioso, embora sem pompa nem circunstância, tendo tido lugar numa pequena capela da paróquia que ele conseguiu fosse aberta especialmente para a cerimónia.
Sendo a nossa casa suficientemente grande e o meu quarto suficientemente amplo, foi lá que o meu improvisado marido se instalou e ali cumpriu os seus esperados deveres matrimoniais que, no que me concerne, não constituíram qualquer novidade no ramerame a que já me acostumara, sem prazer nem repulsa.. O energúmeno devia estar a par de toda a situação pois não fez qualquer reparo à facilidade da sua performance – no entanto suada e grunhida - nem à fria indiferença com que acompanhei os seus ridículos cuidados para a levar a cabo com honra e proveito.
Nas primeiras noites o papá manteve uma atitude discreta, retirando-se para o seu quarto logo após o jantar, ou saindo para se encontrar com um ou outro amigo das suas estranhas relações.. O casamento, porém não passava de uma capa para o papá continuar a desfrutar-me a seu bel prazer, sem ser alvo de reparos e maledicências de terceiros. Tanto assim que, passados dez ou quinze dias, passei a dormir e a ser assediada pelos dois em diferentes dias, de acordo talvez com um calendário entre ambos cozinhado.
Corria tudo na santa paz do senhor, se é que tal expressão faz algum sentido face às circunstâncias do nosso estranho relacionamento, quando, a partir de certa altura, o papá começou a dar sinais de súbitos e inexplicáveis ciúmes. Nunca ia para a cama comigo, sem antes ter bebido uns quantos copos de whisky ou outras bebidas alcoólicas que lhe tiravam todo o discernimento e, por vezes, a capacidade para fazer comigo aquilo que pretendia, o que o deixava completamente exasperado. Em face disso a sua ira voltava-se contra mim e acabava quase sempre por me maltratar. Outras vezes o seu mau humor voltava-se contra o outro, travando-se entre os dois frequentes discussões de que eu era razão e objecto.
A partir daí resolvi tornar-me autista e ignorar tudo o que à minha volta se passava. Uma das maneiras que encontrei de o fazer, foi embrenhar-me na leitura. Durante o tempo da Faculdade nunca cultivei esse gosto, limitando-me a empinar os calhamaços, e a decorar as fórmulas e os números da especialidade que escolhera. O desejo de me evadir da vida sem sentido que levava compelia-me-me agora a preferir outras áreas, especialmente literatura, e história. Passei a ler tudo o que apanhava à mão.
Assim, como toda a vida, por causa do nome e por contraste com o meu feitio de lesma, ouvira referências à célebre Lucrécia Bórgia, supostamente de carácter diametralmente oposto ao meu, procurei ler e li tudo o que encontrasse a seu respeito. Foi assim que cheguei à conclusão, através de estudos modernos, que a tida por cruel e depravada Lucrécia mais não tinha sido do que uma infeliz jovem, joguete dos interesses políticos e das depravações de seu pai, o Papa Alexandre VI, e de seu irmão, o famigerado César Bórgia, dos quais era amante, de forma alternada ou em simultâneo, ou cedida a terceiros, ao sabor dos jogos de poder da corte papal e dos interesses da família.
A partir daí, mesmo sem objectivamente me ter dado conta, pois por fora, continuava a mesma papa-açorda, no meu íntimo algo começou a mudar. No laboratório da farmácia, comecei a dedicar-me ao estudo de venenos, a fazer misturas e experimentações, sem saber exactamente para quê, talvez influenciado pela procedimento dos Bórgias para quem, ao que consta, o veneno era uma das formas mais usuais de resolver os seus diferendos e – livrar –se dos seus inimigos.
Não tardou muito que me tivesse tornado uma especialista em matéria de venenos, sua confecção, seu doseamento, sua utilização progressiva sem deixar vestígios. Interesse meramente académico, obviamente, pois não descortinava qualquer benefício prático nesta espécie de conhecimento.
Entretanto, a inexplicável mudança de comportamento do papá em relação a mim vinha de dia para dia tomado proporções inesperadas, tornando-se o seu azedume e a brutalidade com que me possuía, insuportáveis, sobretudo quando bebia o que acontecia agora frequentemente e de uma forma desmesurada.
Cheguei à conclusão de que o papá estava doente, sofria de algum mal que eu desconhecia e eu tinha de o ajudar a libertar-se dele, para sempre. O meu temperamento compassivo e o meu coração de manteiga não me permitiam continuar a assistir sem nada fazer perante o sofrimento do papá. Assim, após demorada reflexão e hesitações sem conta, resolvi utilizar os meus conhecimentos na área dos venenos para, sem sofrimento e sem deixar vestígios, o enviar para o seio de Deus e assim proporcionar-lhe o eterno merecido descanso.
Aos poucos, de forma gradual, fui-lhe ministrado ínfimas gotas de uma mistura por mim preparada, até que ao fim de várias semanas de progressivas queixas de agravamento do estado de saúde, a morte chegou como resultado esperado e natural. Nem então, nem até agora, o seu falecimento levantou a mínima suspeita de quem quer que fosse. O funeral, religioso como não podia deixar de ser, foi simples e discreto. Todas as semanas vou levar flores à campa do papá e rezar pela sua alma. Ele, lá do céu apreciará certamente toda a dedicação da sua mosquinha-morta.
Desde que o papá se foi desta para melhor (é assim, pelo menos, que costuma dizer-se de quem morre) comecei a prestar mais atenção ao outro que lá tinha em casa e que se intitulava de meu marido. Pelas conversas sussurradas ente ele e o papá, tinha percebido que a sua fortuna, tal como a do papá, tinha sido adquirida por meios ilícitos, jogo, contrabando, exploração de bares da noite e que havia muita gente que não se importaria nada de o abater, se para isso tivesse ocasião. Era, por isso muito reservado, muito cauteloso. Nunca lhe conheci um amigo ou alguém conhecido.
Com a morte do papá, praticamente deixou de me assediar na cama. Era como se a sua função conjugal fosses apenas um contracto que terminou com o desaparecimento de um dos signatários. Era como se o papá precisasse de um opositor que estimulasse os seus apetites a meu respeito e ao mesmo tempo, como a prática veio demonstrar, a sua submissão a essa necessidade acabasse por o enfurecer e deixar possesso.
Por essa altura, admiti na Farmácia, que entretanto com o dinheiro herdado pela morte do papá aproveitei para remodelar e ampliar, um empregado que era pau-para-toda-a-obra. Ia aos laboratórios buscar encomendas, arrumava os medicamentos nas restantes respectivas, ajudava-me a manipular alguns unguentos, limpava as instalações… um verdadeiro achado. Gigante de corpo - era um tamanhão de um homem – bonitinho de cara, era contudo um bocadinho lerdo e falto de senso comum. Diria mesmo que meio amalucado. Até no nome – Ananias - tinha algo de esquisito, de exótico. Vim a saber depois que tinha sido finalista de medicina, mas que, acometido de uma doença do foro neurológico, ficara incapaz de completar o curso ou de exercer qualquer trabalho intelectual ou outro que necessitasse de uma actuação responsável.
Um pormenor me chamou a atenção: volta não volta surpreendia-o a olhar para mim com olhar enlevado, que mudava rapidamente para um ponto qualquer do laboratório sempre que se dava conta de que eu nele tinha reparado. Nessas ocasiões corava como uma criança, balbuciava uns sons ininteligíveis e afastava-se precipitadamente fingindo ir buscar um qualquer produto ou objecto.
Tal procedimento deixava-me muito perturbada, pois comecei a perceber-me de que o rapaz estava apaixonado por mim e a verdade é que isso me excitava, pois nunca da parte de ninguém recebera prova de tal sentimento. Da parte dele, mais do que paixão ingénua era, pude perceber, autêntica devoção. Ia agora nos 45 anos e isto era uma sensação nova e completamente inesperada para mim. Acabei por me deixar envolver.
O conhecido ditado que assegura que “o lume ao pé da estopa vem o diabo e assopra” não se pode aplicar com grande precisão neste caso, pois da minha parte desconhecia inteiramente o que fosse “lume” neste tipo de relações entre duas pessoas de sexo diferente e no entanto, o ditado funcionou mesmo, certa vez em que, no fundo do laboratório, após o fecho do estabelecimento, me pegou na mão e me olhou de um modo tão implorativo, que acabei por o puxar para mim, me deitar no chão e por ele me deixar possuir. Oh céus, pela primeira vez eu senti prazer, verdadeiro e repetido prazer em ser penetrada.
A partir daí, a coisa repetiu-se com cada vez maior frequência, chegando a ter lugar, a pretexto de ele me acompanhar para transportar algum objecto pesado, na minha residência e na minha própria cama – no meu leito conjugal dir-se-ia, se no meu caso particular tal expressão tivesse algum sentido, tanto mais que o zombie do meu alegado marido, passava dias e noites sem aparecer, tendo eu a impressão de que andava fugido de alguém que com ele tivesse razões para ajustar contas. E no entanto, quando menos o esperava – em boa verdade eu não esperava nem deixava de esperar pois isso me era completamente indiferente e nem sequer tive a preocupação de me resguardar contra tal possibilidade - ele apareceu, certa tarde, apanhando-nos, nus na cama e em pleno acto sexual.
Fez a sua esperada cena de marido enganado e tentou agredir - cobarde que era - não ao rapaz, mas a mim que considerou o elo mais fraco. Foi o erro dele. Friamente, peguei num pesada estatueta em bronze que tinha em cima da cómoda e com uma golpe vigoroso esmaguei-lhe o crânio.
O rapaz ficou assustado, mas logo o tranquilizei-o e sob as minhas instruções começámos, calmamente a tomar as previdências que o caso requeria. Em primeiro lugar, apesar de me parecer já sem vida, caído por terra desferi-lhe , calmamente –nunca na vida me sentira tão calma - um segundo golpe com igual vigor. Transportámos depois o corpo para a banheira para escorrer o sangue, tendo limpo cuidadosamente a estatueta e o lugar onde tinha caído e de seguida… fomos dormir tranquilamente. Tal como aquando da morte do papá, não senti culpa, nem remorso.
Cabe aqui dizer que a rapariga que fazia a limpeza e por vezes nos preparava algumas refeições - não aquela que o papá tinha em tempos admitido, pois desde então muitas outras por cá tinham passado – se tinha despedido alguns dias antes da cena que estou descrevendo, o que prova que Deus está do meu lado.
Assim, na manhã seguinte, deixámos tudo como tinha ficado na noite anterior, com o corpo a escorrer na banheira e foi com a maior tranquilidade que nos dirigimos para a farmácia.
À noite, após o jantar, que nós próprios preparámos, dirigimo-nos finalmente à casa de banho onde se encontrava o corpo já sem pinga de sangue. Sob as minhas instruções o Ananias entreteve-se, com ajuda de uma serra eléctrica, um podão e de outros utensílios cortantes que foi buscar à casa das ferramentas, a serrar o corpo em várias partes, decepando em primeiro lugar a cabeça, depois os braços e as pernas, esvaziando em seguida os intestinos, cujo conteúdo fomos deitando aos poucos na sanita, como muito cuidado para que não entupisse. As peças que se iam cortando eram de imediato metidas em resistentes em sacos separados, de que tivera o cuidado de vir munida em quantidade mais do que suficiente, para ainda nessa noite irmos deitar tudo ao mar, em diferentes locais da costa.
Foi aí que o Ananias teve a brilhante ideia de que se podia desossar o corpo, uma vez que ossos descarnados seriam de mais difícil senão impossível identificação e que a carne, devidamente acondicionada em pequenas doses se poderia guardar numa enorme arca frigorífica que existia lá em casa e que quase não tinha utilização, e se poderia ir comendo aos poucos. Por muito que vos espante, a verdade é que fiquei excitadíssima com a ideia que, de pronto, aprovei. Achei mesmo um acto de justiça poética o facto de poder comer a quem há anos me andava “comendo” –expressão reles, mas muito em voga, ao que tenho ouvido.
Já não foi, pois nessa noite que nos desfizemos dos restos do corpo, pois passamos um bom par de horas no trabalho de cortar a carne que íamos guardando em sacos de celofane, de acordo com os locais de era retirada, - os bifes da perna de um lado, os das coxas de outro, as costelas, noutro ainda, e por aí fora, para depois se irem retirando aos poucos e consumindo, de acordo com as necessidades e apetites..
Os despojos, transportámo-los para o anexo das ferramentas durante várias noites, sem pressas, os fomos atirando ao mar em passeios que fizemos, como namorados, por vários locais da costa. Os ossos iam tão cortadinhos, com a ajuda da serra eléctrica, que dificilmente serão encontrados e sendo-o a ninguém passará pela cabeça que se trate de despojos humanos. Quanto à cabeça, foi tão esmigalhadinha que os peixes e os caranguejos se encarregarão do que resta e que, de tão pouco, não os deixará empanturrados, por certo.
Já se passaram três meses. Até hoje, ninguém se apresentou a procurar pelo traste. Sendo a zona onde moramos composta de vivendas isoladas cercadas de pequenos jardins, uma aqui outra acolá, não tendo propriamente relações de vizinhança, ninguém o conhece. Ninguém dá pelo seu desaparecimento.
Comemos hoje a última peça de carne do infeliz. Um belo bife por sinal. Devo dizer que se, a princípio, estranhei o gosto, que achava um tanto adocicado, me fui habituando e agora já não queria outra coisa. Vou sentir saudades. Se bem que a arca fica agora vazia e está sempre a tempo de voltar a encher-se. Já começo a olhar com algum apetite para o Ananias, que além de ser uma testemunha incómoda, é jovem e gordinho…e depois cabe perfeitamente no esquema de comer quem me come. Não é isso que faz a louva-a-deus – um bichinho tão simpático e inofensivo? Tal como eu.
Ah, amanhã é dia de me ir confessar. É um hábito que tenho desde menina e que , embora não signifique nada para mim, quero manter como sería do desejo da mamã e do papá. Claro que tenho de arranjar alguns pecaditos para apresentar ao padre, pois os principais ficam comigo. Deus conhece-os e ele me perdoará.
A ver se não me esqueço de mencionar este meu pecado da gula, que muito me incomoda, sem referir, claro, o tipo de acepipes da minha preferência. A propósito do padre, devo esclarecer que é um homem novo e bonito que me olha sempre com ar guloso, diria mesmo lúbrico. Aí está um belo petisco para os meus novos apetites gastronómicos. Quem sabe... um dia...
Ai papá, papá, afinal a tua Lucrécia, não é tão mosquinha-morta como pensavas. A Lucrécia Bórgia, era afinal uma menina de coro, comparada comigo. Ah, ah, ah…… Ah, ah, ah…
27 de Setembro de 2007