ESCRITOS OUTONAIS

9.27.2007

A EDIFICANTE HISTÓRIA DE LUCRÉCIA

O papa Alexandre VI, a filha Lucrécia e o filho César

O meu nome próprio é Lucrécia. Não sei se foi escolha dos meus pais se dos padrinhos. Sei apenas que sempre embirrei com este nome. A propósito de tudo e de nada lá vinha um dichote: Lucrécia, mas não és a Lucrécia Bórgia, pois não? E eu com cara de parva, pois não fazia a mínima ideia de quem fosse essa tal Bórgia. Aos poucos, porém fui aprendendo que devia ter sido pessoa muito má, pois logo alguém, principalmente o papá, se apressava a garantir: Esta? Esta, coitada, é incapaz de fazer mal a quem quer que seja, é mesmo uma mosquinha-morta.

E assim era. Sempre fui uma menina muito boazinha, muito bem comportada. Era bonita, vistosa – ainda hoje sou – muito lourinha, uma pele delicada mas, diziam todos, um pãozinho-sem-sal. Nunca cheguei a perceber bem se o epíteto me agradava se não. Eu era como era e pronto.

O meu pai tinha feito fortuna na construção civil, especulação imobiliária e negócios não muito claros (escuros talvez fosse a melhor definição) como mais tarde tive ocasião de me aperceber e vivíamos dos rendimentos de avultadas contas em vários bancos da capital. E não só. Sendo, tanto o papá como a mamã muito religiosos, não havia domingo nem dia santo que não fossem à missa e eu, filha única, com eles

Quando completei 7 anos fiz a minha primeira comunhão. A mamã, pessoa frágil e doente morreu uns dias antes, mas como a cerimónia já estava sendo há muito preparada para aquele dia, e se tratava de uma comunhão colectiva de crianças da paróquia, acabou por se realizar na data aprazada. Lá fui eu, juntamente com um grupo de meninas e meninos da minha idade, de vestido branco até aos pés, soquetes e sapatos brancos, tudo a condizer e uma grinalda de rosas brancas envolvendo cachos de caracóis louros , que previamente me tinham levado a pentear no salão de cabeleireiro perto da nossa casa. O papá achou que eu ia muito bonita e não fez senão elogiar-me durante todo o dia. Parecia uma noiva, não se fartava de dizer. À noite , depois do jantar, durante o qual me fitava com olhar embevecido, mandou-me voltar a vestir o vestido da comunhão, levou-me para quarto, deitou-me na cama e violou-me. Esta palavra aprendi-a mais tarde. Na altura, nem me dei bem conta do que se estava a passar. Só sei que senti umas dores horríveis, gritei que nem uma possessa e fiquei com o vestido todo sujo de sangue. No fim ficou tudo bem. O papá deitou-se a meu lado e adormeci como um anjo.

A criada, mulher de meia idade, mas surda que nem uma porta, dormindo num quartinho afastado, não deve ter-se apercebido de nada. No entanto, à cautela, o papá, poucos dias depois, fez contas com ela, meteu-a no carro e levou-a para a terra, onde a tinha ido buscar havia uns anos atrás.. Em seu lugar contratou outra mais nova e mais robusta, para fazer a lida da casa e cozinhar, mas sem direito a dormir.

A partir daí e mais à vontade, volta não volta vinha deitar-se a meu lado, acariciava-me, trepava para cima de mim e repetia tudo o que fizera comigo na primeira noite. Tornou-se um hábito. O papá lá sabia o que fazia. Eu era a Lucrécia, a menina boazinha, incapaz de reagir. Sempre assim fui apresentada e assim acabei por me assumir. É certo que, a partir de certa altura, comecei a sentir algum desconforto, e um sentimento de indefinível angústia que com frequência me acometia. Mas não era culpa, nem remorso. O que me sucedia era simplesmente uma coisa em que eu não tinha voz activa. O papá é que sabia. Agora, já não me doía nada, não era bom nem mau. Sei que ficava molinha, molinha e adormecia depois como um anjo.

O papá tratava-me com muito carinho, nada me faltava. Comprava-me boas roupas, que ele próprio escolhia e trazia-me sempre num brinquinho. Os rapazes olhavam-me na rua, com olhos estranhos de que não sabia bem o significado, demorando-se sobretudo nas pernas um tanto gorduchas, muito brancas mas bem feitinhas, achava eu e achavam eles, pelos vistos, mas isso era-me completamente indiferente. Já o mesmo não acontecia com o papá que não escondia a sua irritação quando via os olhares dos rapazes fixos em mim, chegando mesmo a enxotá-los com manifesta rudeza. Contudo se alguns se dignavam olhar-me e lançar-me alguns deslavados piropos, sobretudo em relação à compleição das pernas, outros havia que os contradiziam confirmando o que desde muito cedo me eu habituara a ouvir, de que era mesmo um pãozinho sem sal.

Também a minha educação não era descurada. Fiz o liceu – onde o papá me levava e trazia de carro e ingressei na Faculdade, onde me licenciei em Farmácia. Rico com era e influente, o papá não teve dificuldade em me conseguir um alvará para abrir um estabelecimento da especialidade, que passei a dirigir. Coisa pequena. O suficiente para ganhar para as minhas despesas pessoais, não tanto por precisão pois, como já referi, o papá era pessoa de teres e haveres, mas principalmente para me manter entretida.

Também o papá fez questão que eu tirasse a carta de condução de ligeiros, o que eu - a mosquinha-morta - consegui com extrema facilidade e com grande surpresa do papá. Contudo nunca me permitiu que tivesse carro próprio, limitando-se a deixar-me conduzir o seu potente Mercedes, só umas vezes, mas com mais frequência a seu lado, servindo-lhe de motorista. A propósito de carro, devo dizer que tínhamos garagem própria, na ampla moradia, onde residíamos, cercada de um pequeno jardim e apetrechada ainda com um anexo para arrumo de ferramentas.

Entretanto o papá achou por bem arranjar-me um casamento com um fulano das suas relações, também endinheirado mas, pelos vistos, com dificuldade em arranjar mulher por iniciativa própria, dado precisar da interferência de terceiros. Era uma dúzia de anos mais velho do que eu, desengonçado, meio calvo, sem graça. E eu, a Lucrécia, a papa-açorda de sempre, apesar de adulta , e diplomada, conformei-me. Se era a vontade do papá…

Ligado à igreja e à devoção como era o papá, fez este questão que o casamento fosse religioso, embora sem pompa nem circunstância, tendo tido lugar numa pequena capela da paróquia que ele conseguiu fosse aberta especialmente para a cerimónia.

Sendo a nossa casa suficientemente grande e o meu quarto suficientemente amplo, foi lá que o meu improvisado marido se instalou e ali cumpriu os seus esperados deveres matrimoniais que, no que me concerne, não constituíram qualquer novidade no ramerame a que já me acostumara, sem prazer nem repulsa.. O energúmeno devia estar a par de toda a situação pois não fez qualquer reparo à facilidade da sua performance – no entanto suada e grunhida - nem à fria indiferença com que acompanhei os seus ridículos cuidados para a levar a cabo com honra e proveito.

Nas primeiras noites o papá manteve uma atitude discreta, retirando-se para o seu quarto logo após o jantar, ou saindo para se encontrar com um ou outro amigo das suas estranhas relações.. O casamento, porém não passava de uma capa para o papá continuar a desfrutar-me a seu bel prazer, sem ser alvo de reparos e maledicências de terceiros. Tanto assim que, passados dez ou quinze dias, passei a dormir e a ser assediada pelos dois em diferentes dias, de acordo talvez com um calendário entre ambos cozinhado.

Corria tudo na santa paz do senhor, se é que tal expressão faz algum sentido face às circunstâncias do nosso estranho relacionamento, quando, a partir de certa altura, o papá começou a dar sinais de súbitos e inexplicáveis ciúmes. Nunca ia para a cama comigo, sem antes ter bebido uns quantos copos de whisky ou outras bebidas alcoólicas que lhe tiravam todo o discernimento e, por vezes, a capacidade para fazer comigo aquilo que pretendia, o que o deixava completamente exasperado. Em face disso a sua ira voltava-se contra mim e acabava quase sempre por me maltratar. Outras vezes o seu mau humor voltava-se contra o outro, travando-se entre os dois frequentes discussões de que eu era razão e objecto.

A partir daí resolvi tornar-me autista e ignorar tudo o que à minha volta se passava. Uma das maneiras que encontrei de o fazer, foi embrenhar-me na leitura. Durante o tempo da Faculdade nunca cultivei esse gosto, limitando-me a empinar os calhamaços, e a decorar as fórmulas e os números da especialidade que escolhera. O desejo de me evadir da vida sem sentido que levava compelia-me-me agora a preferir outras áreas, especialmente literatura, e história. Passei a ler tudo o que apanhava à mão.

Assim, como toda a vida, por causa do nome e por contraste com o meu feitio de lesma, ouvira referências à célebre Lucrécia Bórgia, supostamente de carácter diametralmente oposto ao meu, procurei ler e li tudo o que encontrasse a seu respeito. Foi assim que cheguei à conclusão, através de estudos modernos, que a tida por cruel e depravada Lucrécia mais não tinha sido do que uma infeliz jovem, joguete dos interesses políticos e das depravações de seu pai, o Papa Alexandre VI, e de seu irmão, o famigerado César Bórgia, dos quais era amante, de forma alternada ou em simultâneo, ou cedida a terceiros, ao sabor dos jogos de poder da corte papal e dos interesses da família.

A partir daí, mesmo sem objectivamente me ter dado conta, pois por fora, continuava a mesma papa-açorda, no meu íntimo algo começou a mudar. No laboratório da farmácia, comecei a dedicar-me ao estudo de venenos, a fazer misturas e experimentações, sem saber exactamente para quê, talvez influenciado pela procedimento dos Bórgias para quem, ao que consta, o veneno era uma das formas mais usuais de resolver os seus diferendos e – livrar –se dos seus inimigos.

Não tardou muito que me tivesse tornado uma especialista em matéria de venenos, sua confecção, seu doseamento, sua utilização progressiva sem deixar vestígios. Interesse meramente académico, obviamente, pois não descortinava qualquer benefício prático nesta espécie de conhecimento.

Entretanto, a inexplicável mudança de comportamento do papá em relação a mim vinha de dia para dia tomado proporções inesperadas, tornando-se o seu azedume e a brutalidade com que me possuía, insuportáveis, sobretudo quando bebia o que acontecia agora frequentemente e de uma forma desmesurada.

Cheguei à conclusão de que o papá estava doente, sofria de algum mal que eu desconhecia e eu tinha de o ajudar a libertar-se dele, para sempre. O meu temperamento compassivo e o meu coração de manteiga não me permitiam continuar a assistir sem nada fazer perante o sofrimento do papá. Assim, após demorada reflexão e hesitações sem conta, resolvi utilizar os meus conhecimentos na área dos venenos para, sem sofrimento e sem deixar vestígios, o enviar para o seio de Deus e assim proporcionar-lhe o eterno merecido descanso.

Aos poucos, de forma gradual, fui-lhe ministrado ínfimas gotas de uma mistura por mim preparada, até que ao fim de várias semanas de progressivas queixas de agravamento do estado de saúde, a morte chegou como resultado esperado e natural. Nem então, nem até agora, o seu falecimento levantou a mínima suspeita de quem quer que fosse. O funeral, religioso como não podia deixar de ser, foi simples e discreto. Todas as semanas vou levar flores à campa do papá e rezar pela sua alma. Ele, lá do céu apreciará certamente toda a dedicação da sua mosquinha-morta.

Desde que o papá se foi desta para melhor (é assim, pelo menos, que costuma dizer-se de quem morre) comecei a prestar mais atenção ao outro que lá tinha em casa e que se intitulava de meu marido. Pelas conversas sussurradas ente ele e o papá, tinha percebido que a sua fortuna, tal como a do papá, tinha sido adquirida por meios ilícitos, jogo, contrabando, exploração de bares da noite e que havia muita gente que não se importaria nada de o abater, se para isso tivesse ocasião. Era, por isso muito reservado, muito cauteloso. Nunca lhe conheci um amigo ou alguém conhecido.

Com a morte do papá, praticamente deixou de me assediar na cama. Era como se a sua função conjugal fosses apenas um contracto que terminou com o desaparecimento de um dos signatários. Era como se o papá precisasse de um opositor que estimulasse os seus apetites a meu respeito e ao mesmo tempo, como a prática veio demonstrar, a sua submissão a essa necessidade acabasse por o enfurecer e deixar possesso.

Por essa altura, admiti na Farmácia, que entretanto com o dinheiro herdado pela morte do papá aproveitei para remodelar e ampliar, um empregado que era pau-para-toda-a-obra. Ia aos laboratórios buscar encomendas, arrumava os medicamentos nas restantes respectivas, ajudava-me a manipular alguns unguentos, limpava as instalações… um verdadeiro achado. Gigante de corpo - era um tamanhão de um homem – bonitinho de cara, era contudo um bocadinho lerdo e falto de senso comum. Diria mesmo que meio amalucado. Até no nome – Ananias - tinha algo de esquisito, de exótico. Vim a saber depois que tinha sido finalista de medicina, mas que, acometido de uma doença do foro neurológico, ficara incapaz de completar o curso ou de exercer qualquer trabalho intelectual ou outro que necessitasse de uma actuação responsável.

Um pormenor me chamou a atenção: volta não volta surpreendia-o a olhar para mim com olhar enlevado, que mudava rapidamente para um ponto qualquer do laboratório sempre que se dava conta de que eu nele tinha reparado. Nessas ocasiões corava como uma criança, balbuciava uns sons ininteligíveis e afastava-se precipitadamente fingindo ir buscar um qualquer produto ou objecto.

Tal procedimento deixava-me muito perturbada, pois comecei a perceber-me de que o rapaz estava apaixonado por mim e a verdade é que isso me excitava, pois nunca da parte de ninguém recebera prova de tal sentimento. Da parte dele, mais do que paixão ingénua era, pude perceber, autêntica devoção. Ia agora nos 45 anos e isto era uma sensação nova e completamente inesperada para mim. Acabei por me deixar envolver.

O conhecido ditado que assegura que “o lume ao pé da estopa vem o diabo e assopra” não se pode aplicar com grande precisão neste caso, pois da minha parte desconhecia inteiramente o que fosse “lume” neste tipo de relações entre duas pessoas de sexo diferente e no entanto, o ditado funcionou mesmo, certa vez em que, no fundo do laboratório, após o fecho do estabelecimento, me pegou na mão e me olhou de um modo tão implorativo, que acabei por o puxar para mim, me deitar no chão e por ele me deixar possuir. Oh céus, pela primeira vez eu senti prazer, verdadeiro e repetido prazer em ser penetrada.

A partir daí, a coisa repetiu-se com cada vez maior frequência, chegando a ter lugar, a pretexto de ele me acompanhar para transportar algum objecto pesado, na minha residência e na minha própria cama – no meu leito conjugal dir-se-ia, se no meu caso particular tal expressão tivesse algum sentido, tanto mais que o zombie do meu alegado marido, passava dias e noites sem aparecer, tendo eu a impressão de que andava fugido de alguém que com ele tivesse razões para ajustar contas. E no entanto, quando menos o esperava – em boa verdade eu não esperava nem deixava de esperar pois isso me era completamente indiferente e nem sequer tive a preocupação de me resguardar contra tal possibilidade - ele apareceu, certa tarde, apanhando-nos, nus na cama e em pleno acto sexual.

Fez a sua esperada cena de marido enganado e tentou agredir - cobarde que era - não ao rapaz, mas a mim que considerou o elo mais fraco. Foi o erro dele. Friamente, peguei num pesada estatueta em bronze que tinha em cima da cómoda e com uma golpe vigoroso esmaguei-lhe o crânio.

O rapaz ficou assustado, mas logo o tranquilizei-o e sob as minhas instruções começámos, calmamente a tomar as previdências que o caso requeria. Em primeiro lugar, apesar de me parecer já sem vida, caído por terra desferi-lhe , calmamente –nunca na vida me sentira tão calma - um segundo golpe com igual vigor. Transportámos depois o corpo para a banheira para escorrer o sangue, tendo limpo cuidadosamente a estatueta e o lugar onde tinha caído e de seguida… fomos dormir tranquilamente. Tal como aquando da morte do papá, não senti culpa, nem remorso.

Cabe aqui dizer que a rapariga que fazia a limpeza e por vezes nos preparava algumas refeições - não aquela que o papá tinha em tempos admitido, pois desde então muitas outras por cá tinham passado – se tinha despedido alguns dias antes da cena que estou descrevendo, o que prova que Deus está do meu lado.

Assim, na manhã seguinte, deixámos tudo como tinha ficado na noite anterior, com o corpo a escorrer na banheira e foi com a maior tranquilidade que nos dirigimos para a farmácia.

À noite, após o jantar, que nós próprios preparámos, dirigimo-nos finalmente à casa de banho onde se encontrava o corpo já sem pinga de sangue. Sob as minhas instruções o Ananias entreteve-se, com ajuda de uma serra eléctrica, um podão e de outros utensílios cortantes que foi buscar à casa das ferramentas, a serrar o corpo em várias partes, decepando em primeiro lugar a cabeça, depois os braços e as pernas, esvaziando em seguida os intestinos, cujo conteúdo fomos deitando aos poucos na sanita, como muito cuidado para que não entupisse. As peças que se iam cortando eram de imediato metidas em resistentes em sacos separados, de que tivera o cuidado de vir munida em quantidade mais do que suficiente, para ainda nessa noite irmos deitar tudo ao mar, em diferentes locais da costa.

Foi aí que o Ananias teve a brilhante ideia de que se podia desossar o corpo, uma vez que ossos descarnados seriam de mais difícil senão impossível identificação e que a carne, devidamente acondicionada em pequenas doses se poderia guardar numa enorme arca frigorífica que existia lá em casa e que quase não tinha utilização, e se poderia ir comendo aos poucos. Por muito que vos espante, a verdade é que fiquei excitadíssima com a ideia que, de pronto, aprovei. Achei mesmo um acto de justiça poética o facto de poder comer a quem há anos me andava “comendo” –expressão reles, mas muito em voga, ao que tenho ouvido.

Já não foi, pois nessa noite que nos desfizemos dos restos do corpo, pois passamos um bom par de horas no trabalho de cortar a carne que íamos guardando em sacos de celofane, de acordo com os locais de era retirada, - os bifes da perna de um lado, os das coxas de outro, as costelas, noutro ainda, e por aí fora, para depois se irem retirando aos poucos e consumindo, de acordo com as necessidades e apetites..

Os despojos, transportámo-los para o anexo das ferramentas durante várias noites, sem pressas, os fomos atirando ao mar em passeios que fizemos, como namorados, por vários locais da costa. Os ossos iam tão cortadinhos, com a ajuda da serra eléctrica, que dificilmente serão encontrados e sendo-o a ninguém passará pela cabeça que se trate de despojos humanos. Quanto à cabeça, foi tão esmigalhadinha que os peixes e os caranguejos se encarregarão do que resta e que, de tão pouco, não os deixará empanturrados, por certo.

Já se passaram três meses. Até hoje, ninguém se apresentou a procurar pelo traste. Sendo a zona onde moramos composta de vivendas isoladas cercadas de pequenos jardins, uma aqui outra acolá, não tendo propriamente relações de vizinhança, ninguém o conhece. Ninguém dá pelo seu desaparecimento.

Comemos hoje a última peça de carne do infeliz. Um belo bife por sinal. Devo dizer que se, a princípio, estranhei o gosto, que achava um tanto adocicado, me fui habituando e agora já não queria outra coisa. Vou sentir saudades. Se bem que a arca fica agora vazia e está sempre a tempo de voltar a encher-se. Já começo a olhar com algum apetite para o Ananias, que além de ser uma testemunha incómoda, é jovem e gordinho…e depois cabe perfeitamente no esquema de comer quem me come. Não é isso que faz a louva-a-deus – um bichinho tão simpático e inofensivo? Tal como eu.

Ah, amanhã é dia de me ir confessar. É um hábito que tenho desde menina e que , embora não signifique nada para mim, quero manter como sería do desejo da mamã e do papá. Claro que tenho de arranjar alguns pecaditos para apresentar ao padre, pois os principais ficam comigo. Deus conhece-os e ele me perdoará.
A ver se não me esqueço de mencionar este meu pecado da gula, que muito me incomoda, sem referir, claro, o tipo de acepipes da minha preferência. A propósito do padre, devo esclarecer que é um homem novo e bonito que me olha sempre com ar guloso, diria mesmo lúbrico. Aí está um belo petisco para os meus novos apetites gastronómicos. Quem sabe... um dia...

Ai papá, papá, afinal a tua Lucrécia, não é tão mosquinha-morta como pensavas. A Lucrécia Bórgia, era afinal uma menina de coro, comparada comigo. Ah, ah, ah…… Ah, ah, ah…

27 de Setembro de 2007

9.18.2007

O NOSSO RIO (mais uma estória de putos)


Apesar da curta distância que o separa de Moscavide, até meados dos anos quarenta do século passado (a estranheza que se sente e o gozo que dá falar assim da centúria de anos que ainda há escassos meses se extinguiu!) o rio estava quase totalmente fora do alcance dos seus habitantes.

Para chegar a essa imensa superfície líquida, a que a gente na época apelidava de “mar”, havia que transpor vários obstáculos ou caminhar longas distâncias que os adultos, especialmente os do sexo feminino, dificilmente se dispunham a enfrentar.

Primeiro, havia a via férrea, ladeada de uma vedação de altas chulipas e dióspiros, correndo paralelamente ao rio. Em seguida interpunha-se uma sucessão de propriedades particulares (tais como, no sentido norte-sul, a Quinta Velha, a Quinta do Vale de Alcaide, o Campo oriental) ou do Estado, tal como o Depósito de armas e munições de Beirolas e, mais tarde, o Matadouro Municipal.

Para lá chegar por estrada era necessário passar as “Portas”, calcorrear a Estrada de Moscavide até à estação dos Olivais, atravessar a linha férrea, subir a rua paralela, conhecida popularmente como “Rua Nova”, mas que já à época se chamava oficialmente Rua Conselheiro Ferreira do Amaral, até à casa do “Caga-à-Janela, continuar descendo a mesma rua, até chegar junto ao velho casarão da sede do Rua Nova Futebol Clube (que anos mais tarde havia de dar lugar ao "Clube Desportivo Olivais-Moscavide”, sendo nesta última vila que ainda hoje tem a sua sede e insatalações desportivas.


Cabe aqui referir que o “caga-à-janela” era um pobre sapateiro, preto, que morava numa das velhas casas térreas que se estendiam por todo lado direito da referida rua. Não sei se o homem fazia jus à escatológica e acrobática alcunha porque era conhecido, embora não me surpreendesse demasiado se, em tempos onde tudo se fazia na rua, ele, para encurtar caminho, e não dispondo de retrete (quem é que dispunha desse luxo naqueles sítios!) de noite, em vez de perder tempo a espremer-se no penico, cujo conteúdo haveria posteriormente de lançar à rua, se limitasse a, muito calmamente, subir para um banquinho, pôr a peidola de fora da janela e defecar directamente para a valeta da via pública, da qual não se distanciava em altura mais de um metro, seguramente. Isto são presunções minhas, mas o extravagante epíteto não deve ter surgido do nada. Uma coisa eu posso dizer, pois a presenciei inúmeras vezes. Era por essa mesma janela que os filhos, garotos endiabrados, verdadeiros índios, constatemente entravam e saiam de casa, ignorando, por inútil, a velha porta de madeira, carunchosa certamente, a avaliar pelo aspecto degradado das paredes.

Mas voltando ao fio da história: chegados ao fundo da rua, e à sede do Clube, estava-se no coração da Rua Nova pequeno lugarejo piscatório. Aí era virar à direita, ladear ou atravessar o campo de futebol, cercado de charcos e de lodo, no meio do qual cresciam salgadeiras e canas de sumaúma, e só então se chegava ao dique de terra batida e pedregulhos, onde o rio se confinava, refulgente, imenso, coalhado de vistosas fragatas e coloridas canoas e grávido, então, de uma variedade imensa de peixe e bivalves de toda a espécie.

Em tais condições, e com tantas dificuldades de acesso, só mesmo a malta nova e a garotada, irrequieta por natureza, se dispunha a tão grande e incómoda caminhada para se aproximar do colosso líquido que era o rio, nosso ancestral e eterno vizinho.

A Rua-Nova está associada no meu espírito à mais valente tareia das muitas com que, em garoto, tive o desprazer de ser mimoseado.

Certa manhã, teria eu seis ou sete anos (1935 ou 1936) encontrei o mais assíduo dos meus vizinhos e amigos, o João Caetano, conhecido por João Formiga, para mais um prometedor dia de brincadeira – a única coisa que sabíamos fazer e fazíamos com gosto, como se calcula. Nesse dia, porém, não estávamos virados para o jogo do bilas ou da macaca no Beco do Venâncio. Nem tão pouco para corridas de arco ou para um combate de espada com as ripas que costumávamos ir gamar à lenha do João Padeiro. Não. Desta vez o exíguo corpo e a desmedida imaginação pediam-nos voos mais altos.

E vai daí pensámos, e melhor o fizemos, ir “rénar” para a beira do Rio. Lá fomos nós – o Formiga e o Ruço, dois meias-lecas esparvoados – para a tal caminhada que nos iria distanciar cerca de três quilómetros da nossas casas – a dele num pátio da rua António Maria Pais e a minha numa água-furtada da Travessa do Cauteleiro.

Lá passámos a manhã toda, a chafurdar no lodo, correndo atrás dos peixes e caranguejos, à cata de camarões, lapas, lamejinhas, lingueirões e mesmo (pasme-se!) pequenas mas saborosíssimas ostras, nos pilares do cais da Moagem, onde atracavam então enormes e bojudas fragatas, para descarga de cereais e embarque de sacas de farinha.

Quando nos fartámos da pescaria, quais terríveis flibusteiro do mar das caraíbas, emblema dos piratas desenhado com lama no peito e camisa atada na cabeça à guisa de lenço corsário, passámos a “abordar” e tomar de assalto as indefesas canoas varadas no lodo, acabando por adormecermos no fundo de uma delas, de papo para o ar, moles do sol e do cansaço de tanta brincadeira.

Quando acordámos, não fazíamos ideia nenhuma de que horas seriam. Sentimos fome e, apenas por isso, pensámos em regressar a casa. Uma rapariga, porém, reparou no olhar de lobos famélicos que deitávamos ao saco de rede onde transportava pão acabadinho de comprar numa padaria que havia ali perto e deu-nos um grosso naco a cada um.

O pão e a taleigada de bivalves crus que sofregamente deglutimos, tiveram o condão de, mitigada a fome, nos fazer esquecer de novo das horas de voltar, tanto mais que, por essa altura, outros putos lá do sítio se tinham juntado a nós na brincadeira do assalto às canoas e na construção de diques para retenção de alguns dos milhares de pequenos peixes que pululavam nos charcos de água na enorme extensão de lodo deixada a descoberto pela maré vaza.

Já o cair da noite se aproximava, quando um vulto furibundo surgiu na nossa frente agitando um cinto na mão e gritando pelo meu nome. Era o meu pai e não foi exactamente pelo meu nome que chamou mas por um irado e ameaçador “Oh, rapazinho!”. Era assim que ele me chamava, sobretudo quando eu tinha aprontado alguma maroteira. E eu sabia bem demais que este “Oh, rapazinho”, dito no tom com que agora me soara aos ouvidos, tinha fortes probabilidades de ser seguido de uma boa sova.

Com efeito. Pegar-me numa orelha, e começar a arrastar-me por toda aquela lonjura, até casa, dando-me correadas, com o João atrás, sofrendo antecipadamente com a visão do que o esperava, foi obra de um momento.

Claro que em casa voltei a provar “comida de urso” e na verdade bem a merecia, pois os meus pais (sobretudo a minha mãe) tinham passado um dia inteirinho de angústia, procurando por mim em tudo quanto era sítio, principalmente quando passou a hora de almoço sem eu aparecer nem dar sinais de vida.

Seria natural que, depois de tão monumental tareia (“uma daquelas “tareias de criar bicho”, como dizia a minha mãe), jamais tivesse coragem de voltar a desarvorar de casa sem dizer “água vai”. Seria, seria, mas não foi isso que aconteceu. Logo na manhã seguinte encontrei o João que, pelo ar murcho que apresentava, concluí ter levado tratamento igual ao meu. Cabisbaixos, sem trocar uma palavra, começámos a andar, a andar e só parámos, sabem aonde? Exactamente junto ao cais da Moagem, na Rua-Nova, onde tínhamos passado todo o dia da véspera.

É que tínhamos lá deixado uma obra de engenharia muito importante: um dique construído no lodo, para aprisionar pequenos peixes e era para nós de vital importância averiguar “in loco” se a nosso trabalho tinha, ou não, resistido ao avanço da maré. Lá deixámos de novo passar a hora do almoço, lá chegámos a casa vermelhos que nem lagostas cozidas, após dois dias consecutivos à torreira do sol (então eu, que era ruço-de-má-pelo!) e lá levámos cada um, de novo, a nossa respectiva e merecidíssima sova.

Este percurso que nós fizemos para encontrar o rio era o caminho mais fácil, embora mais longo e mais fatigante. Porém, quando a canícula apertava, não havendo nessa altura qualquer piscina nos arredores, a malta, aos magotes, ia em busca dele por outro trajecto mais curto mas mais complicado.

Depois de uma quantas brincadeira e tropelias à sombra das árvores do "Taludo", local aprazível onde então se passavam muitas e boas horas da nossa descuidada infância bastava um lembrar-se de dizer "bora até ao Bico", e logo a tropa-fandaga começava a correr, descendo a pequena ladeira até à via férrea, mesmo ao lado do "Familiar" " e toca de trepar as chulipas (mas era preciso ter cuidado com os “piquerrús” nome que, não sei porquê, dávamos aos operários e vigilantes da linha).

Voltávamos a trepar as chulipas do lado oposto, atravessávamos o Campo Oriental - vasta extensão rectangular coberta unicamente de gramíneas, onde era costume nas tardes de verão ir deitar “papagaios”, que nós próprios confeccionávamos com papel de lustro e finas fasquias de cana, saltávamos o muro da quinta em frente, quase sempre perseguidos por cães de guarda, embrenhávamo-nos nos campos alagadiços de canas de sumaúma e salgadeiras, que antecediam o leito do rio e era em tropel que, já todos em pelota, corríamos para a pequena enseada a que chamávamos “o Bico”, ( o local onde hoje se ergue a Torre Vasco da Gama) os maiores para mergulharem directamente na água, e os mais pequenos para ficarem pelos charcos que a maré vazia deixava em covas abertas no lodo. A escassos metros do Bico, junto ao canavial, ficava o poço do Sarica – um largo poço redondo, de água doce, que sobressaía do solo apenas um escasso palmo, onde os mais atrevidos se vangloriavam de mergulhar, apesar, diziam, da sua imensa fundura. Constava que já lá tinham morrido vários rapazes. Lá que era perigoso era, e uma vez, se não lhe acodem, ficava lá o Sanona – um dos rapazitos de Moscavide muito conhecido nesse tempo.

Chegava a atingir dezenas, o número de rapazes que ali, no Bico e nas imediações do Poço, passavam juntos as longas tardes desses álacres, luminosos e inesquecíveis verões longínquos. Tardes inteiras. Em pelota, como já referi, a mergulhar, a chafurdar no lodo, a correr, a atirar pedras.

Além de aprenderem a nadar (à cão, muitas vezes), os mais pequenos adquiriam ali a sabedoria da vida, de cujo conhecimento os mais crescidos faziam ostensivo alarde. Por vezes, depois do cansaço dos mergulhos, das correrias e da moleza das longas secagens ao sol, lembravam-se alguns de fazer competições de “pívias”. E era vê-los, de pé, ou sentados em fila, perante a expectativa ou incitamento dos restantes, numa azáfama de mãos, que em gestos frenéticos e sacudidos se esforçavam por chegarem em primeiro lugar ao resultado final – àquilo a que eu, na altura ainda longe de praticar tal desporto, havia de classificar, mais tarde, como “a dor boa”.

Certa vez, o António Gajeiro (filho da “Ti Maria Gajeira”, que vendia criação na praça e era primo dos Gajeiros de Sacavém, designadamente do conhecido e renomado fotógrafo Eduardo Gajeiro) um tamanhão barrigudo, mais velho que a maioria dos que nessa altura frequentavam “O Bico” e dotado de um “instrumento” que infundia respeito e me deixava meio atemorizado, pois ignorava que aquilo pudesse crescer tanto, numa altura em que este se encontrava em plena erecção, resolveu pôr-se a nadar de costas, com o dito cujo fora de água, apontando para o céu, enquanto gritava a plenos pulmões “deixem passar que isto é um barco à vela!”. Na verdade o que eu via era apenas o mastro, mas ele lá seguiu todo impante, perante estrepitosas gargalhadas e fartos aplausos da malta.

É então que um outro, o Arsénio, se bem me lembro, surge cortando a água, de rabo para o ar, corpo esticado, pernas batendo na vertical, deixando atrás de si uma esteira fervilhante de espuma, peidando-se de forma contínua e ruidosa e gargalhando despudoradamente, gritava: “arredem que isto é um navio a vapor!”

Foi um gozo, com a malta toda a aplaudir as performances das singulares embarcações.

O Arsénio faleceu faz pouco tempo. O António Gageiro morreu bastante novo. Já lá vão trinta ou quarenta anos.

Outra vez, as nossa brincadeiras foram interrompidas pelos gritos e pelo vulto de uma mulher que, vinda do Sul, dos lados da Rua-Nova, caminhava ao longo do dique, por entre moitas de salgadeiras, em direcção ao local onde nos encontrávamos.

Chamava pelo António (pelo que todos os Antónios, eu incluído, arrebitaram as orelhas entre intrigados e receosos) e agitava no ar um objecto que não conseguíamos identificar. À medida que se aproximava, porém, os gestos e as palavras começaram a ser claramente entendíveis: “Ó António, anda cá António, meu patife. Anda cá que te trago aqui o fato de banho”.

O fato de banho – uma antecipação muito fashion e muito exígua de modas que só mais tarde haveriam de surgir) era um grosso cinto de cabedal que a mãe do António Salgueiro, também meu vizinho e morador num pátio (muitos pátios e vilas havia nesse tempo em Moscavide!) da Rua António Pedro de Carvalho, agitava ameaçadoramente no ar.

Claro que o banho do António Salgueiro (logo agora que lhe tinham trazido o fato!) terminou naquele mesmo instante, seguindo à frente da pobre senhora que, gorda como era, esbaforidamente tentava apanhá-lo. Sendo óbvio que ela não saltara as chulipas como nós, imagine-se a volta que ela tivera de dar até chegar junto do filho com o seu indesejado último modelo de fato de banho. Mais óbvia, porém foi a tareia que o António comeu quando chegou a casa.

Éramos todos iguais e todos frescos!

Mas creiam. As nossa maroteiras eram brincadeiras bem mais inocentes e bem menos danosas do que as “brincadeiras” em que boa parte dos jovens de hoje se envolvem. E isto não é saudosismo. É mera constatação.

Eram assim os nossos tempos de rapaz, de há setenta anos, à beira deste rio que nos era vedado, mas que, tal como nos amores proibidos, sempre achámos maneira de o encontramos, de o desfrutarmos, de o amarmos.

* * *

“O Bico”, há muito que não existe. Do poço do Sarica nem sombras. Grande parte dos que ali brincaram já se foi. Mas o nosso Rio cá continua, formoso, agora mais do que nunca, depois que, na margem do nosso contentamento, no local exacto onde decorreu parte da nossa – da minha - infância, se ergueu a Expo que, se a todos os portugueses encheu de orgulho, a mim me deixou particularmente embevecido. É que o “nosso” Rio foi de facto a grande estrela, a jóia da coroa desse inesquecível evento.

Dantes, éramos um pequeno grupo de putos que naquelas margens nos divertíamos. Agora, são milhares os jovens que ali encontram variadas formas de lazer, divertimento e cultura.

Na verdade, como diz a canção, A velhice vai chegando Os cabelos branqueando... Mas o Tejo é sempre novo...

Abril de 2001

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Nota,: com prejuízo embora da fluidez da escrita, fiz questão em referir nomes de sítios e lugares que não mais existem. É que, como sempre digo, os mortos só o são verdadeiramente quando ninguém mais deles fala ou deles se não recorda. Assim são os lugares. E tanto como as pessoas a memória dos lugares deve ser preservada. Fazem parte da nossa memória colectiva. Pode a mais ninguém importar, mas a mim importa. E disso faço questão.

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9.11.2007

A MELGA



A Melga


Vrunga que vunga

Mal a luz se apaga

A puta da melga

Começa a atacar

É um guerra antiga

Que com esta “amiga”

Me empenho em travar

É ela a zunir
Tentando pousar
E eu, mãos no ar,
Com força abanando
Para a afastar
E ela esperando
No sono eu pegar
Vrunga que vunga
Até me cansar.

E ao ver-me dormindo

Sem forças, exangue,

Aí vem a danada

Sugar o meu sangue.

Pela vida fora

Sempre foi assim

Entre eu e a melga

Uma guerra sem fim.

Quando eu acordava

Mordido e inchado

As babas crescendo,

Um Cristo chagado

Por vezes parecendo,

Aquilo só vendo,

A raiva que dava!

Pois hoje vais pagar

Maldita tu sejas,

Por mil brotoejas

Que desde menino

Sem dó me deixaste.

Hoje vou-te apanhar

E assim me vingar

De toda a peçonha.,

Melga sem vergonha,

Que em mim inculcaste.

Vrunga que vunga

Já ela aí vem

Já ela pousou

Vais ver o que é bom!

Mas espera, que é isto,

Quem é que me explica,

Vrunga que vunga

Mas pousa e não pica

E pousa e não pica

Que se passa aqui

Quem é que me explica?...

E a noite se passa,

Num vrunga que vunga
E a puta da melga

Chateia, chateia,

Chateia e não pica!

Meu Deus que tristeza

Uma coisa assim

Se já nem as melgas

Se interessam por mim

E em boa verdade

Sangue tão ruim

Quem pode,
quem há-de,

Se bom do juízo,

Gostar de o chupar

Sem ter prejuízo?

Vrunga que vunga

E a melga lá vem,

Está-me gozando

A filha da mãe

Só zumbe e esvoaça

Mas nem se detém

Esta velha carcaça

Já não lhe convém

Oh céus, Oh desgraça,

Mas que fim sem graça

Que esta história tem

E agora que importa

vrunga que vunga

Se a melga lá vem!.....

Boa noite, ò melga,

Passa muito bem


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Nota: Não se trata apenas de uma brincadeira.
Reparei há dias que as melgas,
que toda a vida me tinham feito grande mossa,
agora não me picam mais, esvoaçam sobre mim,
poisam por vezes, mas picar, não picam

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11-09-2007

9.03.2007

PARTISTE...


PARTISTE…


Maria foi a minha primeira namorada.
Não deu certo. Ainda hoje não sei bem porquê.
Os pais mudaram-se para outra cidade
e nunca mais nos vimos,
nem dela tive notícias desde 1952.
Mas nunca a esqueci.
A primeira namorada nunca se esquece.
Garantiram-me há tempos que tinha morrido.
Fiquei imensamente triste, claro,
e em sua memória compus este soneto.

Afinal, parece que a notícia não era verdadeira.
Parece. pois dela continuo sem nada saber.
Sei apenas que, se for viva, será uma velhinha como eu,
pois terá agora (2007) à volta de 77 anos
O Poema, porém, é verdadeiro
e permanecerá, para além de nós

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Partiste (e contigo ainda sonhava)
Para a viagem final e sem retorno...
Ficou mais feio o mundo, sem o adorno
Que o teu formoso rosto lhe emprestava


E assim perdi de vez qualquer esperança
De poder vir um dia a encontrar-te.
Agora, só me resta recordar-te
Com magoados olhos da lembrança


Mas logo que escurece e morre o dia,
Me deito e adormeço, por magia,
Tu chegas tão real junto ao meu leito,


Que embarco na ilusão, ao acordar,
De que só morrerás se eu te matar
Um dia, bem no fundo do meu peito

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1988