ESCRITOS OUTONAIS

7.26.2006

MAÇORES, ALDEIA MINHA








A propósito do pão
da minha infãncia
e da minha aldeia
de onde bem cedo
tive de partir.
aqui deixo um poema
em que evoco o gosto antigo desse pão
e as saudades da terra onde nasci:




Em teu monte ladeiro reclinada
Recordo-te, Maçores, aldeia minha
Ouço ainda gemendo pela estrada
Carros de bois voltando na tardinha
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Recordo as mornas tardes na Pracinha,
O trote dos burricos na calçada,
O bom sabor antigo que o pão tinha
O perfume de cada madrugada.
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A vida me levou de ti, Aldeia,
Mas desde o triste dia em que parti
Eu teço fio a fio a doce teia
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De amor por essa terra onde nasci.
Não sei se és bonita ou se és feia
Sei só que te amo tanto e te perdi

* * *

Abril 2003

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7.19.2006

O PÃO CENTEIO


Nos tempos que correm, devido, sobretudo à grande mob
ilidade de deslocação e ao universal aceso à informação, assiste-se a uma flagrante uniformidade no jeito de vestir, na forma de comer, na música que se consome, nos divertimentos que se frequentam e em quase tudo que constitui o “modus-vivendi” das sociedades contemporâneas.
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A diferenciação estabelece-se apenas ao nível das capacidades económicas de cada um.No que se refere à comida, por exemplo, é possível a um habitante de um qualquer lugarejo ter, pelo menos em teoria, acesso aos mesmos géneros alimentícios que qualquer outro indivíduo residente numa grande cidade. Se os não encontra na lojinha da sua terra, encontra-os na vila mais próxima, ou encomenda-os noutra mais distante. É apenas uma questão de tempo. O certo é que, dependendo das condições económicas é, em princípio, possível colocar na modesta mesa de um qualquer camponês de uma qualquer aldeia as mesmas trincadeiras que engrandecem a mesa requintada de um rico morador de um grande aglomerado urbano.Sou, porém, de um tempo em que as coisas não se passavam exactamente assim.
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Na terra em que nasci, por exemplo – uma aldeia situada em íngreme encosta de uma das serras que ladeiam o vale do Douro, logo após a sua entrada em território exclusivamente português, o pão, as batatas, e as castanhas, constituíam, para a maioria dos seus moradores, a sua principal e quase exclusiva dieta alimentar.O pão mais consumido era, porém, o centeio, visto ser o cereal que mais se adaptava às ladeiras pedregosas e extremamente inclinadas da região. “Terra ingrata onde a urze a custo desabrocha/ bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha”, no dizer de Guerra Junqueiro, também ele nascido, numa localidade bem próxima da minha aldeia. O pão centeio, enorme como a roda de um carro, era cozido para durar para toda a semana e era dele que os aldeãos se alimentavam.
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Parece que os estou a ver, no intervalo de um esforçado acto de lavoura, de pé, pegando com a mão esquerda o enorme casqueiro encostado ao peito e com este fazendo um ângulo recto, navalha bem afiadinha na mão direita, deslizando suave e certeira no corte longitudinal do pão, de onde talhavam minúsculas e delgadíssimas fatias, as quais, entaladas entre o indicador, o polegar e a lâmina, levavam directamente à boca, num prodígio de exactidão e segurança, que me deixavam boquiaberto e expectante , não fossem cortar os lábios em tão arriscada operação. Qual o quê! Quando a lâmina tocava o lábios já a mão que a empunhava lhe tinha sabiamente mudado o sentido do corte.
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Este vai-vem-pão-boca-pão, era, de quando em quando, interrompido para sacar, de uma metade de cabaça, presa à cinta, uma azeitona ou de uma rodela de chouriça – tudo isto sem nunca largar a navalha ou o pão, para logo alternar estes mimos com mais uma série de delgadas fatias de centeio.“Apeguilhar” se chamava ao acto de complementar a secura do pão, com a moderada deglutição de um dos mimos já referidos ou de outro qualquer modesto acompanhamento que, por sua vez recebia o genérico epíteto de “apeguilho”.
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Ai quantas vezes ouvi de minha mãe – a pressurosa e inquieta recomendação "meninos, olhem que as azeitonas (ou o queijo ou o quer que fosse) são só para apeguilhar”, que é como quem diz “comam pãozinho que o pãozinho é que engorda”.Pudera, minha querida mãe! Como devia ser complicado numa terra de tão fracos recursos, e muitas vezes sem trabalho onde ganhar uns tostões, alimentar os cinco sobreviventes dos sete galfarros que (com a profícua, competente e jamais negada colaboração de meu pai e a secular ignorância de métodos de planeamento familiar) Deus nosso senhor lhe havia concedido.
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Permito-me abrir aqui um parêntese para esclarecer, em benefício de almas sensíveis e apaixonadas incansáveis na procura de novos epítetos nunca suficientemente bons para mimosear a pessoa amada, que o vocábulo “apeguilho” , além de “aperitivo”, “acompanhamento”, “debicadela”, significa também, a um outro nível semiológico, bem entendido, “apego” e “afeição”. Assim, quem gostar destas honradas e vetustas pérolas, do nosso formoso idioma, tem aqui uma boa oportunidade de impressionar a amada ou amado, chamando-lhe ternamente “meu doce apeguilho” , ou “o meu apeguilho por ti cresce quando em ti penso”. Não me responsabilizo é pelas consequências e daí lavo, pois, as minhas mãos.
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Mas, voltado ao pão centeio, que era do que vínhamos falando: Além desta forma de o comer, o centeio constituía o almoço ou a ceia de quase todas as famílias na forma de migas – simples, com um fiozinho de azeite, de tomate, de batata esmagada, ou de bacalhau). Claro que as pessoas mais abastadas ou com melhores terras também colhiam algum trigo e era com esse cereal que faziam o seu pão. Mas mesmo esses consumiam igualmente o centeio.
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Outra coisa que nunca faltava nas casas, sempre a ferver ao lume em pequenas panelas de ferro, de três pés, eram as castanhas, que constituíam um alimento muito apreciado, porque barato, e o caldo verde. Mesmo as pessoas de mais posses, a sua alimentação diária não andava longe desta simplicidade espartana, pois na aldeia não havia muitas probabilidades de encontrar géneros que permitissem confeccionar refeições muito diversificadas.Em contrapartida havia quem nem pão tivesse para fazer as migas.
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A importância do pão era tão grande nos tempos da minha infância, que ao poisa-lo na mesa havia que ter o cuidado de não o colocar de costas para baixo, e se acaso caísse ao chão, quem o apanhasse logo o beijava com todo o respeito, como que a pedir-lhe desculpa da falta de cuidado para com ele. Assim faziam os adultos e assim recomendavam às crianças. Por outro lado, as terras destinadas ao cultivo de cereal – trigo ou centeio. eram carinhosamente designadas por “terras de pão”.
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Quando viemos para Lisboa – e como se calcula não foi por um diletante desejo de fazer turismo e conhecer novos horizontes, mas antes porque fartura era coisa que não abundava lá por casa - passado algum tempo, de muito trabalho por parte de meus pais, a nossa mesa começou a ser um pouco mais variada e mais farta. No entanto havia uma coisa a que nós não nos habituávamos: ao pão que comprávamos na padaria, sobretudo aos “paposecos” (era assim que, na época se designavam as actuais pequenas carcaças, com uma maminha em cada ponta), que nos pareciam feitos de borracha, intragáveis, sem gosto.
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Assim, de tempos a tempos pedíamos à tia Beatriz, que ficara lá na terra, ou ao meu padrinho, o ti Antoniho Canhoto, que nos enviasse alguns mimos locais, como figos e bêberas secas, amêndoas de casca, castanhas e, especialmente, o mais apreciado de todos, um ou dois pães centeios dos tais grandes como a roda de um carro. Assim, lá vinha de vez em quando uma encomenda que era preciso ir levantar aos Olivais, dado que Moscavide – a terra onde morávamos - não tinha estação.
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Quem o fazia, quase sempre, era o Ginete, um pobre diabo, alto como um pinheiro, magro como um pau-de-virar tripas, e mais bêbedo que o vinho, que se encarregava de, com um carrinho de mão, e troco troco de uma ou duas coroas (moedas de cinco tostões) transportar as mercadorias chegadas, a casa dos clientes que lho pediam.Mal o cesto ou o caixote chegava, logo o meu pai o abria e logo a galfarragem se precipitava sobre as vitualhas recebidas, com especial destaque para o desejado pão centeio.
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Assim aconteceu certa manhã. Transportadas no “correio” da noite as encomendas chegavam à estação dos Olivais bem cedinho após um dia e uma noite de viagem. Chegou o Ginete com a encomenda, subiu a escada com o cesto às costas, já meio bêbedo, pois a caminho da estação e à volta da estação, não havia tasco onde não emborcasse o seu “abafadinho”, poisou-o no chão da cozinha e ficou aguardando que o meu pai lhe entregasse a costumada paga. Sem pressas, o meu pai abriu o cesto, pegou num dos pães centeios, cortou um grosso “fatroco” para cada um dos galfarros, todos a disputar a posse da “canocha” (o cu do pão, como lhe chamam nalguns sítios), e um outro que, além do pagamento em “cash”, generosamente ofereceu o Ginete.
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Entretanto já eu, amuado por não me ter calhado a “canocha”, tinha ido disfarçar o meu despeito para a janela perscrutando o céu através da cortina, na esperança de ver sinais de que o tempo, sombrio e chuvoso na véspera, me compensasse com um dia de sol, propiciatório de mais uma desaustinada e gloriosa jornada de brincadeira na Rua António Maria Pais, no Taludo, no beco do Venâncio… ou quem sabe mais aonde...
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Ai cachopada de hoje, se soubessem como era bom passar o dia inteirinho na rua, jogando à bola, ou à rolha, à carica, à macaca ou à primeira-caganeira, sem perigo de um carro nos vir atropelar, ou interromper a brincadeira! A rua então era o nosso mundo, o nosso reino, o nosso império, de que éramos donos e senhores absolutos…
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Mas com estas divagações já me ia esquecendo do Ginete. Pois o bom do Ginete, depois de ter guardado as moedas recebidas no ensebado bolso do colete e de ter recebido a fatia de pão centeio que agradeceu com exageradas mesuras, cómicos salamaleques e indisfarçavel falta de convicção saiu empunhando-a, com ar meio desconfiado, pois muito provavelmente nunca tinha visto um pão tão grande e tão escuro.
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Lá vai ele pela rua fora mirando o pão. Chegando à esquina pára; olha para todos os lados e, com um ar de manifesto desprezo, pegando-lhe com dois dedos como se de um par de peúgas sujas se tratasse, deixa cair no caixote do lixo a valiosa dádiva com que o meu pai, num acto de generosidade raro, tratando-se de um bem tão apreciado lá em casa, se dignara presenteá-lo.
A tudo assisti, mudo e quedo por detrás da cortina. Não contei a ninguém, porque sabia que o meu pai iria entrar em fúria com o Ginete - aquele morto de fome - que tão indignamente menosprezara a nossa apreciada iguaria.Foi nesse dia que eu aprendi o valor relativo das coisas.
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Pena foi que, tendo-o aprendido tão cedo, tantas vezes o tivesse ignorado ao longo da minha vida, valorizando e sofrendo por coisas que, acabaria tardiamente por concluir, não valiam um tostão furado.