ESCRITOS OUTONAIS

12.26.2006

O MEU "AVÔ" GUERRA JUNQUEIRO


Não é verdade.
Guerra Junqueiro
não é meu avô
nem tem nada a ver
com a minha família.
Trata-se de
Uma simples plaisanterie
que passo a contar:

Isto de chamar avô ao Guerra Junqueiro tem a sua História:
O Poeta tinha, como é sabido, u
ma grande quinta - Quinta da Batoca, em Barca d’Alva - que empregava um número relativamente elevado de trabalhadores agrícolas. Acontece que os meus avós Melenas, ao que a minha mãe me contava, terão sido caseiros na referida quinta. Não sei se terá sido mesmo nesta qualidade que lá prestaram serviço, mas o que é certo é que lá trabalharam, em regime de residência.

A partir de determinada altura da sua vida, Junqueiro, como aconteceu com outros vultos da nossa cultura, designadamente Alexandre Herculano, resolveu deixar o bulício da vida citadina e a actividade política em que vivera muitos anos freneticamente envolvido, para se dedicar, num estilo bucólico bem virgiliano, a administrar directamente a sua fazenda, como lavrador e patriarca e à composição dos seus mais belos poemas líricos.

Como todos sabem uma das características da fisionomia do poeta era a ostentação de um vultoso nariz, de forma marcadamente aquilina, bem semita, ou pelo menos aquela que aos semitas se atribui. Ora contece que os varões da minha família são geralmente dotados de um assaz volumoso e aquilino apêndice nasal, muito parecido com o órgão congénere do Junqueiro.

Acontece ainda que, tanto eu como os meus irmãos e a minha própria mãe, fomos dotados de alguma inclinação para a versalhada. Vai daí, eu entretinha-me a atazanar a minha mãe, insinuando que a minha avó devia ter sido uma senhora muito ”generosa”, incapaz de negar alguma coisa a alguém e muito menos ao preclaro patrão, sendo bem possível que, frutos dessa sua generosa disponibilidade, nós ainda fôssemos seus netos. A coisa pegou e nunca mais me referi ao Guerra Junqueiro, que não fosse por “avô”. A minha mãe fingia zangar-se, mas no fundo achava muita graça à história.

Também o meu padrinho, António Joaquim Ferreira de seu nome, conhecido na aldeia como o ti Antoninho Canhoto, e uma das pessoas mais bondosas que tive a felicidade de conhecer, trabalhou à jorna, por diversas vezes, na quinta do famoso e polémico Junqueiro. Uma vez, contava ele, o Senhor Poeta (era sempre assim que a ele se referia) apareceu na quinta, mais precisamente no lagar, acompanhado de uns senhores franceses, muito bem vestidos, que assistiram entusiasmados à pisa da uva pelos trabalhadores, de pés descalços e calças arregaçadas.

Quando acabou o trabalho, o Senhor Poeta, mandou servir uma merenda aos convidados e aos jornaleiros. E então, no meio da comezaina, um dos trabalhadores, já quente com o vinho da região servido copiosamente, sobe para cima de uma pipa e grita: “Viva o senhor Guerra Junqueiro, o maior poeta da raça latina!” Ou o homem sabia muito, ou o “avô” Junqueiro não descurava o seu marketing pesoal. Certo porém é que ele, além de ser extremamente popular na região e em todo o país, gozava também de enorme prestígio lá fora e em França principalmente.
O soldado expedicionário António Joaquim Ferreira,
em França na Guerra de 1914-1918

Viria mais tarde a ser meu padrinho de baptismo,
dele recebendo o nome de António Joaquim

Meu querido padrinho! Sempre que me lembro dele, me vem à memória esta cena,que ele contava sempre com tanto entusiasmo e devoção pela figura dos senhor Poeta.

A verdade é que Guerra Junqueiro era então o maior poeta Portugês vivo e um dos maiores de toda a nossa história literária. E tanto que Fernando Pessoa o considerava, em certos aspectos, superior a Camões.
Nascido na aldeia de Ligares (Freixo-de-Espada-à-Cinta) em 1850 e falecido em Lisboa em 1923, ele foi em vida elevado aos píncaros da fama, tendo sido chorado por Portugal inteiro e homenageado como nenhum outro poeta fôra antes dele, na hora da sua morte e por ocasião dos seu funeral que teve honras de Estado e foi acompanhado por verdadeiras multidões. Ultimamente parece ter passado de moda, como se o génio de modas fosse, havendo no entanto quem tenha pela sua poesia um verdeiro culto.

Tempos houve em que não havia ninguém que não soubesses muitos dos seus poemas de cor e não os recitasse nas festas e nas escolas. Hoje os tempos são outros, mas o que é belo, belo permanecerá para sempre, indiferente à modas, capelinhas, circunstâncias conjunturais e efémeras.
* * *
Em homenagem ao avô Junqueiro, aqui deixo dois poemas:

“Regresso ao Lar”, uma amostra de genuíno lirismo,
e a “Benção da Locomotiva”, exemplo da sua verve de polemista e feroz anti-clericalismo. Na verdade, Junqueiro era tao ferozmente anticlerical como profunda e entranhadamente religioso, e panteista convicto:

Regresso ao Lar

Ai, há quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?...há trinta? Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para eu me lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh! a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida,
Canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago d'amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama que me deste o peito,
Canta-me cantigas para me embalar!...

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
Pedrarias d'astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!

Como antigamente, no regaço amado,
(Venho morto, morto!...) deixa-me deitar!
Ai, o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas, manso, muito manso...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minh'alma durma, tenha paz, descanso,
Quando a Morte, em breve, ma vier buscar!...

in "Os Simples"

__________

A Benção da Locomotiva


A obra está completa. A máquina flameja,
Desenrolando o fumo em ondas pelo ar.
Mas, antes de partir, mandem chamar a Igreja,
Que é preciso que um bispo a venha baptizar.
.
Como ela é com certeza o fruto de Caim,
A filha da razão, da independência humana,
Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim
E convertam-na à fé Católica Romana.
.

Devem nela existir diabólicos pecados,
Porque é feita de cobre e ferro; e estes metais
Saem da natureza, ímpios, excomungados
Como saímos nós dos ventres maternais!
.

Vamos, esconjurai-lhe o demo que ela encerra,
Extraí a heresia ao aço lampejante!
Ela acaba de vir das forjas d'lnglaterra
E há-de ser com certeza um pouco protestante.
.

Para que o monstro corra em fervido galope,
Como um sonho febril, num doido turbilhão,-
Além do maquinista é necessário o hissope,
E muita teologia... além dalgum carvão.
.

Atirem-lhe umas hóstias à boca famulenta,
Preguem-lhe alguns sermões, ensinem-lhe a rezar,
E lancem na caldeira um jorro d'água benta,
Que com água do céu talvez não possa andar.

in "A Velhice do Padre Eterno"

12.21.2006

OS TEUS OLHOS


Gosto de ti

Não por seres linda ou por seres feia.

Gosto de ti

Pela cor indefinida dos teus olhos

Na qual há uma mistura de todas as cores.

Nem sei mesmo se gosto dos teus olhos

Mas gosto de ti,

Por seres a dona de tais olhos.

Gosto de ti

Pela cor garça dos teus olhos ...

Nem azuis, nem verdes, nem cinzentos ...

De uma luz vaga, indefinida, incerta,

Como incerta e indefinida e vaga

É a minha vida

E a vida de toda a gente

Na hora que passa.

E é por isso,

Por essa identificação da minha vida

Com a cor incerta dos teus olhos,

Que eu gosto de ti.

.......

Este poema,
pode ser ouvido

na voz de Luís Gaspar, aqui

Foto retirada, data venia, daqui




12.14.2006

A MINHA TIA BEATRIZ


Para camponeses pobres, no final do século XIX e naquelas remotas serranias transmontanas, o nascimento de uma menina não era um acontecimento que os entusiasmasse por aí além. Ter muito filhos era, por essa altura uma quase fatalidade a que não se podia fugir. Pobreza e filharada eram duas realidade quase indissociáveis. As noites de inverno eram longas e frias, os divertimentos eram raros e não estavam ao alcance das magras bolsas. Que outra coisa podiam os pobres se não aconchegarem-se na dureza da palha centeia dos colchões e, enquanto o sono não chegava, de uma penada, resolverem o problema do frio desfrutando ao mesmo tempo do único divertimento que lhes era permitido.
De graça, e ainda por cima com a bênção de deus, que foi para isso que, segunda preceitua a santa madre Igreja, se inventou o mat
rimónio.

O resultado via-se nove meses depois. Mas já que tinha que ser, ao menos que fossem rapazes, que sempre ajudavam na lavoura e na economia doméstica. As raparigas tinham pouca utilidade e ainda por cima, para as empandeirar era preciso arranjar-lhes um dote. Lembro-me de ouvir dizer, em garoto: “a mulher com o seu dote e o home
m com o seu capote".
O capote e a virilidade, bem entendido.

Assim, quando a minha avó Ermelinda do Espírito Santo, naquela madrugada de 12 de Agosto 1897, na aldeia de Maçores do Concelho de Torre Moncorvo, deu à luz aquela que viria a ser minha tia e a quem seria posto o nome de Beatriz, o meu avô António Joaquim Melenas, não foi de certeza o homem mais feliz do mundo. Mas a avó Ermelinda, certamente não terá desgostado. Já tinham um rapaz, António como o pai, e aquela menina, rechonchudinha e linda que era, ia por certo adoçar o coração do marido. Que remédio.

Mas não se ficou por ali o casal Melenas. Não sei se houve outro pelo meio - que nessa altura, a mortalidade infantil nas aldeias era uma praga - mas o certo é que, o dia 1 de Janeiro de 1900, o primeiro do século XX, os presenteou com mais um rapaz, a quem foi posto o nome de Manuel, e dois anos passados, em 20 de Abril de 1902, veio mais uma menina, a que chamaram Amélia do Espírito Santo, e que viria a ser minha mãe. Isto é, um rapaz uma menina, outro rapaz, outra menina… boa programação a dos avós Melenas, assim a modos de um concertado planeamento familiar avant la lettre.

Não tardou muito tempo, talvez outros dois anos, e a avó Ermelinda, voltou a engravidar, que a fábrica de nenés era de laboração contínua, além de ser uma questão de honra não deixar esfriar o ritmo de produção. Infelizmente as coisas correram mal e a nossa pobre avó morreu no trabalho de parto e com ela o bebé. Ali ficou o avô António, víúvo, novo ainda, na força de vida, com quatro crianças, a mais velha com uns nove anos e a mais nova com dois, talvez, sem saber como cuidar delas nem que destino dar à sua vida.

Claro que, jovem e fogoso como era, depressa resolveu o problema, arranjando outra companheira que lhe aquecesse os pés nas noites geladas e lhe tomasse conta da casa e dos raparigos – expressão pitoresca com que lá na terra se designa a garotada em geral. Também se usa dizer “a canalha” mas é aquela e não esta a expressão mais utilizada. E mais terna, quanto a mim.

Parece que esta nova companheira e madrasta dos filhos, justificando a má fama e algum proveito que persegue tal espécie parental desde que se inventou a história da gata borralheira, não se portou lá muito bem com os cachopos. Aí. o avô Melenas, que era homem de carácter e barba rija, quando lhe pareceu que a rispidez com que os tratava ia além da conta, esqueceu o jeito que lhe dava o corpo da mulher na cama, pegou-lhe num braço e pô-la no olho da rua – olho misterioso, este, que nunca vi nem nunca consegui me dissessem em que exacto sítio da rua se situa. Sei apenas que deve ser um local onde ninguém gosta de ser posto e assim aconteceu com esta pouco recomendável madrasta. A sua reacção não interessa porém ao desenvolvimento dos factos que venho narrando e por isso passo adiante.

Infelizmente pouco mais viveu, o avô. Terá sido da friagem dos pés, agora sem a quentura da mulher repudiada, ou do trabalho excessivo na labuta para prover o sustento da prole, o certo é que apanhou uma pneumonia que não tardou muito a levá-lo. Já nem ouso dizer “desta para melhor”, senão lá vinha a tentação de introduzir um aparte (“mas qual melhor, qual carapuça, quando é que ir para baixo dos torrões é ir para uma vida melhor”), por isso, cala-te boca e por aqui me fico. Levou-o e pronto. Bem novo ainda, aliás.

Ora isto aconteceu, segundo minha mãe me contava, tinha ela uns sete anos. Logo, a Beatriz tinha doze, o Manuel tinha dez e o António teria uns catorze ou quinze. Digo teria, porque não sei exactamente quando este nasceu, e infelizmente já não tenho ninguém a quem perguntar. Minha mãe, como já contei numa crónica que especialmente lhe dediquei, sendo a mais novinha, foi levada para casa de uns primos que moravam em Moncorvo mas tinham também casa no Porto, onde passavam largas temporadas. Os outros irmãos lá se iam arranjando, porventura trabalhado onde calhava, nas suas parcas terras ou à jorna por contra de outros, de acordo com as suas possibilidades.

Em 1914, em plena Grande Guerra, a grande mobilização de mancebos por parte do exército e a necessidade de os fazer substituir nas fabricas e nos campos, fez nascer em algumas das nações envolvidas, especialmente nos Estados Unidos, uma campanha de recrutamento de mão de obra barata na velha Europa que preenchesse essa lacuna. Por todo o lado, e também por aquelas aldeias, apareceram, pois, bandos de engajadores, aliciando a gente jovem com promessas de transporte para os States e emprego, assegurado, mediante o pagamento de uns bons contos de réis, pagos metade à partida e outra metade à chegada. Beatriz estava então com 17 anos, os irmão tinham o seu trabalho, a mais pequenita estava entregue aos cuidados dos primos, como atrás referi, e achou que era boa oportunidade para mudar a sua vida, procurar longe o que ali jamais encontraria.

Efectivamente, não havendo outro meio de ganhar a vida senão trabalhando no campo e mesmo assim só encontrando trabalho, quando os homens o rejeitavam e quando algum conseguia era em tarefas sazonais, como a apanha da azeitona, a apanha e partida da amêndoa, a monda ou a ceifa – tudo trabalhos de pequena duração e, obviamente mal remunerados. Que faria ali, pois, que nem ler sabia – nem ela nem a irmã, pois naquele tempo não se cuidava de ensinar as moças a ler e nem havia sequer escolas para raparigas? Assim, nem hesitou. Inscreveu-se, arranjou, de empréstimo. certamente, o dinheiro necessário e aí foi ela, juntamente com outras pessoas das aldeias vizinhas, rumo aos Estados Unidos, numa daquelas viagens intermináveis, horríveis, que só quem já viu filmes da época faz ideia de como eram transportados os magotes de emigrantes assim arrebanhados.

Quem não se conformou com a sua partida foi um jovem da aldeia com o qual namoriscava, chamado Francisco mas conhecido por Cochano (“Cutchano” na cerrada pronuncia local. Curiosamente este Francisco tinha exactamente a sua idade, pois nascera no mesmo dia, mês e ano que ela – o que, numa aldeia tão escassamente povoada, era um coincidência notável. O moço que, pelos vistos não tão corajoso como ela, senão tinha-a acompanhado na aventura, porque era de uma autêntica aventura que se tratava, não se conformava em perde-la e à partida gritava-lhe desesperado “vais-te embora, Beatriz mas hás-de voltar, catancho, e inda me hei-de casar contigo”.

Teve sorte a jovem Beatriz, pois pelo menos não foi burlada pelos engajadores. Na verdade, tinha trabalho à espera numa fábrica têxtil na pequena cidade de Fall-River, no Estado de Massachusetts, não longe de Nova Iorque. Quis o destino que, logo à chegada, encontrasse o Júlio, um conterrâneo - mais uma coincidência - que muito a ajudou na adaptação ao trabalho e aos costumes da terra. Casaram pouco tempo depois, provavelmente para maior facilidade na legalização da sua situação de emigrantes.

Foram tempos, felizes aqueles, apesar do muito trabalho e da estranheza que lhe causavam todos os costumes daquela terra tão diferente da sua aldeia. A língua nem era grande problema, pois grande parte dos habitantes e dos comerciantes da cidade eram portugueses.

Embora novo ainda, o Júlio, que por sinal julgo seria ainda seu primo afastado, tinha, contudo, o dobro da idade de Beatriz - 34 anos, portanto - mas era alfabetizado, tinha vivido anteriormente no Brasil, tocava bandolim para ela, tinha modos educados, era atencioso e meigo com a mulher e tudo parecia prometer um futuro risonho para o casal. Pouco depois tiveram um filho a quem puseram o nome de Manuel, com notícia do evento anunciada mesmo no jornal local. Uma vida bonita, enfim.

Era sorte de mais para a jovem emigrante. Não tardou que o marido começasse a dar sinais de perturbações do foro psíquico que levaram a que, o homem amável e generoso que era, se fosse transformando em doente violento e agressivo.

A crença de que os ares e o tranquilo ambiente da terra natal poderiam eventualmente acalmar o doente e sanear uma situação que, julgavam, não seria mais do que simples stress (palavra que hoje está muito na moda, mas que nenhum deles conhecia certamente) levou-os a pegar nas trouxas e no filho e regressarem à aldeia de onde tinham partido em busca de uma vida melhor, tão pobres como antes, sendo o pouco dinheiro que haviam amealhado gasto na viagem de regresso.

Baldado esforço. Durante a longa viagem (de barco, obviamente) o seu estado de saúde agravou-se de forma irremediável, acabando meses mais tarde por ter um fim trágico, originado precisamente pela sua insanidade mental. Quarenta anos teria, por essa altura. Para todo o resto da sua vida, Beatriz havia de lamentar amargamente ter deixado a terra de promissão – que assim se lhe afiguravam os felizes e breves anos passados em terras do Tio Sam.

Ali estava ela, de novo, viúva, com apenas 21 anos, sem profissão, restando-lhe apenas o duro trabalho do campo onde pudesse ganhar o sustento dela e do filho. Jovem, desimpedida e com estatuto de regressada do estrangeiro - o que sempre constitui uma mais valia apreciável - os rapazes da terra, que não eram muitos, não lhe davam descanso com propostas de casamento.

Acabou por aceitar e casar com um deles. Com quem, com quem? Já adivinharam, claro. Nem mais nem menos que com o Francisco, aliás Cochano, que jurara três anos antes que “inda havia de casar com ela, catancho”. Que belo fim para uma bonita história de amor, pensará você que me está lendo E não era? Pois era, mas a vida não é assim, caro leitor. A vida dura naquela aldeia e naquele tempo, com os seus invernos rigorosos, as casas de xisto não rebocadas nem por dentro nem por fora, os porcos a fossarem nas ruas diante das casas e à noite a dormirem com os donos, a falta de instrução e de trabalho, a luta pela subsistência não eram de molde a proporcionar bons fins a histórias de amor.

Tendo agora um novo marido, uma tia que morava afastada do povoado e se dedicava à criação de ovelhas tomou a seu cargo a criação do filho do primeiro casamento - que por sinal revelou sempre algum desequilíbrio herdado possivelmente do sangue do pai – a fim de que o novo casal pudesse trabalhar e organizar a sua vida. Pouco tempo depois, corria o ano de 1920 nasceu-lhes o primeiro filho, uma menina a que puseram o nome de Rosa, dois anos mais tarde, nova filha - a Ermelinda, curiosamente no mesmíssimo dia (29 de Junho de 1922) em que nasceu o primeiro filho de sua irmã (a minha mãe) que entretanto casara e voltara também a morar na aldeia. Mais uma coincidência! Duas irmãs, num aglomerado populacional tão restrito, darem à luz no mesmo dia é uma coincidência rara, há que admitir.

O caso é que a falta de trabalho na região obrigou o Cochano a emigrar para França em busca de um ganha-pão que lhe afiançavam ser fácil de encontrar naquele país. Por lá andou três ou quatro anos, sem nunca mandar notícias, tendo a pobre Beatriz de se desenrascar sozinha com as duas crianças. Um belo dia voltou o marido fez-lhe mais um filho, aliás mais uma filha, que nasceu no ano da graça de 1927 e à qual foi posto o nome de Lucinda e ala que aí vai ele de novo para França, em busca, pensava ele, do que não tinha encontrado antes.

Ainda escreveu uma vez ou duas, mandou alguns francos, dizendo que viria cá no Natal de 1931, promessa que parece não ter cumprido, e a partir daí levou sumiço. Nunca mais escreveu, nunca mais mandou recado, ninguém soube dar notícias dele, tendo sido baldadas todas as démarches (démarches, digo eu agora que não toco piano mas falo francês) que nesse sentido se fizeram. Para todos efeitos foi dado como morto pela mulher e pelas filhas e pela aldeia em geral. Tenho para mim, que ele se deve ter embeiçado por uma francesinha qualquer, conhecidas que são as fêmeas da Gália pela sua arte de sedução, o que levou a trocar de vez o colchão de palha do leito conjugal por um outro mais fofo e o corpo que lhe serviu para fazer três filhas por um corpo mais afeito a artes concupiscentes que, até ali desconhecidas, lhe devem ter dado volta ao miolo, levando-o a esquecer-se de tudo quanto cantava a antiga musa.

Conjecturas maldosas à parte (quem sabe as passas do algarve que o homem terá passado - estrangeiro, num país em guerra e ocupado pelas hordas nazis!) o certo é que, tal como tinha sumido, doente e pobre como Job, ele veio a aparecer, finalmente, mesmo à beirinha do fim da década de cinquenta, em casa de um parente, numa aldeia próxima (que não na nossa). Faleceu em 1962 com 65 anos de idade. Ainda perguntou pela família, mas entretanto já Beatriz e as filhas tinham partido para o Brasil, Rio de Janeiro, onde fixaram residência.

Mas isso é só lá para a frente, que a história da minha tia Beatriz tem mais que contar. Tínhamos ficado em 1927, quando nasceu a sua última filha, a Lucinda e o salto que dei na narrativa destinou-se apenas a encerrar o capítulo do marido desaparecido. Agora, uma vez morto e enterrado voltemos à aldeia e ao ano em que ficámos.

Por essa altura já minha mãe tinha dado à luz mais dois filhos que morreram antes de perfazerem um ano e em 1929 foi a minha vez de aumentar a população portuguesa em cujo numerário ainda vou figurando, e de que faço prova de vida relatando estes acontecimentos. Não sei se da forma mais clara o faço, mas é do geito que sei e com os conhecimentos de que disponho.

Em 1932 lá veio outro rapaz, o Diamantino que, felizmente ainda por cá anda também. E, com este _ mercê da jamais desmerecida aplicação de meu pai no cumprimento dos seus deveres conjugais e confirmando o que comecei por vos dizer acerca das longas e geladas noites da aldeia e decorrentes consequências no aumento do seu índice demográfico - já lá vão cinco partos.

Ora, se a vida de Beatriz não era boa sem a ajuda de um marido a de minha mãe com marido e tudo não era melhor, uma vez que o meu pai não encontrava trabalho na sua profissão de sapateiro e - menino da vila que era - o uso da enxada não ia bem com o seu tom de pele.

Daí que, em desespero de causa, a família se visse obrigada a tomar o caminho do exílio, dentro do país, é certo, mas exílio amargo mesmo assim. Primeiro veio o pai, para desbravar caminho (que não desbravou coisa nenhuma) e passados uns largos meses, minha mãe, não se fiando que não lhe viesse a acontecer o mesmo que à irmã, pegou nos três filhos e aí veio ela por aí abaixo em direcção a uma Lisboa que, afinal dava pelo estranho nome de Moscavide, onde chegou, “com armas e bagagens”, esperar-se-ia que eu dissesse, só que não havia armas nem bagagens nem coisa nenhuma dessas que só servem para arredondar a prosa enfeitar os romances, tendo isso acontecido no dia 5 de Maio de 1934. Mas tudo isto, e com mais pormenores, já eu contei na história de minha mãe.

A verdade, porém, é que por alturas de 1936, em plena guerra civil espanhola, com o irmão António emigrado no Brasil, o Manuel em Moçambique e a Amélia em Lisboa, a tia Beatriz, que tão novinha atravessara o Atlântico rumo às Américas com o triste desenlace que tive ocasião de relatar era, agora, a única dos quatro irmãos que permanecia na aldeia, sem marido, e sem saber que destino dar à sua desprotegida prole.

Vai daí, resolveu seguir os passos da irmã, trocando os ásperos fraguedos da aldeia pela esperança de uma vida melhor em Lisboa. Em vão minha mãe tentou dissuadi-la, dizendo-lhe que era asneira, que cá por Lisboa as coisas estavam também muito más, que se vivia uma grande crise... Minha mãe sempre se queixava da crise e com tal insistência e tal acrimónia, que eu cheguei a ter verdadeiro ódio a essa malvada dessa dona Crise, que eu não fazia ideia de quem fosse ou o quer que fosse, mas que nos lixava a vida a torto e a direito.

Ignorando as advertências de minha mãe (e vistas as coisas à distância, foi o melhor que ela fez) um belo dia desse ano de 1936 Beatriz e as três filhas, Rosa, com 16 anos, Ermelinda, com 14 e Lucinda com 10, praticamente com a roupa que traziam no corpo e uma pequena trouxa com mais uns escassos adereços, apareceram-nos em casa, dispostas a morarem connosco até arranjarem onde pudessem ganhar a vida.

Imagine-se a situação! Aos cinco membros da família, (aliás seis, pois entretanto, menos de uma ano depois da nossa chegada a Moscavide, já mais um rapaz – o Lau - tinha vindo aumentar o contingente familiar) juntar agora mais quatro mulheres num espaço tão exíguo e tão falho de condições. “Tudo ao molho e fé em deus” é uma expressão que não caracteriza bem a situação que passou a viver-se na minha casa., pois se “tudo ao molho” era uma realidade a fé em deus era muito reduzida e grande a desesperança que se instalou.

Nem sou capaz de me lembrar exactamente como se resolveu o problema das dormidas, tantos eram os corpos e tão pouco o espaço para se deitarem. Julgo que os meus pais dormiam na cama com os dois filhos mais pequenos, a minha tia e as duas filhas mais velhas partilhavam a mesma cama, no chão, e era também no chão que eu dormia com a Lucinda, apenas dois anos mais velha que eu

Rosa, Beatriz, Ermelinda e Lucinda

Felizmente, elas eram todas muito batalhadoras e desenrascadas e poucos meses depois as mais velhas estavam todas a trabalhar, como criadas (naquele tempo qualquer família da classe média tinha criada) tendo arranjado uma casinha para morarem, perto de nós.

A Ermelinda, por exemplo, lembro-me que arranjou logo trabalho em casa da família do dono do cinema local.

Não tardou muito tempo que se mudassem para Lisboa e meia dúzia de anos depois parecia que sempre cá tinham vivido - as moças perfeitamente citadinas, bonitas, elegantes, perfeitamente integradas. Um caso notável de capacidade de adaptação, diga-se.

Em 1957, como já referi, poucos dias depois de participarem no meu casamento lá foram então para o Brasil – Rio de Janeiro – a tia Beatriz, sua filha, Rosa e a neta Maria de Lurdes, a fim de se juntarem à filha Ermelinda, a mais dinâmica das irmãs, já ali estabelecida havia uns anos. Só a Lucinda, a mais nova, não partiu, porque, infelizmente já em 1953, com 26 anos apenas, mas casada e com um filho, tinha empreendido a sua própria viagem – aquela de que não mais se regressa. Quem por cá ficou também foi o Manuel, filho do primeiro casamento, mas esse era o patinho feio… e nem ele queria ter ido.
- - -

Foi no Brasil que Beatriz acabou os seus dias, após uma longa vida, numa merecida calma e tranquila velhice, gozando até ao fim (e bem) as delícias do sol, das areias e do mar de Copacabana.

Tinha 92 anos quando faleceu. Para trás, lá muito para trás, tinham ficado os dois maridos, os irmãos António, Manuel e Amélia, a doce Rosa, a frenética Ermelinda, a fugaz Lucinda e o patinho feio, Manuel.

Era uma figura a minha tia Beatriz! Decidida, voluntariosa, retorcida, por vezes, que nem um arroche, mas uma figura.

Lá vive ainda, na cidade do Rio de Janeiro, a neta Maria de Lurdes, e com a qual me correspondo com frequência. Tem duas filhas, um filho e três netos. A Milu, assim lhe chamamos, apesar de nascida e criada em Lisboa, nunca vem a Portugal que não vá visitar a terra da avó (e minha terra também) à qual, no entanto, nada a prende senão o instinto de uma origem comum, de uma ancestralidade, que se perde na noite dos tempos.

O sorriso das novas gerações
Rio de Janeiro, 2005.
A prima Milu (neta de Beatriz)
e Janisa sua filha mais nova
_______
Antonio Melenas
14-12-200
6

12.06.2006

CONHEÇO-TE, CAMARADA!

Fiz este poema em 1947. Tinha 18 anos. Acabara de sair havia pouco do seminário, onde tinha permanecido cerca de seis anos. Nota-se. Repare-se na grandiloquência das palavras, nas “Verdades”, nas “Justiças”, no “Amor”, na “União” escritas com maiúsculas, a significar o valor supremo que então lhes atribuía. Quanta ingenuidade, meu Deu! Mas também quanta generosidade – possível só na idade que tinha então. E quanta desilusão fui acumulando ao longos dos anos, nos quais fui aprendendo a relatividade de noções que julguei absolutas, indiscutíveis e imutáveis.

Numa coisa acertei, porém: foi que, por força de persistentes, longas e difíceis caminhadas de anónimos caminhantes (que não eu, que pouco mais do que nos versos caminhei) os nossos filhos (e alguns de nós) puderam vir a recolher os premonitórios cravos vermelhos de que falo no poema.

Dedico estes versos a meu irmão José Gouveia – esse, sim, um intrépido combatente pela liberdade.

Aqui fica o poema, como curiosidade e como documento dos temas que podiam inquietar um jovem, nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial e à derrota do Nazismo, e uma janela de esperança se abria para os povos oprimidos como era o nosso

____________________________________________


Conheço-te, Camarada
E ao brilho igual ao meu
Do teu olhar...

sei o que queres,
p’ra onde vais
e a mesma ânsia de MAIS
Nos incita a lutar !

Mais VERDADE
Mais PÃO
Mais AMOR!

Mais calor
No lar dos deserdados
Da sorte !

Mais forte
A união dos camaradas !

MAIS !
Ânsias de MAIS
te consomem.
Leio-o no teu olhar,
HOMEM,
no teu olhar ardente
de profeta e paladino.


Tu pouco és.
Eu não sou nada.
Mas dá-me a tua mão,
ò camarada,
e seremos DOIS !
E dois são a UNIÃO !
E a união a FORÇA

E a força a CERTEZA
de chegar,
depois de bem lutar,
ao fim da caminhada


Despir-nos-emos
das vestes ignóbeis
dos preconceitos
da vida

E iremos nus,
com a nudez rude
da verdade que conhecemos,
em busca da Verdade que procuramos,
A Verdade desconhecida

Ninguém nos deterá.
Ninguém, nem nada!
Desenharemos a sangue
os pés pela Estrada,
da longa estrada que arde.
E desses rastos de sangue
hão-de brotar mais tarde,
hão-de florir e crescer
cravos vermelhos, dobrados,

que os nossos filhos, ainda,
alegres e descuidados,
hão-de vir a recolher

E não serão em vão
os ais,
os gemidos,
que, de dentes cerrados,
semearemos p’lo caminho !

Mais tarde, os que virão,
hão-de colhê-los, transformados
em exclamações de júbilo,
em frases de carinho


Vem, camarada !
Dá-me e tua mão

e a mão do teu camarada

E de lugar em lugar,
de cidade em cidade,
iremos sem parar
em busca da VERDADE !

E com a verdade
a JUSTIÇA,
Com Justiça o AMOR.

Vem, camarada,
Não tardes, por favor!

__________

E contudo, menos lírico, mais objectivo, mais realista,
continuo e continuarei a ter como ideal supremo
A justiça e a igualdade entre os homens (e mulheres, bem entendido)

Feitios, que se há-de fazer?!