ESCRITOS OUTONAIS

5.23.2007

O VELHO, O RAPAZ E A BANDEIRA


O Velho, o rapaz e a bandeira

Menino de aldeia, transplantado para uma terra que me haviam dito ser Lisboa – a capital do Império – mas que da grande cidade só tinha a proximidade, vi-me num pequeno aglomerado populacional ao qual faltava apenas o recorte de altas serranias em redor e a negrura do xisto das casas igualmente baixinhas, para ser uma parvónia igual àquela de onde vinha.


Grande parte dos habitantes, oriundos dos mais diversos pontos do país era tão provinciana como a minha família. Para além de novos empregos, na construção civil, nas pequenas fábricas ou no comércio, mantinham os mesmos hábitos campesinos, ocupando, muitos deles, todas as suas horas de folga no cultivo de pequenas hortinhas nos intervalos verdes entre habitações, que os havia por todo o lado, ou mesmo em terrenos incultos de uma área bastante extensa para além do limite das casas existentes, que aos poucos - e não tardaram muitos anos - foram completamente ocupados por altos edifícios, até não restar um palmo de terra livre e o betão ter tomado posse integral de toda a área que constitui a vila dos dias de hoje – freguesia, muito recente aliás, no ano de 1934 em que lá cheguei.

Naquele tempo havia ali apenas dois ou três automóveis, dos quais me recordo, por se situarem muito perto da nossa casa, o do comerciante Martins, dono da mercearia com o mesmo nome e o do Zé da Carolina, vendedor de máquinas de costura e instrutor na aprendizagem do respectivo uso. Foi a ele que minha mãe adquiriu a sua Nawman e foi ele que lhe ensinou a usá-la. Nela se estafou, coitada, bordando em intermináveis serões, à frouxa luz do candeeiro de petróleo, lençóis e fronhas, para um armazém que lhe pagava uma ridicularia por peça.


A minha referência à quase ausência de automóveis serve apenas para salientar a pacatez da pequena povoação, e a possibilidade que oferecia à garotada de brincar em plena rua, sem perigo de ser atropelado – vantagem que, no que me toca, apesar dos meus escassos cinco anos, aproveitei quanto pude, pois na rua passava dias inteiros de brincadeira com os outros putos da vizinhança. Nesse aspecto não houve grande mudança em relação à Aldeia, pois ali os garotos se criavam praticamente ao ar livre disputando com a bicharada, designadamente, cães porcos e galinhas, o próprio eixo da rua. Havia ali mais perigo de ser atropelado por uma alimária desencabrestada, ou por um carro de bois desgovernado, do que na nova terra que nos tinha saído na rifa. Tanto assim é que, com a tenra idade de dois anos fui pisado por um cavalo, com consequências para minha frágil coluna, de nunca me recompus.

Sempre tive para mim que a mudança de ambiente, sobretudo em criança, faz-nos tomar mais atenção no que de novo se encontra e que, por tal motivo, permite gravar na memória, com maior nitidez, o que para trás se deixou. Na verdade tais mudanças permitem estabelecer marcos, pedras semeadas ao longo do caminho da vida, que nos permitem dizer, isto aconteceu em tal altura, porque tal coisa só existe em tal sítio e se eu me lembro é porque foi antes de de lá ter saído. Por isso eu me lembro, com grande nitidez de coisas que não me lembraria se tivesse permanecido sempre no mesmo espaço, da mesma forma que retive muito viva a memória de tudo o que de novo, e em tenra idade, passei a ver ou a viver no local onde cheguei.


Assim, em Moscavide – ainda não tinha referido o nome da terra de que estou falando - relativamente a esses primeiros tempos, de olhos bem atentos à nova realidade que se me oferecia e, num esforço para a ela me adaptar, o fiz de tal forma que ainda hoje, passados tantos anos e de há tantos ter deixado de lá morar, consigo lembrar-me do rosto, do nome, da figura, do jeito de andar e de falar de cada uma das pessoas da minha rua e, pelo menos, da rua adjacente mais próxima - a António Maria Paes. Não tardou muito que toda a povoação e os campos vizinhos, chegando mesmo até ao rio, viessem a fazer parte do roteiro das minhas incursões, mas nos primeiros, talvez dois, anos, essas duas ruas constituíam todo o meu universo.


Por isso, digo, bebi, cada acontecimento, cada pequeno episódio, perscrutei cada rosto, com uma curiosidade, uma avidez, um genuino espanto, que hoje me surpreende a nítida memória que conservo de cada pessoa, cada casa, cada pátio, cada recanto. As pessoas há muito morreram, na sua maior parte, as casas e pátios já não existem, mas na minha retina permanecem inteiramente presentes e só quando os meus olhos se fecharem o seu desaparecimento será total e definitivo.


Embora delas me lembre, não irei falar contudo de todas as pessoas que moravam na vizinhança, como fiz em relação aos moradores da Travessa do Cauteleiro que, em outra crónica, nomeei um por um. Hoje falarei apenas do Ti Domingos, sapateiro que morava e tinha a sua oficina numa casa baixinha, de cor amarelada na Rua António Maria Paes, mais ou menos no local onde hoje se situa a Junta de freguesia.

O Ti Domingos era homem de poucas falas. Sentado na sua tripeça em frente de uma mesinha à altura dos seus braços, na qual em pequenas subdivisões tinha as várias espécies de pregos, e tachas, colas e pomadas e as pequenas ferramentas inerentes ao seu ofício, ia enfiando a agulha e puxando o fio das viras de uns velhos xanatos, ou batendo a sola, ou cortando pequenos pedaços de cabedal para deitar umas tombas a uns quaisquer sapatos que, nos tempos que correm iriam de imediato para o lixo. Assim passava os dias ocupado no seu trabalho, em silêncio e com ar compenetrado. Não sei se tinha mulher, pois se a tinha nunca de deixava ver. Lembro-me é do filho, um rapagão que foi para a Marinha e passou a ser, por tal motivo, conhecido por Zé Marinheiro, pouco parando em casa, como ave de arribação que era.

À porta da oficina – que não era mais do que a sala de entrada da sua residência, e para ganhar mais uns tostões que compensassem a exiguidade do que os remendos nos sapatos lhe proporcionavam, tinha ainda o Ti Domingos uma tabuleiro com tremoços, pinhões, pevides, raiz de alteia, rebuçados do doutor Centazi, suspiros, beijinhos, e alguma fruta da época, especialmente umas maçãs vermelhinhas que eu tanto apreciava, para vender, sobretudo à miudagem que, volta não volta, aparecia para comprar qualquer alguns daqueles artigos e roubar-lhe outros sempre que o apanhava distraído ou ia lá dentro verter águas. Por isso, com pouca paciência para os aturar, uma vez aviada a medida de tremoços ou pevides ou o quer que fosse, e arrecadados os tostões que a garotada levava sempre trocadinhos e bem contados, corria logo com eles.


Havia contudo um rapazito com quem ele gostava muito de conversar. Porque era bem comportado, porque era humilde e porque - descobriu o velhote – partilhava, ou tudo indicava querer partilhar dos seus secretos ideais libertários de velho anarquista e republicano, que era.

Esse rapazito, teria na altura 14 anos. Era o meu irmão Zé. Chegado da aldeia dois anos atrás, onde tivera como professora primária uma sobrinha do poeta e temível polemista Guerra Junqueiro, habituara-se a admirar como grande progressista, quase revolucionário – muito provavelmente pela sua acção contra o obscurantismo clerical - a figura de Marquês de Pombal. A partir desse sentimento difuso e incipiente de amor ao progresso, o transmontanito continuou a alargar tal sentimento, a partir de leituras e, sobretudo, tocado pelas notícias da guerra civil espanhola que estava a começar, tendo de imediato aderido à legitimidade do governo republicano na defesa contra o golpe franquista. De tal maneira que, tão criança ainda, arranjou um mapa de Espanha no qual se entretinha a assinalar com jubilosas bandeirinhas as vitórias dos republicanos, chorando copiosamente quando os jornais ou rádio anunciavam, com incontido regozijo e assumida parcialidade, os avanços dos falangistas.

Ora, o Ti Domingos, secreto aderente de ideias muito mais avançadas do que o simples republicanismo (não sei se na sua juventude não teria sido, de forma militante, mais do que isso) logo se apercebeu dos interesses do garoto e ficava encantado sempre que lá o apanhava, oferecendo-lhe um banco para se sentar, contrariamente ao que fazia com os outros galfarros. Até eu, que andava pelos meus sete anos e nunca largava o meu irmão, tinha direito à sua complacência e por ali ficava sentado no chão, normalmente entretido a deglutir uma das gulodices que ele vendia, comprada com quaisquer dois tostõezitos ganhos a limpar a capoeira da dona Sara ou a prestar-lhe outro qualquer pequeno serviço.

Durante as suas conversas, de que não percebia patavina, ficavam-me no ouvido nomes esquisitos, como Lenine. Kropoktine, Jaurès, Zola, comuna de Paris, revolução bolchevique, não sei quê, não sei quê. O único desses nomes que eu conhecia era o de Lenine, que assim se chamava um puto da minha idade, que morava mesmo em frente do Ti Domingos, numa casa onde viria depois morar o Ti Amadeu, o colchoeiro, que se dizia dono do meu gato black, mas isso faz parte de outra história. De qualquer modo o nome de Lenine, fez-me arrebitar as orelhas, porque me fazia muita confusão que o puto Lenine que morava em frente e que costumava jogar o bilas comigo, tivesse sido objecto de um advertência da professora de que, sendo o seu nome muito feio passaria a ser tratado na escola simplesmente por Zé – designação que, nem de longe nem de perto fazia parte do seu nome. Mistério!!!

Certa vez, no meio de todos aqueles nomes de pronúncia arrevesada o ti Domingos contou uma história que o Zé ouviu, de olhos brilhando e boca escancarada, de um garoto da comuna de Paris que morreu como um herói ao colocar uma bandeira vermelha no alto de uma barricada.

Dessa até eu gostei, apesar de não fazer ideia nenhuma do fosse uma barricada, estado nesse momento mais interessado em saborear uma enorme maçã vermelhinha que era ,como atrás referi, uma das gulodices da banca do Ti Domingos que eu mais apreciava. Na verdade eu gostava de ouvir todos aqueles palavrões que para mim não faziam qualquer sentido - mas que me conferiam uma certa importância pelo simples facto de me ser permitido ouvi-las sem que ovelho ti Domingos corresse comigo.


Estas conversas entre o velho e o garoto foram-se tornando mais frequentes, estabelecendo-se entre eles uma curiosa cumplicidade que tornava o primeiro feliz por poder transmitir os seus conhecimentos e concepções ao segundo, que aqui teve a sua iniciação política e determinou, quiçá e para sempre, toda sua postura e entendimento do mundo e da sociedade.

Por essa altura o Zé tinha começado a trabalhar como marçano na Drogaria Fenix, logo ali na Avenida (que nem alcatroada era ainda) bem pertinho da nossa casa. Para além de, apesar dos seus magros 14 anos – magros na conta e magros na exiguidade do seu corpito esguio - levar a casa dos clientes, em pesados caixotes de madeira, as garrafas de lixívia, petróleo etc, que as madamas encomendavam, um dos seus trabalhos, antes de aprender a atender os clientes ao balcão era num armazém nos fundos da loja, fazer embrulhos de potassa, sabão e outras drogas e por vezes misturar tintas para a obtenção de determinadas cores em falta. Foi assim que, num retalho de pano cru surripiado certamente das sobras do trabalho da nossa mãe, se entreteve a pintar, a tinta bem vermelhinha, com alguma paciência e arte a foice e o martelo, símbolo do movimento comunista e operário de que tanto lhe falava o ti Domingos.

Sendo os outros irmãos muito pequenos ainda, e aos pais nem pensar, só a mim o Zé se dignou mostrar, muito inchado, aliás, a sua obra, que logo retirou da minha vista para a guardar não vi onde, nem nisso eu estivesse minimamente interessado.


Na nossa casa, que era um sótão de madeira, o tecto ia descendo a partir do meio, acabando por as paredes laterais não terem mais de, talvez, uns 80 centímetros de altura, constituindo o resto do espaço até ao fim das traves e a todo o comprimento da casa, um esconso a que chamávamos - não sei porquê - “sobrescada”, que servia de arrecadação, mas que praticamente só se podia percorrer gatinhado e que, portanto era, para os mais novos um esconderijo e uma fonte de divertimento e de tabefes também, pois vínhamos de lá completamente cheios de pó e sujidade.


Certo dia, numa dessas brincadeiras, fui encontrar, dentro de uma caixa de sapatos, a tal bandeira com foice e o martelo – cujo significado, eu, nessa altura, completamente ignorava. Saí pois, agitando-a no ar e manifestando ao Zé a minha satisfação pela sensacional descoberta
Com grande espanto e surpresa da minha parte, ele arrancou-ma da mão e com um ar muito zangado advertiu-me que nunca, mas nunca mais, voltasse a mexer naquilo. Passadas semanas fui dar de novo com a bandeira, mas noutro sítio, bem lá pró fundo entalada entre uma trave vertical e o forro. Claro que não me atrevi a mexer-lhe. O meu irmão era o meu herói, eu vivia colado a ele e jamais me passaria pela cabeça contrariá-lo. Ele lá teria as suas razões.

Pouco tempo depois, numa certa noite, meu pai, que sofria muito de bronquite asmática e se sentia particularmente mal, depois de jantar e tendo acabado de dar de comer aos filhos (minha mãe estava internada no hospital por esses dias) mandou o Zé, como filho mais velho, à farmácia do senhor Duarte comprar algodão iodado para pôr ventosas no peito. Eram mais ou menos 9 horas. Passou meia hora, uma hora, duas, deu a meia noite e o Zé sem aparecer. O pai, aflito com a asma, estava furioso. Quando o rapaz entrou, muito ronceiro, o pai esperava-o de cinto na mão. Quis saber onde ele se tinha metido para só aparecer aquela hora. O Zé não tinha resposta. Que se tinha entretido com uns rapazes, que tinha ido ao cinema – o que não fazia sentido, pois não era dia de cinema nem ele tinha ainda o hábito de ir sozinho . E aí o cinto entrou em acção e com tal gana que, tendo batido numa cadeira a correia se partiu. Tão irado estava o pai, que a falência do instrumento de punição não lhe quebrou o ímpeto, nem lhe amainou a ira. Foi buscar um molho de cordas grossas e com ele continuou a zurzir o mocinho, intimando-o, a cada golpe, a dizer onde se metera. E o Zé, moita-carrasco. Vendo a inutilidade das esfarrapadas desculpas iniciais, cerrou os lábios e nem mais uma palavra lhe saiu da boca aguentando, a pé firme e sem um ai, a mais monumental tareia que vi alguém apanhar em toda a minha vida.A tudo assisti, encolhido na cama, assustado e condoído como se cada pancada no meu irmão a estivesse também sentindo nas costas. A verdade porém - exagero à parte na desmesura do castigo - é que a ira do pai, pelo menos desta vez era inteiramente justificada.

Na manhã do dia seguinte, à boca pequena, mas mesmo assim estendida a toda a povoação, que era então bem minguada, circulava a notícia de que tinha aparecido, pendurado bem no alto de um poste de electricidade, uma bandeira comunista, que os bombeiros já tinham retirado mas que andava por ali a “Pevide” – deturpação da sigla PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado – antecessora da PIDE, a interrogar toda a gente. Nessa altura, em plena guerra civil de Espanha, com os campos ideológicos muito extremados, a repressão contra as ideias de esquerda era extremamente violenta e palavra “Pevide” infundia muito mais terror ainda do que viriam a infundir a PIDE ou a DGS – diferentes designações da mesma tenebrosa organização.
Calcula-se, portanto. quanto as pessoas da terra ficaram aterradas com a sua presença, o que não impedia a muitos de, à socapa, sorrirem para os amigos de confiança e de enaltecerem a coragem e habilidade do “sacana” que conseguira por aquilo lá em cima.

Quem não ligou puto a toda essa história fui eu, que com os meus sete anos, tinha coisas mais importantes em que pensar, como ir jogar ao bilas para o beco do Venâncio, ou arranjar um arame forte para fazer uma gancheta à maneira para o meu arco, ou ver a maneira obter, por troca, os cromos em falta para a caderneta dos ciclistas da volta a Portugal. Isso sim, eram coisas que valia a pena um gajo interessar-se e foi a isso que fui, mal o pai saiu para o trabalho e o Zé, ainda moído pela sova da noite anterior, saiu para o seu calvário de transportar nas sua frágeis costas o pesado caixote de compras (pintado de verde, estou a vê-lo) a casa das freguesas.

Duas ou três semanas depois, numa das minhas explorações aos poeirentos trates da sobre-escada, veriquei que a bandeira já não se encontrava onde a vira pela última vez. Dada a importância que o Zé atribuía àquela coisa, apressei-me a informá-lo do seu desaparecimento e a protestar a minha inocência em tal facto. A sua reacção, desta vez, foi ainda mais estranha. Empalideceu, colocou-me ambas as mãos nos ombros, aproximou o rosto do meu e balbuciou: Toino, nunca fales a ninguém nessa bandeira, ouviste? Esquece que alguma vez a viste, esquece que ela existiu. Prometes, Toino, prometes? E o seu tom era tão imperativo e ao mesmo tempo tão suplicante que – acreditem – eu, que me gabo de ter uma memória de elefante, interiorizei de tal forma a obrigação de esquecer que a esqueci mesmo completamente, e a varri da minha memória como se, de facto nunca, tivesse existido.


Então e não é que, há poucos dias, setenta e um anos depois, no momento exacto em que trincava uma maçã vermelhinha, parecida com aquela que mordiscava na loja do Ti Domingos na altura em que ele contava a história do garoto da Comuna de Paris, o qual morreu ao tentar colocar no alto de uma barricada a bandeira rubra dos trabalhadores, me lembrei com impressionante nitidez da bandeira que o Zé, tão insistentemente, me fez jurar que esquecesse.


E no meu cérebro tudo se juntou como num puzzle e uma certeza adquiri nesse momento. Na noite em que o pai mandou buscar o algodão iodado, o Zé aproveitou a única ocasião que até ali se lhe apresentou de poder sair à noite para cumprir a tarefa que há muito se devia ter proposto: pegar na bandeira, esconde-la debaixo do casaco e ir pendurá-la no topo de um poste de electricidade. Só que, apesar da fraca iluminação das ruas e do insignificante movimento de pessoas, deve ter sido forçado a esperar uma ocasião mais propícia e mais segura que só deve ter surgido por volta da meia noite, justificando-se assim a sua estranha demora em regressar a casa.

Tudo isto são conjecturas minhas, bem entendido. Mas a ter sido assim, estou certo que, além dele, outra pessoa houve que terá estado a par do sucedido, se não antes, – pelo menos à posteriori: o Ti Domingos - a quem ele não ia deixar de contar, com os olhos brilhando de excitação e orgulho que, tal como o heróico garoto da Comuna,- de Paris, também ele colocara bem alto a bandeira dos trabalhadores. E o ti Domingos terá certamente sorrido, gratificado.
Infelizmente nem o garoto nem o velho cá estão para confirmar ou negar esta minha interpretação da bandeira que apareceu em Moscavide no alto de um poste, naquele ano de 1936. O Zé faleceu em 1993 e o Ti Domingos muito, mas muito antes, o tinha precedido.


Uma coisa é certa. A ser verdade o que julgo – e tudo me leva a crer que sim, o Zé levou nessa noite a primeira tareia de várias outras e de vários outros sofrimentos, prisões, torturas, que vieram a ser-lhe infligidos ao longo da sua vida, na luta pela defesa dos seus ideais.


Ideais. Ainda se lembram? Eram sentimentos que os homens e as mulheres sabiam valorizar e de que alguns faziam a causa única da sua existência… Mas isso foi há muito tempo…


5.18.2007

A UNS OLHOS LINDOS

Foto A.Melenas


UNS OLHOS LINDOS



Tão o triste é minha vida, que em abrolhos

Se convertem meus mais doces anelos

Mas julgo estar no céu, quando meus olhos

Têm a dita de ver teus olhos belos


Oh! No céu, sim no céu! Que não será

Mais puro nem mais belo o céu infindo !

Nem mais doçura, não, mais não terá

Do que doçura tem teu olhar lindo


Quando os cílios baixos, com candura,

Te velam o olhar casto e pudibundo,

Eu julgo vislumbrar, em tal postura,

Um anjo divagando pelo mundo...


Há por esse mundo coisas belas

Que, de tão belas, vê-las é pasmar

Pois eu trocaria toda elas

Pela incidência em mim do teu olhar


Em mim tua imagem está gravada

E de ti a minha vida está suspensa

Não quero nem preciso ver mais nada

Dos teus olhos me basta a luz intensa


Não há outra beleza que me encante

Meu conceito do belo está ruindo

Só porque o meu olhar, em certo instante,

Cegou perante a luz de olhar tão lindo

_______

Pois, pois, se calhar é por isso que hoje sofro de cataratas

1946 ( com 17 anos, ainda no Seminário)

5.13.2007

MARIA


hortênsias do meu quintal

MARIA

MARIA, que estranho encanto
Há em teu nome adorado,
Que em sonhos ou acordado,
Quer seja noite ou de dia,
Os meus lábios delicia
Repeti-lo a cada instante,
Apaixonado e galante,
MARIA, QUERIDA MARIA ?!

MARIA, que sedução
Há em teu profundo olhar …
Tanta Maria há no mundo
E porque será então
Que apenas no teu me afundo,
E nele me deixo afogar?

Pela luz que me alumia
Pergunto porque razão
Só em ti vejo o condão
De a minha boca moldar
Levando-me a murmurar
A toda a hora do dia
O nome que me vicia:
Esse teu, que é de encantar,
MARIA, QUERIDA MARIA ?!

Não sei, confesso, MARIA
O que a isto responder.
Por certo que há magia
Nesse teu jeito de olhar
E só sei só que vou viver
Apenas para te amar.

E um dia, quando morrer,
Já no último estertor,
Os meus lábios já sem cor,
Eu te juro, gostaria
Pudessem ‘inda dizer
Meu grande, meu doce Amor,
MARIA, QUERIDA MARIA!


1948 – Noite d São Pedro

_________

É certo que eram tempos mais românticos,
mas isto já era exagerar, poça!!!
Mas quem não exagera aos 20 anos?


5.09.2007

SE OS OLHOS FALAM....

Foto minha, flores do meu quintal


SE OS OLHOS FALAM....


Se os olhos falam, Maria,
A quem os sabe entender
Olha para os meus e repara
Na mensagem bem clara
Que eles te querem dizer

Foi naquele Domingo, à tarde
Que te vi e logo amei.
Descias tu a Avenida
E ia eu p'ra nenhum lado
Quando junto a ti passei.

Tu paraste e eu parei
Eu olhei e tu olhaste
Tu sorriste e eu sorri
Mas serena te afastaste
E sozinho me deixaste
A morrer de amor por ti.

Era tanta a formosura
Que teu rosto irradiava
Que, pode parecer loucura,
Mas logo soube, na altura,
Que era por ti que eu esperava

Tão grácil tinhas o andar
Tão doce era o teu sorriso
Que cheguei a acreditar
Estar-me Deus a antecipar
A entrada no Paraíso

Foi a partir desse dia,
Ao ver-te formosa assim,
Que minha vida sem rumo
Tomou um rumo por fim

Guardei-te em meu coração
Fiz do meu peito um altar
E de ti fiz devoção.
Não há volta, agora, a dar
P´ra sempre vou celebrar
Os ritos desta paixão

__________

E foi assim que, acabadinho de sair do seminário,
arranjei logo outra religião!!!!

5.03.2007

MADRIGAL


Foto minha, flores do meu quintal


MADRIGAL
(para a M.A.)

Trigueirinha,
o teu olhar
Tem uma estranha magia
Dispensa à noite
o luar
E envergonha o sol,
de dia.

Os teus lábios nacarados
Têm luz,
têm calor
São dois versos perfumados
De um poema
de amor

Se acaso meu coração
Anda triste
e descontente,
Não sei porquê ,
de repente,
Muda logo de feição,
Mal te vê ,
mal te pressente

Tu és a mais linda flor
Do mais mimoso canteiro
Das rosas,
tu tens a cor
Das violetas,
o cheiro ...

Oh quem me dera poder
Vir um dia ainda ser
De tal flor jardineiro!