ESCRITOS OUTONAIS

6.30.2006

AMORES PERDIDOS


Foto de Vasco Abreu

Coimbra é uma cidade de amores, dizem. Para mim foi, é, uma terra de amores perdidos.Lá perdi dois, com efeito. Perdi, é uma expressão que aqui emprego com toda a propriedade, pois tendo ambos a sua génese noutra localidade bem distante, quis o destino que em Coimbra tivessem inesperados e dolorosos epílogos. Esta lindíssima cidade foi para mim, um verdadeiro lugar de perda. E contudo, e apesar de tudo, uma coisa ganhei: um paradoxal amor pela própria cidade.
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Um desses amores perdidos - é melhor começar por dizer que é de “uma” que se trata, pois estou falando de mulheres e nos tempos que correm convém explicitar de forma inequívoca o sexo dos amores de que se fala. E sendo assim, reformulo o começo da frase: Uma delas, chamemos-lhe Licínia, foi a morte que a levou; a outra, chamemos-lhe Isilda, foi a vida que me a fez perder.
A esta amei-a perdidamente. Era o meu primeiro amor e investi demasiado nela. No amor, como na Bolsa, quando muito se investe muito se pode perder. Com ela perdi tudo. Era uma jovem esbelta, alta, elegante, bem feita de corpo, cabelos longos de um castanho que se adivinhava terem sido louros na infância, rosto bonito, pele branca semeada por uma ou outra sarda que, longe de a desfear, lhe davam uma graça peculiar.
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A meio do nosso namoro, o pai, que era mestre de obras e tinha uma demorada empreitada em Coimbra, teve de se mudar para lá e com ele, toda a família, como é obvio. Apesar da mágoa imensa que a separação me causou, tive forma de minimizar os seus efeitos, pois sendo funcionário da CP e podendo viajar em primeira classe em qualquer dos seus comboios, arranjei maneira de, durante os meses seguintes, passar com ela praticamente todos os domingos e mesmo alguns fins de semana, pernoitando nesse caso numa pensão perto da sua residência.
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Quem pense que era só eu que tinha
a paciência de me deslocar a Coimbra, semana após semana, para namorar, está redondamente enganado. Na verdade, quando em Coimbra entrava no Rápido, de regresso a Lisboa, encontrava sempre um compartimento repleto de colegas com um lugar reservado para mim - também eles regressados de visitar as respectivas namoradas, uns do Porto outros de Aveiro e outros mesmo de algumas estações mais acima, na linha do Douro.
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A diferença é que eles iam de véspera e as namoradas viviam nas suas próprias terras que eram também as deles. Desta maneira, de uma cajadada matavam vários coelhos: consolavam-se junto das namoradas, matavam saudades da família e traziam provimentos para toda a semana, que os ordenados dos ferroviários eram bem baixos, sobretudo para quem como eles vivia em pensões. cuja mensalidade lhes levava uma boa parte dos mesmos dos seus magros proventos.

Nestes meses de namoro em Coimbra tive a ocasião de ficar a conhecer a cidade, e mesmo alguns arredores, razoavelmente bem, juntamente com a Isilda, sempre acompanhada, bem entendido, da irmã mais nova do que ela e bastante permissiva no seu forçado papel de “chaperon”, diga-se. Divaguei pelas veredas do Penedo da Saudade, gozei o remanso fresco do Jardim da Sereia, percorri as bem desenhadas áleas do Jardim botânico, espraiei-me pelo Calhabé, andei por Celas e Santo António dos Olivais, passei deliciosas tardes nas margens do Mondego que por essa altura bem merecia o apelido de “Bazófias”, como os estudantes o chamam; piqueniquei no choupal, bronzeei-me nas areias douradas da Figueira da Foz… cada momento do dia aproveitado ao máximo, até que às 20,30, se bem me lembro, chegava a triste hora de partir, ficando o namoro interrompido até à semana seguinte.

Assim se passaram vários meses até que um dia, alguém “fez o favor” de me avisar que a boa da Isilda
, menos paciente do que eu, e sobretudo mais calculista, não se contentando com o namoro dominical tinha arranjado um part-time (aliás, part-time, afinal, era o meu) para os restantes dias da semana - no que terá feito, além do mais, um belo negócio ao trocar um pé rapado como eu, que tinha na altura um vencimento mexeruco de ferroviário em princípio de carreira, por um filho de comerciante abastado, seu vizinho. ao que me constou.

Escusado será dizer que fiquei com uma dor de corno das antigas, tanto mais que, como atrás referi, tinha por ela uma verdadeira paixão. Cantei-lhe das boas, “daquelas que os cães não gostam”, como dizia minha mãe. Por escrito apenas, pois não me dignei sequer voltar a vê-la.
Ela lá ficou, não tardou muito que casasse e lá reside desde então. Cinquenta e alguns anos se passaram, e nunca mais lhe pus a vista em cima. Sei apenas que está bem de vida e que te
m dois ou três filhos ou filhas.

A outra, a Licínia, era em tudo diferente: franzina, tipo “mignone”, gentil de maneiras e doce no falar, discreta, uma ternura de moça. Cintura fina, bem feitinha de corpo, morena, olhos pretos, rasgados, de uma doçura infinita. Em boa verdade ela já me namorava nas últimas semanas da vigência do meu namoro com a Isilda. Conhecemo-nos no jardim local, onde todas as tardes ia passear com um irmãozito de três ou quatro anos. Conversávamos muito e era ela que me “fazia a corte” e se considerava minha namorada, como atrás referi. Era o que se podia chamar um amor unidireccional.

Eu achava-a muito garota e não a levava muito a sério. Embeiçado que estava pela outra, mais mulher, mais sensual, mais “boazona” passe o deselegância da expressão, limitava-me a aceitar o “flirt” com uma certa complacência, deixando-lhe porém muito claro que gostava de outra e com ela estava comprometido. A sua reacção foi desarmante e completamente inesperada, sobretudo naquele recuado tempo – “E que é que isso tem? Eu gosto de si e vamos ver quem ganha! O amor é como uma guerra e quem sabe se eu não consigo vir a ganha-la?” E ria como uma criança travessa. E lá continuámos com os nossos encontros e as nossas conversas quase diárias, no jardim, ao fim da tarde.

Uma uma vez encerrado o “affaire” Isilda, e com o coração desocupado, acabei por ceder aos encantos da garota que, por tal razão. se julgou, como previra e desejara, justa vencedora da “guerra de amor” em que se tinha empenhado. Em boa verdade a minha gentil beligerante não era vencedora de guerra alguma, mas antes dedicada enfermeira que acolhia um ferido derrotado em outro campo de batalha. a duzentos quilómetros do seu teatro de operações.

Pouco durou, contudo, este namorofinalmente assumido por ambas as partes, como é de norma. Umas semanas depois, a mãe da Licinia (senhora julgo que divorciada e que nunca cheguei a conhecer) resolveu mudar-se nem mais nem menos do que, (pasme-se) para Coimbra - a cidade da minha derrota - mais concretamente para uma pequena freguesia vizinha, de onde era natural.

Muito chorou a moça no meu ombro, quando me deu a notícia. Logo agora que estava toda ufana com a vitória amorosa que acabara de alcançar! Sabendo da minha prerrogativa de viajar de comboio sem gastar um tostão, implorou-me que não deixasse de ir vê-la a Coimbra, onde ela arranjaria maneira de vir encontrar-se comigo. Quem poderia resistir a um pedido feito, com os olhos rasos de água, por uma moça tão sensível, tão terna, como era a Licínia?

Lá recomeçaram as viagens dominicais no rápido (“flecha de prata” se chamava na altura) para a cidade do Mondego. Os nossos encontros eram quase sempre para os lados de Santa Clara, no Portugal dos Pequeninos (bom pretexto para a mãe a deixar vir acompanhada do irmãozito) ou na Quinta das Lágrimas, precisamente na zona em que morava a sua antecessora, à porta da qual eu tinha obrigatoriamente de passar, sem curiosamente nunca a ter encontrado.

O meu sentimento pela moça não era, contudo suficientemente forte para resistir ao cansaço e monotonia das repetitivas viagens semanais, que a dada altura começaram a rarear, sendo aos poucos trocadas por ardentes e românticas missivas, sobretudo da sua parte, as quais por sua vez se foram tornando mais raras, até que resolvi, com grande desgosto dela, pôr um ponto final naquele inconsequente namoro.

Vim a saber, bastante mais tarde, que a moça acabou por casar com um rapaz lá da terra e morreu de parto, pouco depois. Tão moça que era! Guardo dela uma terna recordação e pouco mais.

Só voltei a Coimbra cerca de quarenta anos depois, altura em que, por várias vezes ali tive de me deslocar, em serviço, a fim de dar apoio à organização de reuniões internacionais organizadas pela minha empresa. Claro que, deambulando sozinho pela cidade, todas as recordações dos tempos ali passados, que eu tanto me empenhara em esquecer, aos poucos, começaram a surgir na minha memória. Primeiro difusas, desfocadas e finalmente com uma nitidês impressionante, como fotografias num tina de revelação, em que as figuras vão aparecendo e ganhando contornos, à medida que o reagente actua.

Em todas as ruas e recantos me parecia ver a Isilda. A partir de determinada altura passei mesmo a procurá-la deliberadamente em tudo quanto era sítio: nos cafés e pastelarias, nos mercados, nas boutiques em todo o lado em que, consoante as horas do dia, havia probabilidades de encontrar uma dona de casa. Sempre que via um vulto de mulher com a sua estatura, cabelo caído pelas costas, pernas que lembrassem as suas, jeito de andar que se assemelhasse ao seu, apressava o passo de forma a ultrapassa-la e espreitar-lhe discretamente ao rosto para conferir se seria o seu.

Esforço baldado. Nunca, entre as centenas de caras bonitas que compulsei, tive a sorte de descortinar a sua. Só depois de incontáveis tentativas frustradas me dei conta do grave erro cronológico que vinha cometendo ao procurar nas mulheres que seguia – todas jovens, claro - o rosto que ela tinha aos vinte anos, quando na verdade ela seria agora uma sexagenária, como eu. A partir dessa tardia conclusão passei a seguir tudo o que fosse mulher, tivesse à volta de sessenta anos e um aspecto que, eventualmente fizesse lembrar o seu, quarenta anos atrás. Confesso que não sei mesmo que iria fazer se a encontrasse. Talvez dizer-lhe “olá, que é feito de ti, como te tem corrido a vida”, e ter com ela a conversa civilizada que não tivemos no final abrupto do nosso romance.

Certo dia, em que pernoitei na cidade, levantei-me cedo e em vez de deambular pela baixa, atravessei a ponte e fui passear para a outra margem do rio. Depois de algumas voltas por aquelas paragens que tão bem conhecia, sentei-me a descansar no banco de uma paragem de autocarros, a meia dúzia de passos do prédio onde ela morava com os pais. Lá estava, mesmo à esquina, lembrando a proa de um navio erguido na embocadura de duas ruas que progressivamente se afastam. Lá estava, no último piso a varanda onde tantas vezes namorámos.

A certa altura, vinda precisamente dos lados do referido prédio, surge uma senhora que, muito cortês, me pede licença e se senta a meu lado.

Tinha mais ou menos a minha idade. Ar simpático, de estatura média, e que delicadamente me deu os bons dias. Vestia de saia e casaco de cor “beige”, um lenço ao pescoço no mesmo tom, sapatos castanhos claros, de salto baixo. Aguardava a passagem de um autocarro que a levasse à baixa onde “ia fazer uma compritas”. Disse-me que morava perto e aproveitei para lhe perguntar se, por acaso, se recordava de um casal com duas filhas jovens (uma delas muito bonita, acrescentei) e um rapazito que, no inicio dos anos cinquenta, morava no prédio e no andar que lhe apontei.

- Não, meu caro senhor, não moro aqui há tantos anos assim nem nada que se pareça. Quem talvez lhe possa dizer alguma coisa é a senhora da papelaria em frente – uma velhota que sempre aqui morou.

Permaneci calado, mas o meu rosto deve ter reflectido o desapontamento, pois a senhora se voltou para mim, e me disse com ar malicioso mas no qual vislumbrei também uma indisfarçável simpatia:
- O meu amigo anda à procura de um amor perdido, não anda? Seja sincero.

Sorri, meio desajeitado e neguei:
- Não minha senhora, é mera curiosidade. Trata-se apenas de umas pessoas que eu conheci há muitos anos e de quem era amigo.

Ela, porém não se deu mostras de ter ficado convencida
-Ná, vejo bem nos seu modos e na sua atitude – só a maneira como se referiu à beleza de uma das jovens - que é de um amor perdido que se trata. E olhe que de amores perdidos, percebo eu.

E sem que eu dissesse mais nada, lendo a expressão de interrogativa surpresa nos meus olhos, começou:

Olhe, nasci numa cidade de um concelho vizinho (cidade que ela nomeou, mas que me escuso de dizer o nome por razões do bom nome da senhora) onde cresci em casa de meus pais, proprietários de uma boa casa comercial e de outros imóveis que constituíam um património assas valioso: estudei em Coimbra onde me formei como professora primária e fui dar aulas lá na terra. Lá me apaixonei por um rapaz muito bonito, e com ele fazia tenções de me casar; só que ele era um simples carteiro – aliás foi numa das frequentes distribuições de correio para a minha residência que nos conhecemos e começámos a namoriscar – e os meus pais tanto fizeram, tanto me infernizaram, tanto me atiraram à cara com outros pretendentes da sua escolha, que eu, por inércia e cobardia, acabei por casar com amigo deles, com casa aberta de ourivesaria, aqui em Coimbra, para onde viemos morar.

O meu marido era um homem generoso e sempre me tratou bem, mas o meu amor carteiro, que eu sabia tinha ficado destroçado com o meu abandono, não me saía do pensamento e tanto que, com o decorrer dos anos, se tornou uma obsessão. Um dia jurei para mim mesma: meu Deus, se o meu marido morrer, esteja onde esteja o meu amor, vou à procurá-lo. Assim foi. O meu marido morreu há cinco anos, descobri que o meu antigo namorado, de quem eu nunca tinha perdido o rasto, se tinha reformado, e que vivia no Porto. Fui à procura dele, trouxe-o comigo, e há três anos que vivemos juntos e somos muito felizes.
E tinha os olhos brilhantes quando acabou de falar.

Fiquei de boca aberta, sem saber o que dizer. E ela rematou, pondo a sua mão, de uma forma que me pareceu carinhosa, na minha que descansava num dos joelhos:

- Como vê, meu amigo, sei do que falo. Não sei porquê, mas pressinto que há na sua vida um caso igual ao meu. Não seja orgulhoso. Só temos a uma vida e não há nada mais importante que um verdadeiro amor.

Neguei terminantemente que houvesse na minha vida algo de parecido com o que ela acabara de contar, mas ela não se convenceu. Chegou entretanto o autocarro que a senhora esperava, despediu-se de mim e já à porta do veículo que a levaria às compras ainda se voltou para trás a recomendar: - Não se esqueça, meu amigo, pense bem no que lhe disse.

E eu, não tendo qualquer autocarro para tomar, ali permaneci, absorto, contemplando o prédio onde provavelmente já não mora ninguém, pensando na determinação da senhora, com todo o aspecto de uma dona de casa recatada, na sua coragem em refazer os fios de uma antiga história de amor que parecia irremediavelmente perdida. Mais do que isso, admirava a simplicidade com que ela se abrira para um desconhecido que provavelmente ( e se calhar por isso mesmo) não mais tornaria a ver.

E de súbito um pensamento malévolo me atormentou: será que a senhora, com tanta determinação, não terá ajudado o marido a ir desta para melhor, antes da hora que o destino lhe tinha reservado? E depois, a avolumar mais a minha estranheza, lembrei-me: “espera, ela não me disse se o carteiro que ela foi buscar ao Porto (“trouxe-o comigo” foi a expressão que ela usou) vivia só ou acompanhado. Será que para ela isso era um pormenor de somenos importância? E no caso de ter companhia como é que ela resolveu a situação? Terá arranjado maneira de a eliminar? Mas logo afastei de mim tão tenebrosas suspeitas, levando-as à conta do meu excessivo apego à leitura de romances policiais, tipo Ruth Rendell, onde gente com o ar mais normal do mundo comete os crimes mais sórdidos por motivos bem fúteis, por vezes. Ainda hoje contudo me interrogo a esse respeito e me inquieto com as dúvidas que aquela extranha conversa deixou no ar.

Pelo sim, pelo não, entretive-me, na altura, a analisar os meus próprios sentimentos e dei graças por eu não ser possuidor da mesma determinação da minha confidente, na procura e recuperação de amores perdidos. No fundo eu estava simplesmente a fazer uma viagem a um tempo feliz da minha vida que coincide (quase) sempre com o tempo da juventude. Era a mim mesmo, afinal, que eu procurava na procura de amores perdidos, de um tempo sem volta.

6.18.2006

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ERRO DE CASTING

Pela tardinha, quando a canícula amaina, vou até à beira do rio. O passeio é curto. Não são mais do que trezentos metros a distância que separa a minha casa do cais, mas sempre dá para desentorpecer as pernas e apanhar um pouco de sol, perdida já agressividade de horas atrás.

Caminho um pouco ao longo do cais; detenho-me vendo os pescadores enrolando sofregamento os carretos; acompanhanho-os na solidária e quase sempre defraudada esperança de ver surgir algum peixito rabejando na ponta do fio; extasio-me com a moldura em contraluz da ponte sobre espelho refulgente das águas; sigo o esvoaçar caprichoso das gaivotas no céu enrubescido do ocaso; distraio-me com o ruído cadenciado de um ou outro rebocador a caminho da outra margem, ou de um cacilheiro que chega, mas logo me canso e acabo por entrar num dos vários cafés que por ali há, por sinal quase sempre o mesmo.

Ali me acomodo um bom pedaço de tempo, diante da incontornável “bica”, que nem sequer preciso de pedir, pois o empregado logo se apressa a servir-ma mal me vê entrar. Comigo levo sempre um jornal, um livro ou umas folhas de papel para escrevinhar algo que me venha à cabeça, mas quase sempre acabo por não ler uma página nem escrever coisa nenhuma. Prefiro ficar a olhar a gente apressada, que sai a correr dos barcos para apanhar o autocarro com destino a uma das várias localidades, que a caminho de Sesimbra ou a caminho da Costa, sem solução de continuidade, se sucedem à beira da estrada.

Os mais novos, porém não tendo que ir comprar um artigo em falta, na mercearia local, ir fazer o jantar, buscar os filhos ao infantário ou cuidar de outros inadiáveis interesses, gostam de ficar por ali, petiscando, bebendo umas imperiais, conversando, namorando principalmente. Há muitos que vêm quase todos os dias. Já os conheço, escuto as suas conversas, participo dos seus anseios, enterneço-me com algumas das suas pieguices, incomodo-me com as suas queixas, enervo-me com as suas zangas. Aprende-se muito ouvindo as conversas dos outros, Ou será isto desculpa para justificar o meu espírito de velho bisbilhoteiro?

Há meses que venho observando um casalinho de namorados. Já me conhecem e cumprimentam-me quando chegam. Um “boa- tarde” apenas, que o tempo se faz pouco para refrescar a goela com uma bebida fresquinha e logo mergulhar em arrufos e carícias de namorados, para quem nada nem ninguém à sua volta parece fazer parte do seu planeta privativo

A partir de determinada altura, contudo, tive a sensação de que o seu relacionamento começou aos poucos a esfriar. Primeiro, saiam abraçados do barco, era abraçados que entravam no café, era abraçados que se sentavam à mesa e era juntinhos, de cabeças encostadas que saboreavam as suas bebidas, por entre risinhos, carícias e olhares apaixonados. A partir de certa altura, o braço dele continuava envolvendo-lhe a cintura enquanto caminhavam, mas o dela permanecia caído ao longo do corpo; depois passaram a entrar sem mostras de contacto físico, sentando-se silenciosos e de olhar distante. Posteriormente percebia-se que ele a questionava e ela, ou se reduzia a um obstinado silêncio, ou lhe respondia num tom seco e algo desabrido.

Aqui há tempos, já nesta fase de indisfarçável dissonância, sentaram se numa mesa geminada com a minha (há várias assim naquele café) e não pude deixar de escutar o que diziam:

- Mas porquê, porquê”, sussurrava ele,”como é que deixaste de gostar de mim, assim, do dia para a noite?”. E ela “moita-carrasco”
- “Porquê “, voltava ele a insistir.

- Não deixei de gostar de ti, já te disse, mas gosto mais da Isabel, estou apaixonada por ela. Ela preenche-me mais. Não te sei explicar...nem a mim própria, quanto mais a ti…

- Não tens vergonha? Apaixonada por uma gaja, quando tens aqui um homem, sem defeito, que te ama e daria tudo por ti?.

E ali ficaram, renhonhó, renhonhó, contrapondo argumentos, ela de cabeça baixa, e ele a insistir na pergunta à qual ela não sabia ou não queria dar resposta. “Porquê, porquê, como podia aquilo acontecido?”.
Às duas por três, como ele não se conformasse nem parasse com as perguntas, ela passou dos monossílabos a que se remetera durante todo o interrogatório a uma resposta definitiva muito categórica:

- Já te disse gosto dela e se não te conformas tanto pior para ti.
Dito isto, levantou-se de rompante, pegou na mala e saiu porta fora.

O rapaz ali ficou, pálido, olhar perdido no vácuo, cotovelos fincados na mesa, cabisbaixo, sem uma palavra. Tive pena dele. Usando do estatuto de respeitabilidade que os cabelos branco me conferem, tentei animá-lo:

- Então meu amigo? Arrufos de namorados, não é? Isso passa, vai ver.
O rapaz precisava absolutamente de desabafar e, tranquilizado pelo meu ar paternal, soltou-se lhe a língua como se de um velho amigo se tratasse:
- Esta gaja! Imagine o senhor que estávamos para casar, tudo corria bem entre nós e de repente sai-me com esta: que se apaixonou por uma fulana e já não quer casar comigo. Já viu uma coisa destas?

- Olhe, meu amigo, sabe que mais. Arranje outra namorada, finja-se desinteressado, desperte nela o espírito de competição, e vai ver que ela volta para si. As mulheres às vezes têm destas reacções.

- Já experimentei isso, tornou o rapaz. Não deu qualquer resultado. Passei várias vezes com outra rapariga, abraçando-a, mesmo em frente dela e a sua reacção foi nula.

- Hum, então a coisa está feia para si. A estratégia terá de ser diferente, Num caso destes só com uma terapia de choque. Diga-me uma coisa: O que é que lhe dói mais? É ela gostar de outra pessoa ou o facto de o trocar por uma mulher?

- Pois é aí é que está o principal problema. Aceitaria melhor se ela me tivesse trocado por outro homem. Agora por uma mulher… não sei.. é mais humilhante para mim

- Pois bem, finja que também você se passou para o lado de lá e que “está saindo”, como vocês dizem, com um fulano qualquer, por quem se apaixonou. Não me admiraria nada que ela, ferida também no seu amor próprio, voltasse a interessar-se por si.

O rapaz, fez uma cara de espanto - porventura não maior do que aquele que eu estava sentindo em relação a mim mesmo pelo estapafúrdio conselho que acabara de dar - e olhou-me com ar desconfiado e hostil.Muito provavelmente deve ter pensado que eu seria larilas e que as minha palavras envolviam uma proposta de aliciamento. A apreciação que fez do meu aspecto de venerável ancião deve tê-lo sossegado a respeito das minhas intenções ou tendências. Ficou um breve instante silencioso a digerir o inédito da situação, mas logo retorquiu com ar agastado:

- Que ideia! O senhor deve estar a gozar comigo, só pode ser. Olhe que eu sou muito homem, ouviu? Nem a brincar me diga uma coisa dessas. Até porque, se ela está embeiçada lá pela outra, não iria mudar de atitude por eu andar metido com um gajo.

- Eu não estaria tão seguro disso. As mulheres não reagem exactamente como nós. Ela estará embeiçada, como você diz, por alguém do mesmo sexo, mas ela não lhe disse que não gostava de si, apenas lhe disse que gostava “mais” da outra. As mulheres porém têm em muito apreço a virilidade de um homem e sabem em que conta nós próprios a temos também. Ora, a sua namorada, que ainda gosta de si, não se esqueça, iria ficar muito mortificada se soubesse que, por causa dela, você estava em vias de abdicar de um atributo que ela também aprecia em si e, nem que fosse por uma espécie de instinto maternal – que a mulher tem sempre pelo homem que ama - ela poderia muito bem abdicar da paixão que agora sente pela amiga para vir em seu socorro e reatar o namoro que agora parece, de todo, não lhe interessar.

- Olhe meu caro senhor, vou-me mas é embora que o senhor já me está a atrofiar a mona.

- Vá, vá, mas se está interessado em recuperar a moça, pense no que eu lhe disse.

E o rapaz lá saiu porta fora, cara fechada, sem sequer se despedir

Durante várias semanas não apareceram pelo café. De vez em quando via-os passar, nunca juntos nem, desembarcados do mesmo barco, ao longe, a correr para o autocarro. De repente, um belo, dia, lá apareceram os dois, muito agarradinhos, como se nada nunca os tivesse separado. O rapaz viu-me ao fundo e sorriu-me, Sentaram-se numa mesa afastada, e de lá, de forma discreta e ar sorridente, levantou para mim o polegar no gesto convencional de que estava tudo OK.

A certa altura, a pretexto de ir à casa de banho, ou porque tivesse mesmo necessidade de a utilizar, parou junto da minha mesa, com um ar radiante e confidenciou-me.

- O senhor tinha razão, segui o seu conselho e olhe a prova está à vista. Aí está ela, caidinha por mim, como se nada se tivesse passado. Estamos de novo a pensar em casar. Devo-o a si. Obrigado.

De volta para o seu lugar ainda me atirou uma piscadela de olho cúmplice. E lá ficaram os dois arrulhando ternuras de um amor renovado. É o que se chama curar a sarna com o pelo do mesmo animal, pensei com os meus botões e muito ufano com o resultado dos meus conhecimentos psicológicos de velho convencido.

Novas semanas se passaram sem voltar a vê-los, até que, um dia, , na volta de um mais alargado passeio pelo cais, foi logo à saída do barco que me cruzei com ele. Deu-me a impressão que me viu mas ia a tentar passar sem me falar. Como a minha curiosidade é maior do que a minha discrição, interpelei-o:

- Então, então, não vos tenho visto, Como vai o namoro?

- Acabámos com tudo, respondeu com um ar atrapalhado e estugando o passo, como quem não quer muita conversa.

- Mas ia tudo tão bem, admirei-me eu

- Pois ia, mas sabe, cheguei à conclusão de que gosto mais do Fernando. Que é que eu posso fazer?

E lá foi a correr para apanhar o autocarro. Ali fiquei embasbacado e com a desagradável sensação de ter desencadeado sentimentos que não estava mais na minha mão controlar. A minha intervenção como consultor sentimental tinha sido um puro desastre.

Já nem entrei no café. A hora era um pouco mais tardia, o movimento de passageiros saindo dos barcos era agora diminuto, o sol mergulhava ao longe no rio, por detrás da ponte e, antes que de todo desaparecesse, apressei-me a ir para casa, comer a sopa.
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6.10.2006

GRAVATAS & BRAVATAS...

Um jovem que leia hoje esta ordem de serviço, vai por certo esbugalhar os olhos de espanto. O quê? não poder trabalhar em mangas de camisa, ou sem gravata, ou arregaçar as mangas, sequer? Vestir um casaquinho, de cotim, ou de alpaca ou de outra droga qualquer, como diz o texto?

Pois era mesmo assim, meus caros. E não se pense que, pelo menos até ao 25 de Abril, a situação se tenha alterado por aí além. Já quase a rondar os anos setenta ainda eu travava guerras com os meus chefes por causa do uso da famigerada gravata, Isto apesar de trabalhar num velho casarão sem contacto, sequer, com o público.

Lembro-me que um desses chefes, na ultima metade dos anos cinquenta, muito se mortificava por não conseguir que eu acatasse a ordem de pôr o bendito trapo à volta do pescoço ou vestir o casaco, quando não me apetecesse fazê-lo. O bom do homem (porque era uma excelente criatura, diga-se, pois se fosse velhaco, teria participado de mim superiormente, como lhe recomendavam ordens de serviço com esta) espelhava mesmo uma indisfarçável expressão de sofrimento de cada vez que encarava comigo desprovido do sacrossanto atavio. Para ele, o trapo em questão era um dos símbolos maiores da iconografia burocrática - religião de que era fiel devoto e na qual assentava toda a sua longa carreira de submisso manga de alpaca.

Esta da “manga de alpaca”, muito provavelmente também nada dirá a um jovem de hoje. Se o uso de casaco durante as horas de serviço era obrigatório, o das mangas de alpaca, esse, não havia qualquer ordem de serviço que o impusesse. Só que os vencimentos eram baixos, a roupa era cara, o país era miserabilista e tacanho, a começar pelo “botas” que fazia o elogio da pobreza como se fora uma virtude. Assim, os empregados de escritório, para poupar os casacos e os punhos das camisas, usavam umas mangas de alpaca ou de merino, apertadas com um elástico em cada uma das extremidades, que enfiavam nos braços, desde o punho até um pouco além do cotovelo, só as tirando quando, ao fim da tarde, abandonavam a Repartição

Daí que aos empregados de escritório, especialmente àqueles que mais religiosamente seguissem todas estas normas, fosse dado o desdenhoso epíteto de “mangas de alpaca.

A princípio, o Chefe de que venho falando, e que designarei por C. dos Santos, ainda tentava, primeiro com blandiciosas palavras e posteriormente num tom mais duro, levar-me a cumprir com o preceito do uso da gravata, mas sempre que abordava o assunto eu lhe contrapunha que ninguém tinha nada a ver com o tipo de vestuário que eu usava, desde que o mesmo não trouxesse prejuízo a quem quer que fosse e que se eu cedesse a esse tipo de exigência, às duas por três também teria, provavelmente, de dar conta de qual o tipo de roupa interior que usava. Se vestia ceroulas ou cuecas, ou qual a cor destas, se usava peúgas ou meia até ao joelho, se usava camisola interior ou não, se esta era de cavas, meia manga ou manga inteira, e por aí adiante. Face a estas perguntas o bom do senhor C. dos Santos embatucava convencendo-se que eu era meio maluco, pois a maioria dos empregados aceitava sem reclamar o uso da gravata, ou reduzia-se a um prudente silêncio quando admoestada por contravenção dos “costumes de civilidade e compostura” citados na ordem de serviço atrás referida. Aos poucos, porém, considerando-me um caso perdido, foi aceitando com sofredora resignação o meu arreigado apego à “prática exótica e novíssima” de dispensar o honestíssimo e pudico uso da gravata.

Entretanto chegou o ano de 1960 e – coisa que não deve ter causado espanto nenhum ao senhor C. dos Santos, notório que era o meu perigoso desajustamento às regras do bom comportamento social – a Pide resolveu mimosear-me, durante três meses com a sua reconhecida hospitalidade em Aljube-sur-mer, uma das suas conhecidas estâncias de repouso, ali para os lados da Sé.

Quando voltei à Empresa, o Chefe de Serviço consentiu que eu começasse a trabalhar mas que deveria ir à Pide., o mais breve possível, solicitar uma declaração em como aquela entidade policial não via inconveniente nisso. Claro que “fui aos arames” com a exigência e neguei-me terminantemente a solicitar qualquer declaração a quem me tinha vindo buscar e me soltara, sem qualquer explicação. Quem tivesse dúvidas que fosse lá esclarecê-las. Foi o que devem ter feito pois não mais me voltou a ser pedida qualquer informação por parte da Pide. Este é um exemplo clássico de como as pessoas e os organismos se punham de cócoras diante da polícia de Salazar e iam por vezes mais longe do que ela, com exigências suplementares que escapavam ao seu controlo. É assim o fascismo.

Em contrapartida, poucos dias, depois achei-me transferido, sem qualquer explicação para outro sector onde se efectuava um dos serviços mais chatos que alguém possa imaginar. Não me lembro do Nome da Repartição mas a função dos empregados, sentados em frente de altos ficheiros metálicos, de um verde cor de merda, dos quais se puxavam umas estreitas gavetas contendo cada uma delas uma ficha, era registar, hora após hora, dia após dia as entradas e saídas de material das oficinas, tantos parafusos Rxk4, tantas porcas Pg7, por exemplo, mantendo à vista o saldo existente, quer em quantidades, quer em valor monetário. Enfim, uma seca e um exercício de paciência que só podia ter sido inventada pelo próprio Belzebu para punir no infernos aos impacientes da terra.

Ainda por cima, o Chefe, o senhor F.Silva tinha fama de ser frio, austero, e pouco dado a permitir que os seus súbditos se atrevessem a tomar liberdades que ele não achasse consentâneas com o seu disciplinado rigor. Quando entrei na sala - também eu precedido da fama de ser uma pessoa difícil, rebelde e ainda por cima acabado de sair da “grelha” o que, tendo sido pelos motivos que foi me dava ao mesmo tempo uma aura de prestígio - o senhor Silva levantou-se, veio ao meu encontro de mão estendida e preparava-se para a saudação de boas vindas da praxe ao novo funcionário. Seja bem-vindo senhor Gouveia, muito prazer…. Interrompi-o de pronto: Senhor Silva, que fique bem claro, eu não pedi para vir para aqui e não tenho prazer nenhum em estar cá. O homem mudou de cor. Deixou cair a mão que me havia estendido e resmungou: Pronto, pronto, também não pedi para o senhor vir para cá… a sua secretária é aquela.

O sr. Silva era alto, bastante alto mesmo, seco de carnes, olhos de um azul aguado, mortiços, que faziam lembrar os de um cachucho com largos meses de frigorífico. Os funcionários temiam-no pelo seu feitio ríspido e exigente. Ao contrário da Repartição de onde vinha, desta ninguém se ausentava sem dar uma satisfação ao chefe. Eu porém ignorei esse procedimento de aceitação tácita entre eles.
Entrava e saia sem tugir nem mugir, como sói dizer-se. Certa vez que, reentrando no escritório, passei mesmo rentinho à sua secretária sem a mínima explicação, ouvio-o desabafar entre dentes para o sub-chefe, sentado na secretária ao lado da sua: "Este homem! Eu até tenho medo de lhe dizer alguma coisa! "

No fundo, no fundo, o sr Silva era bom homem. Aliás era quase tudo boa gente. Mau, mau era o sistema político que deformava as mentalidades e obrigava as pessoas, mesmo sem disso se aperceberem, a alinhar o passo pela mediocridade, cinzentismo, autoritarismo do regime que a tudo e a todos sufocava. O mau feitio do senhor Silva, vim a descobri-lo, devia-se sobretudo ao facto de ser uma pessoa doente, enfermiça, e, mais do isso, hipocondríaco. Como ele sofresse muito de asma, confidenciei-lhe que também eu, em mais novo, tinha sofrido bastante com aquele mal e sabia bem avaliar o mau estar que aquela doença provoca. Ora! ficámos irmãos de infortúnio, embora na altura (tinha então 30 anos) não sofresse de coisa nenhuma.

Doenças eram, pois, o tema favorito do Senhor Silva. Eu apanhei-lhe o fraco e o ferrabrás que era transformou-se num pêra-doce para mim – com o que todos, afinal beneficiaram. Quando saía do escritório, dirigia-lhe apenas, de longe, um leve aceno de cabeça, que ele fazia o favor de interpretar como um pedido de autorização. Gravata, continuei a ignora-la, nunca ele me chamando a atenção para isso, apesar de praticamente todos os outros se apresentarem sempre com o sagrado trapinho à volta do pescoço, bem ajustado ao colarinho, pontas direitinhas com ajuda dos esticadores de mica que então era uso meterem-se na bainha das ditas. Quem não se lembra dos vendedores na Rua Barros Queiroz gritando aos ouvidos dos transeuntes o repetido pregão “esticadores p´ró colarinho”,, meia dúzia 10 tostões” seguido de outro em voz sussurrada “camisas de Vénus “, é preciso?”

A verdade é que, apesar das boas relações que acabei por ter com o senhor Silva, o serviço era tão chato que, logo que pude me pirei de lá, tendo sido transferido, não para uma Repartição mas para uma simples secção autónoma, com apenas 3 empregados além do chefe, Jaime Cecílio de sua graça. (deste digo claramente o nome, pois era uma pessoa muito decente e prafrentex, como agora se diz). Apesar de ele próprio se apresentar sempre de gravata, nunca faz o mínimo reparo ao facto de eu e o outro empregado (o terceiro era uma senhora), não a usarmos.

Por volta de 1965, essa secção deixou de ser autónoma, passando a ficar integrada numa Repartição, cujo chefe era, nem mais nem menos, o tal senhor C. dos Santos, do qual falei no início desta crónica e onde me encontrava em 1959, altura em que a Pide me veio buscar..

Mal tinha acabado de me instalar, o dito senhor chamou-me de lado, e com ar sumamente constrangido e tom quase implorativo assim falou: Senhor Gouveia, tenho aqui um problema, para o qual peço a sua compreensão. O Zé Martins (era um colega da minha idade mas com uma ligação de amizade e muita dependência em relação ao chefe) também gosta muito de andar sem gravata, mas consegui que não esteja ao serviço sem ela. Agora, chega você, desgravatado, e veja a minha situação! Se você persistir em andar sem gravata tenho que dar o dito por não dito e dizer-lhe a ele, que a tire também. Que é que você acha que devo fazer? Tão implorativo, como já referi era o seu tom, que a única resposta que ele esperava de mim seria uma conciliatória renúncia da minha parte à teimosia em não usar gravata.

Confesso que balancei um pouco. Mas princípios são princípios e disse apenas Senhor C. dos Santos, por favor não faça nada. Eu vou continuar sem gravata e deixe ver como é que o Zé Martins reage. Ou ele acaba por tirar também a dele e o senhor não vai poder fazer nada, ou ele se faz desentendido e continua a acatar as suas ordens.
- Vai ser o diabo, vai ser o diabo, concluiu o senhor Santos, afastando-se desolado, a coçar a cabeça.

O Zé Martins não teve qualquer reacção. Eu continuei sem gravata e ele com ela. Entretanto o “botas” caiu da cadeira, o senhor Santos reformou-se e aos poucos, todos os que não gostavam do trapo ao pescoço, foram-no deixando em casa. Por essa altura, vigorando ainda a chamada semana inglesa, - em que aos sábados apenas se trabalhava da parte da manhã - a rapaziada tinha adquirido o hábito de aproveitar o resto do dia rumando para uma das praias da Linha, sobretudo Santo Amaro. Assim nessa manhãs os escritórios passaram a ter um aspecto mais colorido com um bom número de funcionários ostentando camisas de fantasia de varias cores, colarinhos bem abertos e mangas curtas. As mentalidades tinham-se transformado e libertado de algumas das imposições que o sinistro regime tinha imposto a toda a sociedade portuguesa.
Só faltava a liberdade política. Essa chegou com o 25 de Abril, mas o povo, já tinha feito quase tudo.

Moral da história: os fascismos não se alimentam apenas da repressão física, mas também, e à vezes principalmente, de medos irracionais, de suspeições , de reverências voluntárias, de submissões não solicitadas de delações não pedidas. O espírito de big-brother paira sobre toda a sociedade, como um obsessão colectiva, sem precisar, por vezes de se impor, nem sequer pela presença dos seus guardiões. Em contrapartida, a resistência, pode ser feita através do que parecem ser pequenos detalhes sem importância: uma recusa, uma não aceitação, uma afirmação de personalidade contra a corrente do geralmente aceite e, sobretudo, contra normas impostas. Confesso até, que usar gravata nem é coisa que me incomode por aí além e tanto assim que, agora que estou reformado, que ninguém me obriga a usa-la e que até pouca gente a usa, de vez em quando, dá-me na mona e engravato-me. Porque quero.

Aliás, esta “guerrinha” da gravata, apenas falo nela, porque veio a talho de foice a propósito da ordem de serviço acima mencionada, mas muitas outras “guerrinhas” houve que eu tive de travar ao longo da minha vida profissional. Tantas que dariam lugar a outra tantas crónicas. Algumas vezes ouvi de outros colegas frases como esta: Eh pá não sejas parvo, não vale a pena arranjar complicações por uma coisa tão sem importância. Só que é de cedência em em cedência que os regimes autoritários se vão impondo. Vezes sem conta ouvi também murmurar nas costas do meu Irmão José Gouveia (quatro vezes preso pela Pide e enlouquecido numa dessas vezes) “Este gajo é um grande parvo, com uma vida boa que tem a sacrificar-se por ideias dos quais nunca vai ter qualquer benefício”.

E não é que tinham razão estas espertísimas pessoas? É verdade, mas são os “pequenos parvos” destas pequenas “guerrinhas” e os “grandes parvos” como o meu irmão (felizmente que parvos destes tem havido sempre, ao longo dos séculos) que dedicando e sacrificando a própria vida na luta pelos seus ideais, impulsionam a penosa marcha da humanidade contra o obscurantismo e pela conquista dos direitos e liberdades que dão sentido à dignidade do ser humano.

E tudo isto a propósito de gravatas? Pois é, gravatas. Quem diria?!