ESCRITOS OUTONAIS

10.28.2006

MELANCOLIA


Melancolia
Tristis est anima mea usque ad mortem


Outono,
árvores despidas
sol doente, nostalgia...
Ao longe, como um lamento
a sinfonia do vento
por entre as folhas caídas

Ouve-se um sino plangendo
por certo morreu alguém...
Bem podia ser por por mim
que o sino chorasse assim,
pois de amor morro também


Tudo calmo. O sol cansado
deitou-se... devagar.
Também ele anda mudado...

é do Outono, coitado...

deixá-lo lá repousar

Só eu não descanso, Amor
e dormir já não consigo.
Partiste, deixaste a dor...
meu coração foi contigo

Por isso estou triste!
hoje mais do que nunca...
E se ando assim
é porque a tristeza
desta tarde de outono
se meteu toda em mim

É porque o resto de cor
De um sol que já se escondeu
me faz lembrar o calor
de tantos beijos de amor
que a minha boca te deu

É porque a brisa, ao passar
varrendo as folhas do chão
me traz, perdidas no ar,
cadências de um canção
de amor, que te ouvi cantar

É porque a “nossa” estrela
me lembra, no céu infindo,
a mágoa te não ver
e não poder esquecer,
jamais, o teu rosto lindo

.....................................................

E por isso,
por tudo o que perdi
mas sei que existe,
neste entardecer mórbido
de outono,
pensando em ti, sem te ver,
meu coração está triste,
triste …

_ _ _


Num outono triste de 1951
Faz tempo, hein?

10.21.2006

MULHERES DA MINHA VIDA

Há relacionamentos que acabam. Todos os sabemos. Alguns de forma dolorosa e outros nem tanto. Mas e o amor? Será que acaba sempre com o fim do envolvimento sentimental? Será possível amar e desamar.? Há dias coloquei a mim mesmo esta questão e a resposta que encontrei foi a de que, pelo menos comigo, tal não é possível. Quem se amou um dia não pode deixar de continuar a amar-se, pelo simples facto de complicações, exógenas, por vezes, levarem ao fim de um normal envolvimento. De uma forma diferente, é certo, mas o amor continua dentro de nós, a menos que, por razões muito fortes, seja substituído por um ódio invencível - o que jamais aconteceu comigo.
Curiosamente o mesmo se passa com Amigos. Não me lembro de qualquer amigo antigo, com o qual tenha esfriado relações e que hoje considere como meu inimigo. Daqui o poema:



Mulheres da minha Vida
(Balanço final)

Mulheres da minha vida, não queirais
Que eu diga, nesta hora, por favor,

Qual foi a que de vós eu gostei mais,

À qual me consagrei com mais ardor

Sendo a mulher flor tão delicada,
Como escolher entre uma e outra flor?
Se colho a rosa por ser tão perfumada
desmereço ao cravo e ao nardo o seu valor?

E a violeta, o jasmim e a açucena
Ignorá-las quem não teria pena?...
Por isso todas guardo em meu canteiro

Não me pergunteis, pois, qual mais amei
Nenhuma de vós jamais eu olvidei
E amo ainda todas, por inteiro

Outubro de 2006

Pode ouvir este poema na voz de Luís Gaspar
aqui

10.08.2006

DIÁRIO DE UM VAGABUNDO

DIÁRIO DE UM VAGABUNDO

Este texto pode ser também ouvido
pela voz inconfundível de Luís Gaspar,
em
"Lugar aos Outros nº 22"
http://www.estudioraposa.com

Devo tar é a ficar xoné só pode ser. á quase trinta anos na puta desta vida de vadio sem eira nem beira e só agora é que me deu para fazer um diário armado em dotôr, muito finaço sim senhor, elá vão duas semanas desde que comecei e nunca inté oje falhei um só dia também se assim não fosse não era um diário, bem digo eu, devo estar é a ficar apanhado da moleirinha, vamos lá mas é molhar a goela que isto assim a seco não tem pilhéria nenhuma, olha olha a puta da garrafa deve estar é rota ainda à pouco tava cheiinha e já tá no fim o que vale é que tenho aqui outra prontinha a saltar do fundo do bornal, dantes fazia muita questão da cólidade do vinho mas agora que se lixe qualquer merda me serve desde que se beba e escorregue bem na goela este por acaso inté escorrega muita bem. esta coisa das garrafas de plastico é que dão cá um jeitão do caraças imaginem o peso que eu tinha de acartar com garrafas de vidro. assim, despejo-as sempre para uma de plástica e as de vidro algumas inda um gajo que tem uma loja de ferrovelho ou lá o que é lá para os lados do prior velho me dá uns cobres por algumas que nem todas servem lá pró que ele quer. Tambem pouco mais preciso que uma garrafita ou duas de vinho por dia e umas buchas para trincar, às vezes lá me dão uma sopita um bocado de choriço ou uns carapaus fritos pra meter dentro da bucha, sobretudo umas velhotas beatas que já me conhecem e que têm a mania que vão ganhar o céu à custa cá do mangas com as merdas que me dão, beatas do camandro inda por cima querem dar-me banho e o caraças e levar-me à missa das gajas qué na igreja dos anjos era só o que me faltava, o que me faz falta mesmo isso sim é de vez em quando dar uma penachada numa gaja boa e vejo por aí cada brasa, sobretudo quando estou deitado e as gajas se debruçam para me deitarem uns cobres no boné que eu tenho sempre virado pra cima pró que der e vier ou ás vezes para verem se eu estou morto quera um bom motivo de conversa cas gajas tinham pra dar ao badalo todo o dia umas cas outras ai filha oje vi um velhote morto coitadinho, mas eu estou morto é uma porra o que eu estou é a curtir uma ganda bebedeira ou então a fingir que durmo para lhe ver as pernaças às vezes até lhes vejo as cuequinhas e fico cá cuma tusa do camandro, as gajas julgam que cá o rapaz já não a endireita e facilitam, eu que as apanhasse a jeito que até as tressalhava todas, elas só não mo dão porque tem medo ou nojo ou o caraças cá do rapaz e o caso não é pra menos que devo cheirar mal pra burro, á aí uns murcões que fazem o serviço à mão mas isso a mim não me dá gozo nenhum, estas coisas fazem-se a dois e mai nada, não importa como, onde ou em que posição mas a dois é que é e estamos conversados, o diabo é que com estas esquisitices passo fome de cão às vezes co tesão inté me dá ganas de ladrar à lua, como as cadelas com cio, porra tenho pouco mais de 60 anos e inda estou aqui prás curvas, de longe em longe quando o rei faz anos lá consigo convencer uma galdéria qualquer a desenferrujar-me o cassete mas só vadias e mal cheirosas como eu, que é que um gajo há de fazer, cada um é pró que nace e daí não é bem assim, eu por exemplo não é para me gabar mas não naci pra isto, o estupor da bebida é que me lixou sim porque eu até cheguei a andar na escola até à 2ª classe, claro que já esqueci tudo mas deu para arranjar emprego o que não é pra qualquer um nas oficinas da camara lá da terra, que eu não digo o nome para não ficarem a saber tanto como eu, os gajos só admitiam pessoal co exame da quarta, mas como o meu velho era lá funcionário, e eu tinha levado um balázio na na guiné ao serviço da pátria, diziam os gajos, puta cos pariu que inté hoje nunca mais fiquei bom da tola, lá me admitiram e inté era um bom profissional qué que julgam, trabalhava no piquete e era cá o mangas que fazia e reparava as canalizações todas da minha area, nisso era eu um alho digo-vos eu que apesar de ser do Porto, porra que já me descaí que se lixe sou mesmo é do glorioso, só que depois como já disse comecei a beber e a faltar ao serviço, também coa mulher que eu tinha que me punha os cornos com tudo o que vestisse calças lá no sítio e redondezas e não é que eu lhe faltasse com o devido a gaja é que era de uma colidade que só tava bem co ele entalado á gajas assim, a última foi com chefe do serviço de pessoal lá da câmara, que era ele que mandava na minha mulher que trabalhava lá na limpeza, tenho a impressão que foi o gajo que me armou a estrangeirinha e mandou botar-me na rua porque era bêbedo, e assim e assado, faltava ao serviço e ainda por cima não tinha a quarta classe, o co gajo quis foi ficar mais á vontade co a galdéria, foi a partir daí que a minha vida começou a andar cada vez mais ò pra trás e a vadiar por onde calhava até que vim parar aqui a Lisboa, a princípio ainda dormia em barracas ou casas abandonadas mas depois comecei a tomar gosto à rua e agora já á alguns anos que durmo em qualquer lado, no portal de um prédio debaixo de uma arcada no banco de um jardim, onde calha, agora já á umas semanas que durmo no vão de uma porta na estação do cais sodré, deitado em cima de uns cartões que guardo ali perto entalados entre a parede e uma caixa da electricidade ou lá que porra é aquilo, só que á um sacana de um drogado que tem a mania de me roubar o lugar já o avisei uma porradaria de vezes que aquele lugar é meu, sim porque a gente cá nesta vida tem as suas normas não é chegar e vá de se servir sem respeito pela propriedade alheia, mas agora estes drógados de merda que é uma raça que inté nem devia inzestir só servem para pegar doenças aos verdadeiros vagabundos profissionais como eu com as seringas que deixam por tudo o que é canto não respeitam as nossas regras e inda por cima são trazidos nas palminhas pelo governo e por essas fúfias perfumadas como essa margarida gorda que só se preocupam com essa gente, salas de xuto ou lá que é eles fazem de propósito para suas incelencias se drogarem, a ver se os gajos se lembram de fazer salas de copos pra malta da pesada se poder enfrascar decentemente sem andar a beber plos bancos do jardim e ouvir bocas foleiras de uns certos merdas que passam e que ás vezes inté correm co a gente, gostava de saber o qué ca droga é mais do que o tintol, se até o outro gajo, o manholas dizia que beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses não sei como é que o sacana chegou a essa conclusão a mim o vinho só me dá de beber e é um pau, já me esquecia de dizer que eu tive um filho, um rapaz co minha mulher, meu mesmo, tenho a certeza ca gaja só começou a cornear-me, mais tarde. quando saí de casa o tal chefão lá da câmara, qu’era o padrinho armou-se em bom e mandou-o estudar e tudo, o sacana do rapaz aqui pra nós nunca valeu um peido nunca me gramou. era um cagão um impertigado do catano e segundo me dizem está bem na vida, os malandros tem todos sorte meteu-se na política nunca quis saber de mim mas eu também estou-me cagando pra ele, que lhe faça bom proveito tudo o que tem, pra mim basta-me esta garrafita, vá lá mais uma golada qué bom prá tosse e já começa a escurecer deixa-me mas é guardar a escrita que amanhã também é dia e toca a marchar para a minha caminha lá no caisodré, verdade seja que também podia dormir aqui mesmo neste banco qué muita jeitoso mas o nosso cantinho é o nosso cantinho e não posso falhar senão o cabrão do drogado ainda se apodera dele de vez, oje inté por acaso já bebi além da conta que esta merda desta escrita deixa-me assim a modos que nervoso já estou meio atravessado dos cornos e ai do cabrão do drógado se hoje resolver enfrentar-me, aquele lingrinhas daquele paneleiro encartado amando-lhe cuma cabeçada que lhe fodo os cornos. ai amando, amando, o gajo vai ver. É oje, é oje…

* * *

Estas eram as últimas folhas de um caderno que um mendigo encontrado há dias no Cais do Sodré, com uma faca cravada na garganta e já sem vida tinha escondido no fundo de um bornal à mistura com pedaços de pão velho, uma maçã, um lápís umas pontas de cigarro, um canivete, um rolo de cordéis e uma garrafa de vinho meio vazia e mesmo o cartão de identidade, sujo, meio partido, há muito caducado, mas onde era possível ainda descortinar os seus elementos identificativos Os jornais que relatavam o acontecimento mencionavam o seu nome, idade, local de nascimento e morada incerta.

A secretária do senhor Ministro, que tem por norma ler os jornais matutinos e seleccionar as notícias que eventualmente possam interessar a sua Excelência, gosta também de se entreter com as fofocas e faits divers de que alguns desse jornais fazem objecto principal e quase exclusivo e não teve dificuldade em encontrar a notícia da morte do mendigo que aliás vinha em grandes parangonas num desses jornais. Foi pois com algum espanto que constatou que o apelido – um conjunto de dois nomes - do desgraçado era igualzinho ao de sua Excelência e que era natural da freguesia da Cedofeita, freguesia que o BI de sua excelência também indicava como sendo o de sua naturalidade mas que o curriculum jamais mencionava. Assim, ao levar-lhe os jornais com as notícias seleccionadas, atreveu-se (é muito familiar o seu relacionamento com o senhor Ministro) a chamar-lhe a atenção para a notícia: - “Curioso, senhor Ministro já viu que este mendigo assassinado ontem no Cais do Sodré tem um apelido igual ao seu e nasceu na mesma localidade que o senhor? Claro que só pode ser uma coincidência. Imaginem se poderá ter alguma coisa a ver com o Senhor Ministro! Ele há cada uma!”

Sua Excelência empalideceu levemente, rosnou entre dentes duas ou três palavras entre as quais lhe pareceu ouvir “que se foda” e logo recuperou o tom formal e frio do costume: Está bem, deixe os outros jornais e leve-me daí essa porcaria Ah e não se esqueça de reservar dois bilhetes para o espectáculo de logo à noite no Casino do Estoril.

* * *

O mendigo assassinado no Cais do Sodré, como ninguém se tivesse apresentado a reclamar o corpo, fez um longo estágio na morgue para estudo de alguns estudantes de medicina e acabou por descer à vala comum, tão anónimo como vivera os últimos anos da sua existência.

Uma cópia do seu Diário, que me foi fornecida por um amigo, amigo de um inspector da Judiciária, está agora em meu poder e foi dela que transcrevi o texto acima, tentando manter quanto possível o seu estilo grafia e sintaxe e retirando, todavia alguns dos palavrões mais cabeludos nele contidos, susceptíveis de ferir a susceptibilidade de alguns leitores mais pudibundos ou mais sensíveis.

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Qualquer semelhança entre os personagens,
lugares e situações desta estória
e pessoas, lugares e situações reais
é mera concidência