ESCRITOS OUTONAIS

8.23.2006

OS TARALHÕES - uma estória de putos

NOTA: Este texto pode ser saboreado na bonita voz de Luís Gaspar em "Lugar aos Outros nº 16, no audioblogue http://www.estudioraposa.com/

Todas as estações têm os seus encantos peculiares, mas as primeiras chuvas, fazem-me sempre lembrar os tempos que em garoto, nove dez anos, com as terras lavradas para as sementeiras, ia pelos campos fora, nas muitas quintas que havia em redor de Moscavide, melhor dizendo, na imensa quinta que era Moscavide de então, armar filas de ratoeiras para apanhar a desprevenida passarada que esvoaçava rente à terra revolvida de fresco, em cata de vermes ou de um qualquer grãozito perdido da última sementeira.

Diga-se, em abono da verdade, que nunca fui grande passarinheiro. O especialista era um puto meu amigo, que tanto capturava pássaros vivos, sobretudo canoros, para vender, com o auxilio de uma rede ou com ramo untado de visco , como os aprisionava em ratoeiras de arame apropriadas para o efeito.

“Ratoeira” é, aliás, um termo não usado aqui com muita propriedade, falando-se da captura de pássaros e não de ratos. Emprego-o apenas porque é o nome que se lhe dá, cá por baixo, pois no norte, na minha aldeia e em muitas outras da província, se lhe chama “costelo

Francisco Mendes se chamava este meu amigo, que como todos os Franciscos, respondia pelo diminutivo Chico (vocábulo que tenho sempre dúvida de como se escreve, e tanto que umas vezes o grafo com X e outras com Ch, conforme o Francico com quem falo ou de quem falo). Este, porém, era o "Chico", com CH, e ficamos entendidos

Era um puto franzino, algo enfezado de rosto miúdo e picado pelas bexigas, bom rapaz, mas que se tornava bera como a ferrugem quando as coisas não lhe corriam de feição. Ele era o “expert” das nossas caçadas aos pássaros, mas nunca dispensava a minha companhia, vá lá saber-se porquê. Desconfio, porém que seria para ter alguém que reverenciasse a mestria das suas performances. Não admira, pois era aquilo em que ele era bom.

Morreu novo, o Chico. Tinha catorze ou quinze anos quando a tuberculose, de que já sofria ao tempo em que, juntos, perseguíamos a desprevenida passarada da região, o levou.

Naquele tempo a tuberculose era uma doença muito comum e muito temida, uma vez que a maioria das pessoas que a contraíam, sobretudo na camadas mais desfavorecidas e com menos posses para se tratar e se alimentar convenientemente, dificilmente sobreviviam. Recordo-me que, entre os garotos, quando algum achava um objecto de uso pessoal que lhe apetecesse guardar, logo outro acorria pressuroso "eh pá, deita isso fora, que pode ser de algum tuberculoso", e logo o objecto era jogado para o lixo, com repugnância e temor e se ia prontamente lavar ou mesmo desinfectar as mãos .

O Chico foi o meu primeiro amigo a “marchar”... Depois disso, quantos outros, meu deus! Tantos que já lhes perdi a conta. Pois o bom do Chico, magricelas, meio bexigoso, menino com rosto de adulto curtido, é que era, como atrás referi, o expert das nossas caçadas. Ele é que sabia o nome de cada uma das espécies a capturar, os seus hábitos, a forma de armar as ratoeiras, a forma específica de lhes fazer o cerco, de modo a fazê-las cair na fila de ratoeiras estrategicamente distribuídas ao longo dos regos da terra lavrada,

Lembro-me que os taralhões eram os que mais facilmente se deixavam apanhar. Para isso lá estava a formiga de asa (“agúdia” lhe chamam nalguma zonas do nosso país) que aparecia sempre, precisamente, com o advento das primeiras chuvas. Eu achava mesmo que os simpáticos e utilíssimos bichinhos eram uma oferta de Deus aos putos, enviada expressamente para apanhar taralhões.

E nem era preciso cavar nos formigueiros. Mal começava a chover, elas, vindos não sei de onde, apareciam por tudo quanto era sítio, no meio da povoação, no muros velhos e mesmo nas paredes das nossas casas.

Ora, para apanhar os taralhões, armava-se a ratoeira num montículo de terra debaixo de uma oliveira, com uma inclinação tal que fosse bem visível do alto dos seus ramos, com a formiga de asa, vivinha, a mexer as asas transparentes, na ponta do araminho que prendia a mola; e era vê-los, em voo picado, precipitarem-se, directamente do ramo, em direcção à ratoeira, de onde só saíam, obviamente, para as anilhas que, para o efeito trazíamos presas ao cinto, de forma a regressarmos a casa, todos inchados, com os troféus da caçada ostensivamente pendurados à cintura.

É curioso que em Moscavide (não sei se noutras zonas se passaria o mesmo) quando se queria referir a alguém meio esparvoado, se dizia “ é mesmo um taralhão!”. Anos mais tarde, vim a descobrir, num dicionário, que o taralhão é uma “ave da família dos muscicapídeas”. Cá está: ave que apanha moscas. Só que o taralhão, como “taralhão” que é, e além do mais não dado à consulta de dicionários, devia achar que moscas ou formigas que parecessem moscas, por serem providas de asas, era tudo a mesma coisa, e ... truca.

Uma vez, na quinta do Conde dos Arcos , para onde íamos muitas vezes armar e ir “à chincha” (ou “xinxa”? Vá lá saber-se, também, como se escreve uma palavra que só existia no vocabulário oral moscavidês de putos reguilas!), fiz uma partida ao Chico que ficou pior que estragado comigo.

Tendo ele armado as ratoeiras e afastando-se para um valado. onde se demorou a “gamar” e a comer marmelos (era outro dos nossos “desportos” favoritos), eu entretive-me maldosamente, na frescura da manhã, a "dar de corpo" (eufemismo que utilizo para não dizer “arrear o calhau". "arrear os cabazes" "arrear a jarda", "arrear o preso" - vocábulos muito mais vernáculos e expressivos, convenhamos, mas que não me ficaria nada bem (deus me defenda) usar nesta selecta crónica - entretive-me, dizia eu, a dar de corpo, em cima de uma das referidas ratoeiras. Uma das do Chico, claro.

Vai daí, tive a luminosa ideia de depenar uma das aves que já tínhamos apanhado e com as penas entreter-me a ornamentar o mal cheiroso presente, de forma a dar ideia de um pássaro que se tivesse deixado cair na armadilha. Veio o Chico, topa de longe a ratoeira emplumada e corre excitado para lhe deitar a mão.

Grito-lhe que aquela é uma das minhas ratoeiras, e desato também a correr na sua direcção, o que faz o Chico correr ainda mais para chegar primeiro.
Chegar e jogar a mão ao pássaro que não era pássaro, foi um ver-se-te-avias, com as pestilentas e lambuzantes consequências que se adivinham.

Fui corrido à pedrada, com o Chico furioso perseguindo-me atrás de mim, campo fora, até às primeiras casas da povoação.

Claro que durante alguns dias as nossas incursões predatórias ficaram suspensas, sem grande benefício, aliás, para a passarada, pois meliantes como nós eram mais que muitos e não era a ausência temporária daquela dupla venatória que iria trazer descanso à inquieta e sofredora fauna esvoaçante da região.

Qual é o puto de Moscavide de hoje que sabe o que é um taralhão ou onde é que ficava a Quinta do Conde dos Arcos? Este é um segredo que fica entre mim e o Chico, que criança ainda, no longínquo ano de 1943, para sempre partiu, com as suas ratoeiras e a sua imensa sabedoria.

Quanto a mim, as únicas ratoeiras que voltei a encontrar foram aquelas que a vida me armou e em algumas das quais me deixei cair, mais tontamente que os simpáticos e desastrados taralhões da minha infância.


8.04.2006

AMÉLIA MELENAS, minha mãe

Posted by Picasa Minha mãe faleceu a 25 de Março de 1977, com 74 anos, curiosamente no dia oficial do meu aniversário. Por esses dias andava eu tão atarefado, trabalhando de dia estudando à noite para as últimas provas da minha Licenciatura que nem me apercebi que ela estava tão prestes a deixar-nos. . Quase 30 anos se passaram Sou agora um ancião, mais idoso do que ela alguma vez chegou a ser, mas continuo a considerar-me um dos seus meninos e a pensar nela com o carinho que nem sempre tive capacidade de lhe demonstrar, como merecia.

Essa foi, contudo e apenas, a data da sua morte oficial e definitiva. Na verdade, a minha pobre mãe mais não fez que vegetar na última meia dúzia de anos anteriores ao seu falecimento, tomada de arteriosclerose aguda, que progressivamente se transformou em demência senil.. Era doloroso ver uma
mulher tão viva e enérgica como ela fora, completamente apática, de olhar mortiço e distante, não reconhecendo sequer o marido e os filhos, a quem por vezes, chamava irmãos, numa evocação, talvez, de um passado remoto da sua própria juventude.

O que mais me dói é que, contrariamente ao que se passou com o nosso pai (que, lúcido até ao fim, soubemos exactamente o momento em que o perdemos – e que foi, aos 93 anos, o do seu último suspiro), a mãe fomo-la perdendo aos poucos,
sem disso conscientemente nos apercebermos. Quando nos demos conta, ela já não estava mais connosco. Nós víamo-la, mas ela já não nos enxergava. Nós falávamos-lhe, mas ela já não nos ouvia. Nunca chegou a haver entre nós uma verdadeira despedida, por mais pungentes que as despedidas sejam! A mãe extremosa, a mulher valorosa que conhecêramos, há muito que tinha partido, bem antes de, serena como um passarinho, fechar os olhos para sempre.

Tantos anos passados, aperta-se me o coração de saudade da mãe de que guardo memória - tão diferente da velhinha de olhar inexpressivo e ausente dos seus
últimos anos. A lembrança mais antiga que dela guardo não é ainda a de um rosto. É antes a de um cheiro. O cheiro doce quente e terno do seio que me oferecia…ah, o cheiro de mãe! Não sei até que idade me alimentei do leite materno, mas deve ter sido até tarde, pois sei que a minha mãe, era saudável e tinha leite abundante, tanto assim que além de mim amamentava, ao mesmo tempo uma menina da aldeia, que vim a conhecer mais tarde e que, tal como eu, ainda vive no momento em que escrevo.

É esse cheiro, o mais antigo de que me lembro, que ocorre com frequência à minha memória olfactiva, associado sempre à minha mãe, com um sentimento de bem-estar, de felicidade, de segurança. Não sei se isso acontece com as outras pessoas mas a memória sensorial é em mim muito viva e a que mais facilmente me toca. Um simples cheiro, um gesto isolado, um mero trejeito, um leve contacto
táctil, um riso, uma melodia, uma simples nota musical e, imediatamente, como se um interruptor se ligasse no meu cérebro, e...zut: uma determinada pessoa, uma determinada situação, um determinado acontecimento, me vêm à memória, arrancados do fundo do tempo e do espaço, com uma nitidez e uma actualidade tal, como se tudo estivesse a acontecer nesse mesmo instante.

Voltando à minha mãe, recordo-a depois, já não simplesmente pelo cheiro, mas também pela imagem: jovem ainda, por volta dos seus trinta e poucos anos, moça bonita, ar saudável, não muito alta, morena, cabelos pretos enrolados na nuca como então se usava, lábios finos, boca sempre aberta num sorriso, e, paradoxalmente, uma expressão melancólica nos olhos ligeiramente amendoados, sempre ligeira na tarefa nunca acabada de cuidar da casa, do marido e dos três filhos que tinha nessa altura (mais tarde, já em Moscavide, haviam de nascer mais dois), a quem trazia sempre como brinquinhos, com grande admiração das vizinhas, não obstante as dificuldades económicas que sempre a afligiram.

E antes disso, que sei eu da minha mãe? Como era ela em menina, como brincava, que trabalh
os passou, como sobreviveu? De um modo geral os filhos sabem tão pouco acerca dos pais! Limitam-se a ser alimentados, nutridos, vestidos, mudados, mimados, irem à escola crescerem e partirem, com a indiferença de quem cumpre um ciclo pré-determinado e inevitável. Só mais tarde, quando se é pai e muitas vezes quando já é demasiado tarde, se dá o devido valor aos ternos seres que fizeram da nossa vida a razão de ser da vida deles.

É por isso que eu tenho o cuidado de contar ao meu neto, como era a mãe dele em menina, o que fazia, a forma divertida como pronunciava as palavras que ainda não dominava - coisas a que ele acha muita graça e que a tornam mais próxima dele e o ajudam a cimentar a futura solidariedade que será desejável existir entre os dois.

Dantes não era assim. Os pais e os filhos não conversavam muito e eu pouco sei acerca dos meus, especialmente em relação ao período que antecedeu o meu nascimento. Infelizmente agora é tarde para perguntar a alguém pois já não há ninguém a quem perguntar. Esta é a razão porque estou passando a escrito o pouco que deles sei, de forma a que os meus descendentes, se tiverem curiosidade e sensibilidade para se interessarem pelo passado dos que os antecederam, não encontrem as mesmas dificuldades e a mesma angustia em que agora me debato.

Os pais de minha mãe viviam (julgo que lá terão vivido sempre os seus antepassados) em Maçores, pequena aldeia do concelho de Moncorvo, de casas escuras, feitas de lascas de xisto ligadas com barro em camadas sobrepostas, implantada na encosta de um monte pedregoso encimado de gigantescas fragas, a que se dá o nome de Monte Ladeiro e cercada, ao longe, de altas e intermináveis
serranias. Constitui o conjunto uma espécie de gigantesco anfiteatro onde a natureza, em dias de trovoada, representava os mais fantásticos e aterradores espectáculos de luz e som a que me lembro de ter assistido em toda a minha vida, e que em garoto me deixavam gelado de medo e fascinado de espanto.

Ele chamava-se António Joaquim Melenas e ela Ermelinda do Espírito Santo. Eram pequenos proprietários rurais. Trabalhavam nas suas terras e nas terras de outros quando era preciso. A especialidade dele era podador - o que constituía, na época, uma arte muito apreciável. Foi nessa qualidade, acrescida à ocupação
de caseiro que ele e sua mulher, em certa época da sua vida trabalharam na Quinta da Batoca - uma grande propriedade que o poeta Guerra Junqueiro possuía em Barca d’Alva. Tiveram 4 filhos: O António, a Beatriz, o Manuel e por último aquela que viria a ser minha mãe e a quem, na pequena e modesta igreja local, foi posto o nome de Amélia do Espírito Santo Melenas (Que história estará por trás do apelido Melenas? Sim, porque estes apelidos esquisitos têm sempre uma história).

Nunca conheci estes avós, nem tão-pouco os avós paternos. Bem pena tenho. É uma frustração para mim, nunca ter conhecido esse amor tão especial que é o amor de avô. Conheço-o agora, mas do lado de onde a água corre. E porque sei como é bom,
mais lamento nunca ter podido beber dessa água. Mas curiosamente ainda conheci um bisavô, o Ti Luís Caixeiro, velhinho de longa barba branca e pele rosada, que morreu já passava dos cem anos, pouco tempo depois de nós termos abalado para Lisboa, aliás Moscavide. Julgo que seria o pai da mãe da minha mãe. Mas porquê Caixeiro, se nunca foi empregado de balcão e o seu nome verdadeiro era Luis Francisco Pinto?
Minha avó Ermelinda morreu no parto seguinte ao da minha mãe, quando esta era ainda muito pequena e o meu avô António Melenas faleceu tinha ela apenas 7 anos.

Viúvo, ainda novo e com quatro filhos, o avô António não tardou a arranjar outra mulher que lhe aquecesse os pés e lhe cuidasse da prole. As relações da madrasta com os enteados não terão sido as melhores, como acontece na maioria dos casos, o que levou os mais velhos a procurarem ou
tros rumos noutras longínquas paragens. Aliás o meu avô teve o bom senso de se desfazer da intrusa logo que as coisas se complicaram em relação aos filhos.

O António, o mais velho, já casado e com dois filhos foi para o Brasil por volta de 1927, estabeeceu-se em São Paulo e por lá ficou e lá veio a falecer, junto dos filhos e netos.
.
A Beatriz, em 1914, com dezassete anos apenas (a minha mãe teria onze ou doze nessa altura) abalou para os Estados Unidos para trabalhar numa fábrica têxtil, tendo aí casado pouco depois com o Júlio, um colega de profissão, natural também de Maçores. Infelizmente o marido começou a dar sinais de perturbações mentais que os obrigaram a regressar às agruras da vida da aldeia natal, onde ele acabou por ter um fim trágico, originado precisamente pela sua insanidade mental. Novamente só e com
um filho, voltou a casar com outro rapaz da Terra, conhecido por “Cochano” (“Cutchano”, na pronúncia local), que lhe fez três filhas, abalou para França e não mais deu notícias, até que, trinta e tal anos depois, apareceu para vir morrer na terra onde nascera. Entretanto já a mulher, depois de muitas vicissitudes, tinha partido para o Brasil acompanhada das filhas, e por lá ficou, no Rio de Janeiro, sobrevivendo aos filhos e morrendo em idade avançada, junto de uma neta.

O Manuel, nascido em 1 de Janeiro de 1900, casou com uma rapariga da vizinha aldeia de
Felgueiras, teve dois filhos e abalou para Lourenço Marques, onde após anos de trabalho na agricultura das terras que foi adquirindo, ali veio a falecer.

E a Amélia, a minha mãe? Tão criança ainda, órfã de pai e mãe, com os irmãos, cada um para seu lado, a tratarem das suas vidas, como terá sido a vida dela naquela aldeia inóspita?! Uma coisa eu sei: naquele tempo, pelo menos naquelas serranias transmontanas, as raparigas não iam à escola e ela nunca aprendeu a ler, com um desgosto que a acompanhou pela vida fora. Bem sei que crianças nesta situação há milhares pelo mundo fora. Mas esta era a criança que viria a ser minha mãe e enternece-me o coração imaginá-la, à distância de um século, sujeita a mil vicissitudes e carências.

Sei que a dada altura foi para casa de uns parentes abastados, uns tais Canígios (ou nome parecido) que tomaram conta dela, mas onde, tanto quanto julgo saber, pouco mais era do que uma serviçal, uma espécie de cinderela sem príncipe encantado nem fada madrinha.. Essa família, que residia em Moncorvo, tinha também casa no Porto, onde passava largas temporadas, sobretudo na época invernosa que naquelas paragens é dura de suportar e quem tem dinheiro não precisa de
sofrer as agruras do tempo. Deve ter sido no Porto (não acredito que pudesse ter sido em Moncorvo) que minha mãe, nessa época, viu uma peça de teatro muito famosa na altura - “Rosa do Adro”, um dramalhão de que ela nunca mais se esqueceu e que muitas vezes me contava.
Como era muito alegre, gostava muito de cantar e cantava muito bem, aprendeu no Porto todas as cantigas das revistas então em voga. Cantigas que eu vim a
aprender com ela e que ainda hoje me surpreendo a cantar, de vez em quando, e que sempre me fazem recordar a sua voz, cantando-as.

Por volta dos seus 17 anos, grassava na Europa, na sequência da 1ª Grande Guerra, uma epidemia terrível, designada por “pneumónica”, que ceifou milhões de vidas. Em Portugal morreram muitos milhares de pessoas e minha mãe foi uma das contagiadas. Era costume nessa altura os sinos “tocarem a Finados” quando alguém morria. Pois nessa altura os mortos eram tantos que os sinos não se calavam um minuto por esse país fora e havia povoações onde não restava ninguém em condições de fazer os funerais. Minha mãe chegou a ser dada como morta, tendo mesmo os sinos chegado a tanger, na transmissão da lúgubre notícia. Felizmente era rebate falso e minha mãe acabou por se salvar, quase por milagre, como ela gostava de salientar.



Foi em Monc
orvo que conheceu o jovem e bonito (é verdade, era um homem bonito, o meu pai) António Alberto - sapateiro de profissão, o que era na altura uma regalia relativamente aos seus vários irmãos que tinham de estafar o corpo como assalariados rurais, filho de um casal de pequenos agricultores, António Valentim Gouveia e Maria do Nascimento Costa, residentes naquela vila. Casaram em 22 de Maio de 1922, tendo ido residir para Maçores, onde ela possuía uma casinha e algumas terras de lavoura e amendoal deixadas por seus pais.

Cerca de um mês depois, em 28 de Junho do mesmo ano ( o que prova que em matéria de sexo, e factos posteriores o confirmaram, o António Alberto não se deixava atrasar), nasceu o primeiro filho, o meu irmão José. Depois, em 11 de Julho de 1924, outro rapaz, o António Augusto e em 26 de Outubro de 1927 uma rapariga, a Maria Alice, que pouco tempo viveram. Depois nasci eu, em 15 de Março de 1929 e em Janeiro de 1932 o Diamantino. Mais tarde, já em Moscavide, haveriam de nascer o Ladislau, em 17 de Fevereiro de 1935 e a definitiva Maria Alice, em 17 de Março de 1940.

Mas, voltando aos tempos de Maçores e aos primeiros tempos após o casamento:
o meu pai, escasseando o trabalho na sua profissão, começou a dedicar-se à lavoura nas terras da minha mãe. Só que a agricultura, naquelas terras secas e pedregosas é um trabalho árduo e inglório e meu pai, menino da vila, não habituado ao trabalho do campo, ao contrário dos seus irmãos mais velhos, e diga-se em abono da verdade, não morrendo de amores pelo trabalho em geral, acabou por endividar-se e, uma a uma, vender todas as terras de minha mãe.

Começou então a abusar da bebida e sempre a caminho da vila, onde tinha os amigos dos copos, com quem se sentia bem e onde, de quando em quando pernoitava. Ali arranjou uma amásia, com quem passava parte do tempo. Segundo minha mãe me contava, já eu tinha dois anos feitos há muito quando meu pai, que não parava em casa, me pegou ao colo pela primeira vez. Mas minha mãe era uma mulher de fibra. Descobriu onde morava a fulana em questão, procurou-a e deu-lhe um arraial de porrada que a levou a não querer mais nada com o meu pai.

Uma vez que na aldeia já não tínhamos nada e a profissão dele não tinha muita saída por aquelas paragens, pois os tempos eram ruins e os camponeses usavam botas grossas ou socas que compravam nas feiras, meu pai, que era artífice de “obra fina”, como se dizia, resolveu vir para Lisboa à procura de trabalho. Julgo que isso tenha sido em 1933 e em Maio de 1934 mandou vir a mulher e os filhos que, sozinhos na aldeia, durante largos meses, passaram, ainda me lembro, situações não muito distantes dos limites da penúria, apesar da minha mãe trabalhar aqui e ali, nas tarefas sazonais, tais como a monda, a apanha da
azeitona e da amêndoa, as ceifas, as debulhas, para as quais os proprietários contratam pessoal, que logo dispensam, uma vez terminadas.

Lá veio ela, pois, com os três filhos, todos contentes por virem para Lisboa, que devia significar para nós, naquela época, qualquer coisa de parecido, como hoje ir à lua ou coisa assim mirabolante. Afinal a Lisboa sonhada era simplesmente Moscavide, uma pequena povoação dos arrabaldes.

Os primeiros tempos em Moscavide foram igualmente duros para a minha mãe e para todos é evidente, pois era ela quem sempre mais se preocupava com tudo e quem mais trabalho tinha, para manter a família limpa e alimentada.

O meu pai ganhava pouco e minha mãe, além da lida doméstica e de aturar os três filhos pequenos, teve de trabalhar “a dias” em casa de outras pessoas. Como isso não fosse suficiente, comprou uma máquina de costura a prestações ao Zé da Carolina - sujeito grandalhão, pelo menos é assim que eu o recordo e possuidor de um dos raros automóveis então existentes em Moscavide, o qual, além de vender as máquinas e de lhes prestar assistência técnica, ensinava as clientes a coser e a bordar - e passou a fazer bordados para aumentar um pouco os magros proventos familiares.

Era um trabalho muito mal pago. Pelo menos no princípio ela não trabalhava
directamente para os armazéns, mas sim para um intermediário, o João dos Bordados, que, obviamente ficava com parte da sua mais-valia. Coitada! Matava-se a trabalhar. Lembro-me bem das longas noites de inverno que ela passava até altas horas, dobrada sobre a máquina, a pedalar, afeiçoando a agulha à forma do desenho, picotado a anilina, no pedaço de pano esticado no bastidor. Tudo isto à luz do candeeiro a petróleo e com proveitos pecuniários muito reduzidos. Era eu e os meus irmãos que muitas vezes lhe passávamos as figuras a bordar para o pano, passando uma moca de trapo cheia de anilina por cima dos desenhos de flores e ramagens picotados em papel vegetal.

Já o disse atrás, mas é sobretudo relativamente a essa época que o reafirmo: Apesar de tanto trabalho ela encontrava tempo para nos trazer sempre limpinhos, bem calçados e vestidos, com roupas que ela própria confeccionava - o que suscitava a admiração e os maiores encómios de toda a vizinhança.

Nos meus primeiros anos o meu cabelo era extremamente louro, quase branco (como agora, aliás, voltou a ser), motivo pelo qual além de me chamarem “Ruço-de-má-pelo” havia uns vizinhos que tinham a mania de me chamar “Holandês”. Era o Holandês para aqui, o Holandês para ali e até a minha mãe, por extensão, passou a ser chamada por Holandesa. Só que eles não sabiam com quem se metiam. Um dia em que um deles se lhe dirigiu chamando-a por esse nome, minha mãe, que ainda se lembrava do conhecido vocabulário que usavam
as mulheres do Porto, passou-lhes cá um responsório que pôs um fim definitivo ao baptismo não desejado. A partir daí a Holandesa passou a ser para sempre a Senhora D.Amélia. O respeitinho é muito bonito!

Logo no ano seguinte à nossa chegada a Moscavide, nasceu mais um rapaz - o Ladislau. Coitado do rapaz, lá teve de acarretar esse nome, de que ele não gosta, só porque era assim que se chamava o padrinho, um senhor, representante de vinhos do Porto, que morava perto de nós e para quem minha mãe trabalhava. A verdade é que ninguém lhe chama isso. É por Lau que todos o tratam.
Com esse nome ou com outro, foi mais um filho, mais uma boca a sustentar e mais trabalho para a minha mãe, claro.

Mas a coisa não ficou por aqui. Por duas ou três vezes a minha mãe teve de ser internada no hospital, duas delas não sei porquê e a última, já eu tinha 11 anos pelo parto da minha irmã Alice (mais uma!) Como eu era o mais velhinho era eu quem tomava conta dos dois mais novos, pois o Zé, já trabalhava e só à noite vinha para casa. De uma das vezes, foi por altura do famoso ciclone de Fevereiro de 1941, que tantos estragos causou pelo país fora, por volta do meio dia e meia hora, estava eu de volta do fogareiro de petróleo a cozer as batatas com bacalhau para o nosso almoço e do nosso pai que saía do trabalho às 13 horas, quando a chaminé ruiu com estrondo assustador, mesmo em cima do tacho das batatas. Foi só agarrar nos meus irmãos e fugirmos de escantilhão, escadas abaixo, eles nem se apercebendo bem do que se passava e eu completamente apavorado. Quando o meu pai chegou deparou com os três filhos chorosos à porta da rua e almoço, nicles. O que nos valeu foi a vizinha Felismina, também natural de Moncorvo, que nos confortou o estômago com uma sopa quente e mais não sei o quê.

Minha mãe, não sabia ler como já referi, mas era muito interessada em tudo o que se passava à sua volta e gostava muito que lhe lessem quer os jornais quer toda a espécie de romances que nos vinham parar às mãos. Muito gostava ela que eu lhe lesse o fascículo que semanalmente recebia de romances intermináveis: “Os Amores de Uma Princesa” , a “Condessa Mendiga” (que eu aliás pronunciava “mêndiga”, palavra que eu achava lindíssima, tendo ficado muito decepcionado quando mais tarde aprendi a verdadeira pronúncia), a “Toutinegra do Moinho” e tantos outros intermináveis e choradinhos folhetins. Mais tarde, já o meu irmão Zé era activista político e conhecera as represálias da PIDE, li-lhe a “Mãe”, de Máximo Gorki, que a comoveu até às lágrimas, de tal modo se identificou com a sofredora e corajosa personagem do famoso romance.

Tudo quanto se parecesse com injustiças sociais encontrava nela uma assanhada oposição, que manifestava da maneira simples que sabia, junto das vizinhas, na praça, no talho,. na merceria, no chafariz, onde quer que surgisse a oportunidade. Até nos folhetins radiofónicos, como os célebres melodramas do “Tide” ela descobria grandes causas sociais que a deixavam em polvorosa: o filho do burguês que desonrava a ingénua rapariguinha, com quem se negava a casar; o patrão insensível que despedia a operária por não aceder à sua vil concupiscência; o operário despedido e preso por ter roubado um pão para dar de comer aos filhos, mil temas enfim! “Ai António”, dizia-me ela, “só queria que ouvisses a telefonia! Aquilo é que eram tacadas na burguesia!”. E eu, mais tarde, já casado, quando a ia visitar, logo que entrava, vá de perguntar: “Então, mãe, como é que estamos a respeito de “tacadas na burguesia?”. Logo ela se entusiasmava a contar-me o episódio do dia, que, como sempre metia “tacadas que ferviam”.

Os filhos cresceram, os problemas económicos deixaram de ser tão prementes, mas os trabalhos e as inquietações de minha mãe nunca desapareceram. Antes, sob certos aspectos, se avolumaram. Como não se havia de ressentir a saúde de uma mãe a quem a PIDE, um a um e em tempos diferentes, prende quatro dos seus filhos (um deles quatro vezes) e uma nora? E a falta de notícias? E a negação de visitas? E chegar à prisão de Caxias para visitar o filho José e dizerem-lhe, sem qualquer outra explicação, que ele não se encontrava lá, só dias depois vindo a saber que fora transferido para o Porto, na antevéspera do julgamento marcado pata o Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa? E ver o mesmo filho, mais tarde tão gravemente doente, na sequência de outra prisão? Que aflições, que angústias para um coração de mãe!

Vale a pena, a propósito das preocupações da minha mãe com os filhos e para se ver como. actuava a polícia salazarista, relatar aqui, o que se passou com o meu irmão Diamantino:
O Tino (é como nós lhe chamamos) é estofador de profissão e tem uma oficina na Avenida dos Estados Unidos. Em fins de 1961 trabalhava esporadicamente nessa oficina o meu amigo (quase irmão) Artur Vaz, sem emprego desde que em Janeiro de 1959 tivera de abandonar a CP, onde trabalhava tal como eu, para não ser preso pela PIDE, tendo eu sido preso no mesmo dia.

Acontece que o Artur Vaz era um dos organizadores e participantes no célebre ataque ao Quartel de Beja que teve lugar na noite de fim de ano de 1961. Ora a PIDE, que devia andar de olho no Artur e que suspeitava, sem nada saber de concreto, (normalmente a polícia só sabe o que lhe dizem) de que alguma coisa se andava a tramar, mal teve conhecimento do que se estava a passar em Beja, fez a ligação ao Artur e ao último sítio onde ele tinha estado antes de partir para o aventuroso assalto, e vá de bater à porta do meu irmão, às primeiras horas da madrugada, mesmo antes de ter feito quaisquer prisões em Beja.
Por volta das cinco da manhã, noite escura ainda, um grupo de numerosos indivíduos à paisana, bate-lhe à porta da sua residência - um segundo andar na Rua Barão de Sabrosa, dizendo que precisavam de falar com o senhor Diamantino sobre assuntos relacionados com a sua oficina de estofador.
Assustada, a mulher, que estremunhada tinha ido abrir a porta, fechou-a subitamente e começou a gritar por socorro, julgando que seriam malfeitores, pois não fazia sentido que alguém viesse tratar de negócios a horas tão impróprias e com tantos “negociantes”.
Os Pides, convencidos, não se sabe com que fundamento, que iriam encontrar forte resistência armada e grande quantidade de armamento, como disseram mais tarde à mulher do Diamantino, telefonaram a pedir reforços, aparecendo depois com uma enorme e aparatosa força da PSP, que pôs a rua em reboliço, intimou-os a renderem-se, através de poderosos altifalantes, e preparados para tudo, mandaram os restantes inquilinos evacuarem o prédio.
Lá dentro, a mulher, aflita e com um filho de três anos junto deles, perguntava. “Diamantino, tu meteste-te em alguma coisa”?
“Eu não”, respondia o Tino. “Então é melhor abrirmos a porta.” O bom do Diamantino, que sempre foi muito teimoso e ainda por cima estava inocente, não sabendo sequer o que se estava a passar em Beja. retorquia que “não era assim”, “que não se podia chegar a casa de um indivíduo, a uma hora daquelas, dizer anda daí e a pessoa ir. Eles tinham que aprender. E para o levarem teria de ser à força”. E vá de se barricar, encostando de encontro à porta todos os móveis que podia arrastar.

Muitas horas depois, já o dia ia alto, a ”intrépida” polícia resolveu enfrentar o “perigoso inimigo”, começando por atirar granadas lacrimogéneas para dentro de casa, através das janelas

Só assim “o inimigo” se rendeu. Lá surgiu, finalmente, o Diamantino, franzino e fraca figura que sempre foi, acompanhado da mulher e da criança, todos meio sufocadas com o cheiro e o fumo das granadas. Uns lançam-se sobre “os prisioneiros”, enquanto os outros procuram armas, em completo histerismo, por tudo quanto era sítio. Armas que nunca existiram, como é obvio, porque só existiam na sua imaginação exaltada. À falta de armas e para justificar o inacreditável aranzel que tinham criado, acabaram por levar o Diamantino e a mulher, deixando a aflita criança, de três anos, entregue a uma das vizinhas.

Perguntei-lhe mais tarde se lhe tinham dado muita porrada. “Se deram”, disse-me ele , eles andavam desvairados com o que estava a acontecer em Beja, entravam, saiam e cada um que chegava ao pé de mim, me dava porrada.”

Os Jornais de 4/1/62 (como era lenta a informação ao país!) relatavam o acontecimento dizendo que “a polícia tinha localizado a morar na rua Barão de Sabrosa e preso um casal que há muito andava sendo procurado” e continuavam que tinham oferecido resistência, suspeitando-se que a sua residência servia de esconderijo de armamentos, etc, etc.

Tomei a iniciativa de escrever a um desses Jornais O” Diário de Lisboa” de saudosa memória) denunciando a falsidade da informação e informando que o casal “não andava sendo procurado”, nem foi “localizado a morar na rua Barão de Sabrosa” , pois moravam naquela rua e naquela mesma casa desde que tinham casado (com alguma pompa e circunstância, aliás) e a mulher vivia desde garota, com os seus pais, na mesma rua, dois ou três prédios mais à frente, sendo proprietários de um estabelecimento, também na mesma rua, onde eram conhecidos de toda a gente.
Responderam-me do jornal que a notícia lhes tinha sido fornecida textualmente pela PIDE e que não podiam alterá-la.

Passaram-se 20 dias sem que o Diamantino fosse autorizado a ter visitas ou sequer a escrever, imagine-se com que aflição e angústia por parte da nossa mãe, sem poder ver o filho ou saber quaisquer notícias a seu respeito. Ora, ao fim desse tempo, exactamente no dia 20 de Janeiro, tendo-se dirigido mais uma vez à sede da PIDE e sendo-lhe de novo negada autorização para ver o filho, ela entrou em desespero e reclamou com tanta determinação o direito de o ver que a ameaçaram de a prender também, se não saísse dali imediatamente.

O Diamantino, continuou preso durante o tempo que lhes apeteceu, até que um dia apareceu em casa, sem nunca ter tido visitas nem ordem para escrever e sem que tivesse sido objecto de qualquer acusação. Era assim a salazarenta justiça e o seu famoso processo dos “safanões dados a tempo”!

Diz o povo, na sua vivida e secular sabedoria que “elas não matam mas moem”. Esta expressão aplica-se que nem uma luva à vida de minha mãe. Foram sofrimentos a mais para uma só pessoa. Não serão eles mais do que suficientes para explicar, até certo ponto, as perturbações que, de forma progressiva e irremediável, vieram afectar a sua saúde mental? O certo, o certo é que minha mãe, menos do que ninguém, merecia os tristes e apagados últimos anos que viveu - mulher forte, lúcida e corajosa que sempre foi!
Que saudades, minha mãe!