ESCRITOS OUTONAIS

5.27.2006

A VELHA SENHORA DA MORTE FELIZ


Naquele dia, 18 de Abril de 2001, dona Gabriela acordou excelentemente bem disposta. O sol, espreitando pela gelosia. meio corrida, anunciava um dia luminoso, um daqueles dias primaveris que reconfortam a alma e despertam, numa pessoa da sua idade, um renovado gosto de viver. Nos últimos meses tinha andado esquisita, talvez por efeitos do tempo que, naquele ano se tinha revelado particularmente chuvoso e incerto, nada bom para os seus ossos nem para o seu bom humor.

Mas naquele dia estava tudo bem. Não sentia dores nas articulações e o humor não podia ser melhor. É que, naquele dia, comemorava as suas bodas de ouro de casamento. Isto é, comemoraria, se o seu amado Frederico não se tivesse finado trinta anos antes. Mas datas são datas e a verdade é que, apesar de todos os últimos anos de solidão, se completavam cinquenta anos desde a data do seu casamento e nunca essa data deixara de ser lembrada e evocada, com mais carinho ainda desde a morte do marido.

Foi enlevada em tais pensamentos que dona Gabriela se levantou e se dirigiu à janela para levantar por completo a entreaberta gelosia. Tal como pensava, estava um dia maravilhoso, como se Deus lho tivesse enviado expressamente para a acompanhar na sua solitária celebração.


Lá dentro o relógio da sala acabava de dar as oito. Tinha de se apressar, que os seus movimentos já não eram como dantes e às nove o padre ia começar a missa que encomendou por alma do seu amado marido. Dirigiu-se à cómoda, de onde retirou a roupa interior novinha, guardada expressamente para este dia e dirigiu-se à casa de banho. Felizmente que o seu Frederico (pensava em tudo aquele querido) tinha trocado a banheira por uma base de chuveiro, senão teria agora muita dificuldade em levantar a perna para entrar na banheira. Ali tomou um duche bem quentinho.

Enquanto se limpava e vestia olhou-se no espelho. Onde estavam agora as curvas sinuosas, as nádegas rijas os seios firmes que o Frederico tanto apreciava e que ela tanto gostava que ele explorasse com os dedos suaves ou com a língua húmida e irrequieta? Aspergiu o corpo com uma suave água de colónia da mesma qualidade e marca que de que ele gostava e começou a vestir lentamente a roupa interior com um suspiro profundo que era, ao mesmo tempo, saudade do marido e saudade de si mesma – da Gaby esbelta e sensual que fora. Ai ai!

Acabou de se vestir no quarto. Um fato preto de saia e casaco, e uma blusinha creme que tinha deixado de véspera nas costas de uma cadeira, meias e sapatos pretos, de meio salto, a condizer. Na cabeça colocou uma finíssima mantilha de rendas, pegou no livro de orações e na malinha e saiu para a rua, onde já a esperavam as vizinhas, a dona Rita e a dona Carlota.

Entraram na cafetaria da esquina para tomar um galão e um queque. Convidou as vizinhas mas elas já tinham tomado o pequeno almoço. Melhor assim, que menos se demoraram. Quando chegaram à igreja, logo ali pertinho, já o padre subia para o altar para iniciar a missa., que anunciou, como lhe competia ser por alma e eterno repouso do falecido irmão Frederico Fernandes Ferreira. Bem longo ia já o seu repouso pois já lá iam trinta anos que Deus o chamara a si, na força da vida, pois sendo mais novo cinco anos, tinha apenas quarenta na data do seu falecimento. Deus não tinha sido justo com ele nem com ela, pensava dona Gabriela, meio absorta, enquanto o oficiante ia recitando em voz monocórdica as palavras decoradas que a liturgia impunha. Agora é tudo em português, não tem graça nenhuma. Quando era em latim parece que impunha mais respeito, mais adequado para falar com Deus, ia pensando dona Gabriela. Mas por esta altura já a missa estava a chegar ao fim, que o raio do padre, parece que ia apagar algum fogo, tal a pressa em se despachar daquela incumbência.

De regresso a casa, despediu-se das vizinhas à porta da rua, não sem antes lhes recomendar: então não se esqueçam vizinhas que logo, por volta das cinco, espero pelas senhoras para tomarmos um lanchezinho juntas. Lá estaremos, lá estaremos responderam as duas em coro.

A senhora Maria, a empregada, que vinha todos os dia tratar-lhe da lida da casa e preparar-lhe as refeições, já tinha chegado, entretanto, tinha feito a cama, arrumado o quarto e preparava-se agora para fazer o almoço, que a patroa fizera questão de ser constituído pela ementa preferida do falecido: uma sopinha de grão e bacalhau-à-gomes-de-sá, com bacalhau de primeira, à lascas, muita cebola, muito ovo e muito azeite, azeitonas, salsa, tudo muito apuradinho, tostadinho por cima, tal como ele gostava. Para ela ele continuava presente, como se tivesse ido à mercearia da esquina comprar cigarros e logo, logo, estivesse a meter a chave à porta, com o seu sorriso sedutor. Dona Gabriela foi entretanto regar as flores da varanda, suspirando, como sempre, por aquela roseira que dava umas rosas de um vermelho escuro de que o marido plantara, que tanto apreciava e que ela, por falta de conhecimentos de jardinagem, acabara por deixar morrer. Terminada a rega, sentou-se num maple, junto à janela e passou o resto da manhã, a ler, pela décima milionésima vez, o Orgulho e Preconceito da Jane Austen, que era o livro que lia quando o Frederico, meteu conversa com ela no eléctrico da carreira 28.

Ai, ai! Tinha ela 28 anos e ele 23. Filha única, bonita, prendada e razoavelmente rica, nunca tinha namorado. Os pais eram proprietários de uma retrosaria na Graça onde sempre moraram e ela pouco saía à rua como acontecia com a maior parte das raparigas do seu tempo. Acabada a instrução primária numa escola da vizinhança, a sua vida decorria entre as quatro paredes, lendo fazendo renda, ajudando a mãe na lida da casa. Aos domingos ia com frequência ao cinema, sobretudo ao ao Rex ou ao Lis, mas sempre acompanhada dos pais e até àquele dia nenhum rapaz se chegara junto dela. Vá lá saber-se porquê? Conhecia outras moças, menos bonitas do que ela, mas parecia terem mel, visto que os rapazes zumbiam como moscas à sua volta. Talvez o seu ar sisudo e o seu olhar recatado afastassem os eventuais pretendentes. As poucas vezes que saía de casa sem ser para ir à retrosaria ou comprar as “Modas e Bordados” no quiosque próximo, era para, a pedido do pai, ir de eléctrico à baixa, comprar umas meadas de lã ou qualquer outro artigo que se tivesse acabado na loja, de forma a servir uma cliente mais apressada, enquanto não vinha a remessa encomendada para reposição do stock.

Esta era uma dessas vezes. Foi nesse dia que aquele moço sentado a seu lado, no eléctrico, meteu conversa com ela. Ela nunca tinha reparado nele, mas ele já a conhecia de a ver passar na rua com os pais e só nunca tinha falado com ela por falta de oportunidade e algum acanhamento, diga-se. Chamava-se Frederico, tinha 22 anos, possuía o Curso Industrial e era mecânico de automóveis na FIAT. Era um bonito rapaz, meio tímido e como ela e nunca tinha namorado. Simpatizava com ela e pediu-lhe se queria namorar com ele. O que tem que acontecer mais tarde ou mais cedo acontece. Ela teve a certeza que tinha chegado a sua vez.

Os pais oferecerem alguma resistência, sobretudo o pai que gostaria que a filha casasse, talvez com o filho de um comerciante como ele, alguém mais do seu nível, mas foi a mãe com o bom senso de todas as mães e que entretanto já se tinha infirmado de tudo quanto ao rapaz dizia respeito, que convenceu o marido de que se tratava de um bom moço, modesto, bonito até, que não ganhava mal, que de qualquer modo eles tinham amealhado dinheiro suficiente para pôr a filha a salvo de qualquer percalço e sobretudo que a rapariga estava mais do que em idade de casar não podendo deixar escapar esta ocasião. Este último argumento foi o que mais pesou na decisão pois, velhos e achacados os dois, não queriam partir sem deixar a sua filha única sem um rumo de vida.

Menos de uma ano depois estavam casados e a residir nesta mesma casa onde hoje ela mora e que os pais compraram expressamente para eles. E como foram felizes ali! Ele era uma jóia de rapaz, tratava-o como se fosse uma rainha, era amável, bem humorado, gentil, fez-lhe despertar uma sensualidade que ela de todo ignorava e ensinou-lhe coisas sobre o amor que nunca sonhou existirem.. Só lamenta nunca ter podido dar-lhe um filho que ele tanto ansiava, mas nunca se queixou nem lhe cobrou nada por essa lacuna.

Foram 17 anos. Dezassete anos apenas de vida em comum, mas felizes, felizes, como pouca gente - acha dona Gabriela - se pode gabar de ter. O maldito cancro, porém, que subitamente se manifestou, em seis meses apenas pôs termo ao estado de graça que era a sua vida em comum.

No meio destes pensamentos a sonolência venceu-a e quando a empregada a veio chamar para almoçar encontrou-a de cabeça pendida e o livro caído no chão. Almoçaram juntas. A comida estava uma delícia, como o Frederico teria gostado. Entreteve-se depois a ver um pouco de televisão, deitou-se um pouco para descansar e às 17 horas em ponta lá estavam a vizinhas para o combinado chazinho. Claro que não era só o chá. Havia torradas, geleia de marmelo, compota de maçã, petits-fours e scones. que a senhora Maria, hábil no manejar do fogão e na justa mistura dos necessários ingredientes, tinha preparado de uma forma que fazia soltar exclamações de prazer e bastos elogios às velhas senhoras. Durante largo tempo ficaram bebericando, e dando largas à sua conhecida apetência por guloseimas e à sua infatigável veia de conversadoras, evocando tempos felizes de juventudes longínquas e de prazeres não mais repetidos mas jamais olvidados.

De súbito, Dona Gabriela lembrou-se que era altura de abrir, para beber ou deitar fora talvez, se fosse caso disso, uma das garrafas de ginjinha preparada ainda pelo Frederico e que guardara religiosamente, deitada na garrafeira, para uma ocasião especial Ora hoje era uma ocasião mais do que especial. Pediu à Senhora Maria para a ir buscar e abrir. Estava óptima, Docinha, docinha e espessa que parecia xarope. Todas se serviram e as vizinhas propuseram um brinde à saúde da dona da casa. E depois desse outro aos cinquenta anos do seu casamento e outro em especial à memória do falecido Frederico outro ainda já nem sabiam a quê, tudo isto no meio de risadinhas histéricas e despropositadas. Entretanto começou a anoitecer e todas concordaram que era altura de acabar, pois a cabeça lhes começava andar à roda

Ficando sozinha, dona Gabriela, bebericou ainda mais dois ou três copinhos da saborosa bebida. A senhora Maria bem lhe pedia para não beber mais, que se ia sentir mal, mas ela sentia-se tão feliz, tão solta, como se voasse numa nuvem de algodão. Por fim, levantou-se, meio a cambalear e pediu à empregada que a ajudasse a meter na cama. Teimou contudo que não queria deitar-se, pois não queria adormecer ainda. Ficou sentada na cama recostada num almofadão, olhado a enorme fotografia do casamento, pendurada na parede mesmo em frente da cama.. Antes de se ir embora a senhora Maria perguntou se precisava de alguma coisa, se ficava bem. Que sim que estava tudo bem, que, viesse na manhã seguinte às nove, como de costume

E ali ficou, sozinha, olhando o retrato. Lá estava no seu lindíssimo vestido de noiva com uma cauda enorme, segurando entre as mãos um lindo bouquet e o Frederico a segurar-lhe delicadamente o braço, alto, elegante, bonito, no seu fato preto com leves risquinhas brancas, olhando-a com ares apaixonados. E a cabeça a andar-lhe à roda, à roda, que a ginjinha era doce mas forte, forte, agora é que se dava conta, e o retrato como que ganhava vida e já não era mais um retrato, parecia tudo real, como fora naquele dia há quantos anos? Não, não podiam ser tantos... e a cabeça à roda. à roda... e foi então que o Frederico saiu da fotografia, alto bonito sedutor, com uma rosa igualzinha à da roseira que ela deixara secar e caminhou para ela e lha ofereceu e a beijou e despiu, lentamente, como costumava fazer; e também ele se despiu; ela viu-se reflectida no espelho do roupeiro e viu-se nova, os seios durinhos, durinhos, que ele beijava com ternura, e as nádegas firmes como dantes; e ele forte, másculo, belo como o vira na noite de núpcias; e ele a tomou nos braços fortes e, como na noite de núpcias, os seus corpos se fundiram; e ela se sentiu desfalecer; e a cama começou a ficar longe, cada vez mais longe… até que, nos braços dele, subindo, subindo sempre, por entre nuvens branquinhas como algodão, de todo desapareceram e só restava um céu azulinho, luminoso, sem qualquer sombra de nuvem, como ela sempre imaginou que fosse o Paraíso.

Na manhã seguinte, quando a senhora Maria chegou foi dar com ela morta, deitada de costas, destapada, completamente despida, pose de voluptuoso abandono, com um estranho sorriso a iluminar-lhe o rosto e com um inexplicável ar de felicidade que não dava para acreditar. Nas mãos, uma rosa igualzinha às que a dona Gabriela passava os dias a descrever-lhe como sendo daquela roseira que o seu marido plantara e que ela lamentavelmente deixara morrer. Rosa essa que, tinha a certeza, não existia, quando na véspera tinha deixado a patroa sentada na cama olhando o retrato do seu casamento, como fazia todas as noites, e que exalava um perfume como nunca tinha sentido e que parecia mesmo não ser deste mundo.

Os homens da agência funerária que vieram preparar o corpo para o funeral, acharam que não ficava bem uma morta com uma expressão de tão irradiante felicidade. Sentiam-se mesmo ofendidos na austera dignidade da sua profissão. Que diabo, um morto que se preze, tem que ir com um ar grave e sisudo!
E ainda por cima aquele cheiro penetrante da rosa, nada consentâneo com o cheiro a morte tão do seu conhecimento. Tentaram pôr fim a tal afronta atando-lhe um lenço da ponta queixo ao alto da cabeça, mas sem resultado. Dona Gabriela, levou mesmo aquele sorriso para a cova com grande espanto das vizinhas (houve muitas que vieram só por terem ouvido falar do inusitado sorriso da falecida) e enorme estupefacção do padre, que jurava a pés juntos nunca ter visto uma coisa assim.

Cinco anos se passaram. O caso da morta sorridente permanece ainda na memória de vizinhos e paroquianos. E como as coisas contadas e recontadas tendem sempre a levar aumentos e acrescentos é hoje voz corrente, entre as beatas assíduas da igreja que dona Gabriela frequentava, que a senhora terá morrido em odor de santidade, que a rosa terá sido deixada por algum anjo que Deus tenha enviado para a assistir nos últimos momentos e que o perfume só podia provir das alturas celestiais de onde o anjo descera. Já há mesmo quem, com o pároco à frente, mova influências junto das autoridades eclesiásticas para iniciarem o respectivo processo de beatificação, e quiçá futura santificação, havendo sugestões para que o seu nome canónico seja Santa Gabriela do Divino Sorriso.

Por mim, acho muito bem. E só queria viver o tempo suficiente para poder assistir à entronização desta santa num altar da minha paróquia, onde certamente seria visto como um dos mais assíduos e fieis devotos.



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se gostou da minha crónica "Peúgas Brancas,"
ouça essa mesma crónica
lida pela voz inconfundível de Luís Gaspar em:
http://www.estudioraposa.com/
"Lugar aos Outros 04"

5.20.2006

TEMPO DE CINECLUBES



Em fins da década de cinquenta, recém-casados - eu com 28 anos e a Adelina com 21 - entrámos juntos para sócios do Cineclube Imagem, que frequentámos durante vários anos e onde tivemos ocasião de assistir a filmes de grande qualidade e, sobretudo, ler e ouvir críticas sobre tais filmes, sobre a sua estética e a estética do cinema em geral e, principalmente, a sua influência como veículo cultural por um lado, e instrumento de repressão por outro.

É evidente que o governo salazarista não morria de amores pelos cineclubes nem por quaisquer outras iniciativas que cheirassem a cultura, fora da rédea curta das suas próprias bafientas instituições. Não era Goebles, um dos seus émulos da Alemanha nazi, que dizia que quando ouvia falar em cultura puxava logo da pistola?

Pois o Goebles caricatural e provinciano cá do sítio, tudo fez para abafar os cineclubes logo à nascença. Só devido à pertinácia e coragem de alguns carolas, especialmente do Cineclube do Porto – o primeiro a aparecer em Portugal, em 1945, logo a seguir, portanto, à derrota do nazismo pelos aliados - o movimento cine clubista resistiu à repressão que sobre ele se abateu e, resistindo cresceu.

Quando a ele aderimos, já estava amplamente difundido em todo o território nacional, com clubes a funcionar em praticamente todas as cidades e algumas vilas. Em Lisboa, de que eu tenha conhecimento (estou a escrever de memória e ao fluir da pena, sim, porque muito embora seja essa a realidade, não dá muito jeito dizer “ao fluir do teclado”) havia, pelo menos, quatro: O Cineclube Imagem, o ABC- Cineclube, O Cineclube Católico e o Cineclube Universitário.

O Imagem era, porém, o que, ideologicamente se situava mais à esquerda, não tendo sido por acaso que foi ele e não outro o objecto da nossa escolha. Na verdade, grande parte dos seus sucessivos dirigentes e muitos dos associados eram membros, simpatizantes ou, pelo menos, “compagnons de route” do Partido Comunista.

Quem nos apresentou a ficha de inscrição foi o Vasco Granja. Lembram-se do homem que, sendo gago, falava pelos cotovelos, apresentando na RTP um programa de filmes de animação que faziam as delícias da garotada (e não só) e que foi um dos que mais tempo durou na história da televisão Portuguesa? Pois foi esse mesmo. Trabalhava ele então na Tabacaria Travassos, no Rossio e era um dos dirigentes do Imagem.

Aliás, pela sua Direcção passaram muitos outros nomes que depois se haviam de notabilizar em vários ramos da cultura, especialmente, claro está, como cineastas, tendo alguns destes adquirido ou consolidado na vivência do Clube o gosto e o incentivo para se lançarem na profissão. Destaco de entre esses dirigentes os nomes de que me recordo: os cineastas José Fonseca e Costa, José Ernesto de Sousa, José Vaz Pereira, Henrique Espírito Santo, Machado da Luz e António Escudeiro, e ainda o poeta Fernando Ilharco Morgado, bem como os críticos de jazz José Duarte, e Raul Calado. Também Baptista Bastos, pelo menos como associado, por lá andava.

Os filmes exibidos eram todos acompanhados de um caderno com a respectiva ficha técnica, biografia e filmografia do realizador e elaboradas críticas, onde se abordava a respectiva temática e estética, sempre de um ponto de vista de interpretação marxista, clara ou encapotada, que os sócios, aos poucos iam aprendendo a descodificar

Claro que a PIDE vigiava atentamente todas as actividades dos cineclubes e em especial do Cineclube Imagem. Não será de estranhar, pois, se vos disser que todas, ou quase todas, as pessoas que referi tenham sido presas (algumas mais que uma vez), e/ou demitidas dos seus empregos, ou pelo menos incomodadas por aquela polícia.

O mesmo acontecia com muitos dos associados – neste caso não pelo facto de o serem, mas porque eles não estavam lá à toa. Assim aconteceu comigo, por exemplo. Ah, pois, não se julgue que o 25 de Abril aconteceu por acaso, porque uns quantos militares resolveram fazer um golpezito para se entreterem. O 25 de Abril aconteceu por que havia muita gente que durante os anos das trevas lutava para manter a chama acesa e criar as condições objectivas para que essas trevas se dissipassem. É que os jovens capitães também eram cidadãos e alguns cineclubistas e participavam em todos esses movimentos culturais que eram baluartes de resistência e de luta.

Mas todo este preâmbulo acerca dos Cineclubes e que, sem contar, me fez alargar um pouco mais a conversa para falar de coisas que é sempre bom que não caiam no esquecimento, porque para as fazer esquecer já há muita e empenhada gente, este preâmbulo dizia, vem a propósito de um pequeno episódio que se passou connosco numa das sessões de cinema, julgo que no Capitólio.

Naquela tarde (as sessões, tinham lugar por volta das 19 horas, à saída dos empregos) o filme do programa era “Labirinto Infernal” (La mort en ce Jardin), co-produção França/México, de 1956, realizado por Luis Buñuel e interpretado por Simone Signoret, Georges Marchais, Michel Picolli e Charles Vanel.

Não era um dos mais representativos do grande realizador espanhol, na linha de “Les Hurdes” , “le Chien andalou”, “Viridiana”, “Belle de jour”, “Cet obscure objet du désir” “Le charme discret de la bourgeoisie”, etc, pois se fosse, a censura se encarregaria de obstar a que fosse visto cá em Portugal. Era um filme, que até certo ponto se poderia incluir no género de aventuras, mas o génio e o espírito iconoclasta de Buñuel lá estavam presentes, em pequenos apontamentos como o episódio do padre queimando aos poucos as folhas do breviário, numa utilização pouco espiritual mas muito mais proveitosa, naquele caso, do que rezar.

É a história de um grupo de pessoas de diversos extractos sociais e diferentes modos de encarar a vida que, por contingências que já não sei precisar, fugindo a um golpe revolucionário numa das repúblicas sul americanas vizinhas do Brasil, acaba por se juntar a um aventureiro, um contrabandista francês, e com ele se embrenhar na selva amazónica nela se perdendo e nela, como acontece em situações extremas semelhantes, se revelar quem assume uma inesperada dignidade, e quem se revela afinal o crápula que sempre terá sido e a máscara social esconde, muitas vezes,

Acontece que, logo no princípio do filme, o dito aventureiro, o “rapaz”, como então se dizia, passa com duas mulas carregadas de mercadorias por uma clareira onde um pelotão de soldados se prepara, de armas apontadas, para fuzilar um fila de camponeses revoltosos postados na sua frente. Pois o nosso herói, com a calma e a audácia que lhe dá a certeza de aquilo ser tudo encenado para a câmara, como acontece com todas as fitas, atravessa impávido, à frente das mulas que puxa pela arreata, por entre as duas filas, de soldados de um lado e camponeses do outro.

Aí, o cabo do pelotão grita uma frase ameaçadora cujo teor não me recordo, mas que seria mais ou menos “arreda, gringo de un cabrón, que te hodo los cuernos!”. E o nosso homem, como resposta, limita-se a levantar o braço direito e com ele levantado, e fazendo ao mesmo tempo com os dedos aquela representação fálica que todos conhecemos, com o dedo médio erguido, a simular um pénis e o anelar e o indicador dobrados, configurando os indispensáveis “tintins” – representação em que os portugueses são mestres e que a maior parte dos outros povos se limita a uma imitação pífia, sem nível, que se reduz apenas ao simples erguer de um único dedo - o que a mim, confesso me indigna sobremaneira, pois considero uma desconsideração pela trabalheira que tive, em garoto, a treinar a combinação simultânea do dedo erecto com a subserviente dobra dos outros dois, recorrendo para o efeito à ajuda de um lápis – o nosso homem, dizia, que por acaso (e com isso ganhou de imediato a minha simpatia) até fazia o gesto igualzinho ao nosso) continuou impávido e sereno, sem apressar o passo, sempre com o braço erguido, até sair da linha de fogo e prosseguir a sua olímpica caminhada.

Só depois se ouviu a descarga dos fuzis e os camponeses cairam todos por terra, mortinhos da silva, sem um ai nem um estrebucho e o nosso homem, sem sequer virar a cabeça, lá seguiu até a câmara se esquecer dele e passar a outro plano.

À saída do cinema, a caminho do comboio e em busca do jantar, íamos comentando o filme, eu a salientar a excelência de umas cenas, e a Adelina a manifestar a sua preferência por outras. “Só uma coisa não percebi”, diz-me ela a determinada altura, “foi a razão daquela despropositada gargalhada geral, na cena de maior suspence, quando o homem passava em frente das espingardas prontas a disparar”
É que,
expliquei eu, o gesto que ele fez com os dedos constitui uma conhecida e popular representação fálica, que, naquelas condições, constituindo uma provocação, mais cómica se tornou.

Ah, tornou a Adelina, só agora percebo porque é que a minha tia, sempre que - numa velha máquina de escrever que ela trouxe da América - eu escrevia apenas com o dedo médio da cada mão e com os outros encolhidos, porque isso me dava mais jeito, me batia sempre nas mãos e me dizia para não escrever assim.

Não é uma ternura?

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Epilogo:
Há dias, descendo a Avenida 25 de Abril, aqui em Almada, quatro ou cinco miúdas que não teriam mais de 14 ou 15 anos e que à minha frente caminhavam, vinham numa conversa tão desbragada, tão recheada de palavrões, que até o Bocage coraria de os ouvir…

Outros tempos, outros modos de estar.
Os palavrões não me incomodam, mas que o meu tempo era um tempo mais de causas, lá isso era.

5.13.2006

EROTIKUS, ma non troppo


Aquela noite...


Era Agosto.
A noite era morna e calma. Perpassavam no ar murmúrios subtis de músicas longínquas, e a brisa, suave e doce, trazia até nós imaginadas fragrâncias de imaginadas flores exóticas, de terras desconhecidas e distantes. Éramos extremamente românticos naquele tempo, e a memória dos filmes de Hollywood levava-nos a ver exotismo que só na nossa imaginação existia.


O rebentar grácil das ondas na praia era uma canção, e o ruído dos nossos pés descalços, pisando a areia, era ritmado e vagaroso. Íamos calados os dois, mas os nossos corações, batendo em uníssono, subentendiam o que as nossas bocas não se atreviam a dizer.

Apenas as nossas mãos entrelaçadas se tocavam, mas em ambos ardia, fremente, o mesmo desejo de que essa união fosse mais íntima, mais profunda, total.

Quando te convidei para aquele passeio nocturno, por entre as rochas, à beira do mar, não tinha sido apenas pelo desejo de passear, e tu, embora tentasses convencer-te a ti própria de que era esse o único motivo, bem sabias que não, e no fundo desejavas, tanto como eu, que não fosse só por isso.

Eis a razão porque seguíamos calados, receosos de exteriorizar os nossos pensamentos. Mas o sangue falava mais alto do que as nossas bocas.
Tudo à nossa volta convidava ao amor: a moleza sensual da noite, o perfume da brisa, a música misteriosa do oceano. Tudo falava de amor, os nossos corações estavam cheios de amor que, neste caso, melhor seria dizer ardendo de desejo.

Os nossos corpos sentiam-se atraídos um para o outro, por uma força misteriosa e imperativa. Eu sentia a tua mão fresca estremecer ao contacto com a minha, e o sangue circulava-me impetuoso, nas veias.

As palavras vieram por fim, trémulas, despropositadas, mas ambos sentíamos que, numa noite assim, eram desnecessárias as palavras. Enquanto falávamos o meu olhar guloso contemplava-te com avidez e urgência.


Não há mulher nenhuma que não seja uma tentação numa noite de Agosto, à beira do mar, mas tu estavas simplesmente apetecível. Aquele quimono de seda, com ramagens azuis, largamente decotado, deixava adivinhar umas formas esculturais e tentadoras - prelúdio aliciante de incomparáveis encantos; o cabelo, atado com uma fita larga, da mesma cor do vestido e enfeitado com um cravo rescendente, de um perfume bárbaro, ondeava gracioso, ao sopro da aragem; os olhos, dois carvões acesos na noite, deixavam transparecer no rosto toda a volúpia que te ia no sangue; os lábios, coloridos e entreabertos, eram uma promessa rubra de beijos quentes e estonteantes.


O luar inundava de uma dulcíssima luz o teu colo moreno, deixando a descoberto a nascença apetecível dos seios, pequeninos e redondos, cujos biquinhos, túrgidos e irrequietos como víboras, pareciam querer saltar fora do vestido. Tive, logo ali, desejos de os morder.

A minha mão, num impulso, achou-se, sem saber como, pousada no teu quadril, e dentro em pouco o meu braço enlaçava, inteiramente, a tua cintura quente e macia.

Olhaste-me numa muda reprovação, mas, a desmentir o significado do teu olhar, o teu corpo aninhou-se mais de encontro ao meu.

Voltei-te para mim. Os meus olhos ficaram frente a frente com os teus, os teus lábios quase a tocar os meus. Sentia a tua respiração apressada, o calor do teu corpo misturava-se com o meu, através da macieza da seda.

Desataste a fugir, rindo provocadoramente. O meu sangue não aguentava mais. Correste, correste, a rir um riso histérico e nervoso, com receio que eu te alcançasse e desejosa, ao mesmo tempo, que te faltassem as forças, para que não pudesses resistir.

O teu espírito rebelava-se, por uma questão de preconceito, mas o teu corpo reclamava, imperioso, a satisfação urgente e natural dos seus apetites, agora inteiramente despertos.

O desejo de te possuir dominava-me inteiramente, à medida que a distância que nos separava se ia tornando cada vez mais curta, até que te alcancei. Tentaste resistir. Mas a tua fingida ou sincera resistência só servia para levar mais ao rubro o meu desejo. Despimo-nos atabalhoadamente, as peças de roupa atiradas ao vento, e juntos rebolámos na areia. E ora eu por cima ora eu por baixo, numa voluntária e fingida submissão, travámos uma luta ofegante, que mais não servia senão para prolongar o desejo irreprimível de entrega e posse, de cuja concretização ela era, apenas, o inefável prelúdio.

No meio da luta, o sangue a latejar, beijei-te os olhos, suguei-te os lábios em beijos intermináveis, mordi-te o pescoço e os seios, ébrio de sensualidade ...e aos poucos as tua coxas se abriram e os nossos corpos se fundiram e às frases de protesto sucedeu-se um pequeno grito, misto de dor e de prazer, que os meus lábios abafaram num beijo, e foi mais uma nota na música das vagas.

Começou, baixinho, uma sinfonia calma e doce de suspiros, beijos e palavras entrecortadas de meiguice. Já não resistias. O amor estava dentro de nós dois, tinha-se apoderado inteiramente de nós, dos nossos corpos e dos nossos espíritos, que num todo nesse momento se fundiram. Não havia mais espírito, nem mais corpo, foi como um estilhaçar de ambos em pequenas partículas que, se fossem luminosas, teriam incendiado o imenso areal

E ali, naquela noite de verão, de 1952, à beira do mar, tendo por leito a areia morna da praia e por dossel o céu enluarado, se consumou a consagração total do nosso amor, com a simplicidade e a beleza eterna das leis da Natureza.

Só o sol nascente e a maré que nos lambia os corpos vieram pôr fim ao torpor em que - ausentes de tudo, suspensos entre o céu e terra - ali ficámos mergulhados, noite fora.

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De ti, que foste o mais efémero dos meus amores “eternos”, não mais tive notícias …mas a puta da bronquite que apanhei naquela noite, essa, mais fiel do que tu, não mais me deixou ao longo das dezenas de anos da minha já longa existência.

5.06.2006

PEÚGAS BRANCAS ( texto e som)


Naquele tempo não havia betinhos nem betinhas. Eles eram “pipis” e elas “flausinas” e ponto final. Nunca cheguei a apurar se as flausinas que nós conhecíamos da vida real inspiraram a criação da personagem “Flausina”, dos Parodiantes de Lisboa, ou se foi o nome dessa personagem que depois passou a designar determinado tipo de moças a quem o seu estilo e características sociais se adaptavam. Julgo no entanto que esta última hipótese seja a verdadeira

Bom, na verdade não há comparação possível entre os betinhos e betinhas de hoje e os pipis e flausinas de então. Os actuais betinhos e betinhas, são meninos e meninas muito afectados, muito bem comportadinhos e pertencem (ou julgam que pertencem) à classe média alta.

Os pipis e as flausinas pelo contrário, pertenciam à classe media baixa e mesmo ao proletariado. Eram jovens que estudavam na Afonso Domingos, Veiga Beirão, Machado de Castro, Marquesa de Alorna, Marquês de Pombal ou similares, ou trabalhavam nas mais diversas profissões, em fábricas, oficinas, comércio e por aí…

Os pipis, durante a semana andavam vestidos de acordo com as respectivas profissões, levavam almoço, numa pasta ou numa lancheira, mas nos fins de semana envergavam as suas melhores fatiotas, suas calças-bocas de sino, seus jaquetões, seus sapatos de tacões altos à Elvis Presley ou de salto baixo, em pelica , pretos e brancos e usavam o cabelo bem engraxado, com uma poupinha à tirone (do actor Tyrone Power)) que bom trabalho dava a manter impecável à custo de boas camadas de brilhantina e fixador., que por vezes, de tão oleados, até parecia que tinham acabado emergir da talha do azeite. Quem não se lembra do Rogério um jogador do Benfica (muito bom por sinal) e a quem pelo seu ar afadistado, e bairrista, tão ao estilo da época, todos conheciam por “ o Pipi”?

Mas os pipis, se nada tinham a ver com os betinhos de hoje, muito menos se pareciam com os actuais jovens da periferia e bairros degradados, violentos por vezes, que se drogam, e enchem as paredes de grafittis, mais ou menos atrevidos, mais ou menos artísticos, mais ou menos provocatórios.

Na verdade, droga era uma palavra e uma prática que não fazia parte do vocabulário e dos usos dos pipis de que falo. Por essa altura as drogas, e de uma forma muito recatada e sigilosa, eram apenas utilizadas nos meios da alta burguesia ou aristocracia endinheirada, ou em certos meios intelectuais. Lembro-me por exemplo do caso do assassinato do Carlos Burnay, no seu palacete de Cascais, no decurso de uma orgia de droga, álcool e práticas homosexuais, mas isso era lá entre eles e o aspecto da droga passou quase despercebido junto da opinião pública.

Quanto a inscrições nas paredes (ainda não se tinham inventado os sprays), para além das palavras de ordem revolucionárias, escritas à socapa, a tinta ou nitrato de prata, a malta limitava-se a desenhar a carvão ou a giz, conforme a cor da parede, uns ingénuos símbolos fálicos, alguns de um tamanho descomunal mas todos muito mal enjorcados, um par de corações trespassados por uma seta e uns pinguinhos a significar a profundeza da paixão, ou uma ou outra frase, quase sempre relacionada com o sexo, do género o Zé foi à c… à Manuela, o Gigi é um ganda paneleiro, o Xico namora a Micas – escrita vernácula e contudo, inofensiva, como se vê.

Os pipis gostavam mesmo era de dançar e faziam desse gosto a sua actividade lúdica principal, sempre que podiam. Era vê-los em tudo o que fosse colectividade de recreio ou salão de baile, apertando o jaquetão e ajeitando o nó da gravata, caminhar com ar confiante e gingão a fim de tirar para dançar a dama de quem, de longe e por mímica, se obtivera já uma prévia anuência. Sim, que a malta não arriscava a avançar para levar uma realíssima tampa, e perder ascendente junto da sua tribo e prestígio perante o miudame. Isso é que era bom!

Era dançar, namorar, ir ver dois filmes seguidos num cinema de reprise e beber uns copitos aqui e além – que era uma coisa muito de homem. Nada de copinhos de leite. Para isso havia os chamados “meninos de copo de leite”, versão antiga dos actuais “queques”. A cerveja, por seu lado não tinha, nem de longe, a saída que tem hoje. Lá marchava uma de vez em quando, ou mesmo um “champanhe saloio” (mistura de vinho branco com gasosa) ou um pirolito para arrotar, mas o “tintol” e os petiscos, (bifanas, bacalhau assado, pratinhos de caracóis e de berbigão com cebolada) é que satisfaziam as exigências pouco “gourmands” dos irresistíveis “pipis”.

Alguns havia que exageravam no uso da bebida, mas nada que se parecesse com o que acontece nos tempos de hoje, em que as noites de fim de semana e festas de estudantes se caracterizam pelo consumo excessivo de álcool, e não só (por parte tanto dos rapazes como das raparigas) tão excessivo e descontrolado que, por vezes, vai até ao coma alcoólico e à overdose.

Tão raro era esse abuso por parte dos jovens que, aqueles que se excediam, ficavam marcados por alcunhas, como um moço lá do sítio que ficou conhecido como o “pipi do vinho”, e por esse nome foi chamado durante muitos anos, pelo menos enquanto lá residiu.

Sendo namorar e correr atrás das flausinas um dos passatempos preferidos dos “pipis”, apesar de todos os cuidados para o evitar e da enorme responsabilidade que era, na altura, tirar a virgindade a uma moça, a verdade é que por vezes isso acontecia. Como diz o ditado “o lume ao pé da estopa vem o diabo e assopra”, a verdade é que o mafarrico soprava mesmo e às duas por três lá havia uma que “perdia os três” e isso constituía uma verdadeira tragédia. “aqui d’el rei que desonrou a minha filha” e vá de um furibundo e desonrado pai encostar o rapaz à parede e obrigá-lo a lavar a honra da família. Pelo casamento ou com sangue – que a coisa não se fazia por menos.

Dá vontade de rir ouvir, hoje falar de “honra" nestes termos, não dá? Pois nesse tempo era assim. No entanto, sempre havia pais mais complacentes ou mais conscientes da dose de culpa das filhas que possuíam, pois me lembro do caso de um figurão lá do sítio – um fraca figura, diga-se – que já levava 3 “cabaços” (três) no papo e lá continuava são e salvo e solteiro, mercê não sei de que manhas ou compromissos. Devido à sua notoriedade pelo cometimento de tais proezas, passou o dito cujo a ser conhecido por “D’aço” (óbvia abreviatura de “Pixa d’aço” – que nesse tempo havia muito respeitinho no que concerne ao uso de palavrões”. Refiro-me, bem entendido palavrões ditos em voz alta e em presença de outras pessoas, sobretudo mais idosas, ou de senhoras, porque escritos nas paredes e às escondidas, eram mais que muitos, como já tive ocasião de referir.

Aliás, “palavrões” não será a palavra mais adequada para o tempo de que venho falando, pois o termo que mais se usava era “asneiras”: “Ò mãe o Chiquinho está a dizer asneiras”; Sô pessor este menino disse uma asneira;” “ ò tia, o Becas e a Mariquinhas estavam no fundo do quintal a fazer asneiras”. Este “fazer asneiras” geralmente referia-se a inocentes brincadeiras de crianças, a quem a curiosidade levava a mostrarem um ao outro os estranhos atributos com que a natureza os distinguira.

Eram frases como estas que frequentemente se ouviam, a propósito de palavras ou actos que nem sequer, por vezes, eram palavrões ou eram intimidades de crianças que nada tinham de censurável. Hoje, para ouvir ”asneiras” basta ligar a televisão. Aí elas pululam, e de toda a ordem: desde as mais cabeludas, por parte dos actores de filmes e novelas, até aos pontapés na gramática de alguns apresentadores, sendo que as últimas me custam mais a suportar. É asneira que ferve!

Mas, voltado ao “d’aço” era cómico (acho hoje cómico) a naturalidade com que a malta, de ambos os sexos, dizia “lá vem o d`aço” ou “já dançaste com o d’aço?”, e o fulano, baixinho, de pernas curtas em relação ao tronco (tipo caga-tacos) gingão, muito empertigado e ufano da sua fama de “matador”, atravessando o salão de baile, enquanto as mamãs murmuravam para as filhas”cuidado que vem aí o d’aço”

Não mais soube o que foi feito do “d’aço”. Não sei se, por mais outra proeza, algum pai mais façanhudo o terá obrigado a devolver a honra perdida a uma (neste caso, pouco incauta) donzela. Só espero que o cangalheiro não tenha tido, ou não venha a ter - caso não tenha ainda batido as botas, uma trabalheira dos diabos para baixar a tampa do caixão – dada a indómita firmeza do atributo masculino que tanta fama (e proveito) lhe proporcionou.

Uma das imagens de marca dos pipis que ainda não referi e que seria imperdoável eu deixar passar em branco, era, precisamente, o uso obrigatório de peúgas brancas. Pipi que se prezasse, jamais, repito, jamais se atreveria a apresentar-se (sobretudo nos dias em que saía “para matar”, se não ostentasse um par de imaculadas peúgas branquejando no largo espaço que ia do rebordo dos sapatos de pelica, de duas cores, bem lustrosos, “à maneira”, e a bainha das calças, que se usavam suficientemente curtas, para o efeito. Cabe aqui referir que esta moda das peúgas brancas é cíclica. Esmoreceu uns anos depois da época que aqui evoco, voltou a estar em voga nos anos oitenta e agora o seu uso, tanto quanto julgo saber, é considerado “fatela”. Vá lá uma pessoa guiar-se por modas! Mas, deixemo-nos de divagações e voltemos ao fio da nossa história e ao tempo dos “pipis” em que as peúgas brancas constituíam uma das suas imagens de marca.

Ora, como os miúdos gostam sempre de imitar os grandes (na ilusão, talvez, de que assim crescem mais depressa) e ser grande, nessa altura, era ser “pipi”; e ser “pipi” era, para além da poupinha à tirone, usar peúgas brancas, o Raul - um puto reguila, meu conhecido, que tinha, na altura uns 12 ou 13 anos, morava nos Olivais e viria a ser meu colega escuteiro no saudoso grupo 146, fundado e dirigido pelo padre holandês Gregório Verdonk – morria por ter peúgas brancas, para poder ser um “pipi” a sério, e assim impressionar uma garota que ele vinha cortejando de longe, com sorrisos e troca de olhares, mas à qual nunca tivera coragem de dirigir a palavra, Uma daquelas paixonetas infantis que todos tivemos uma vez na vida.

Só que estava-se em plena guerra (a 2ª Guerra Mundial), a vida não estava para flores (para os pobres nunca está, puta de vida!) o ordenado do pai do Raul, como operário têxtil mal dava para pôr em casa o essencial para alimentar e vestir a família, e as promessas da mãe de que um dia havia de lhe comprar as almejadas peúgas brancas iam ficando sucessivamente adiadas, pois outras inesperadas prioridades iam sempre surgindo.

Porém o Raul não era de se atrapalhar. O rapaz andava obcecado pela peúgas brancas e tinha de as arranjar. Aproximava-se o dia em que a banda ia sair à rua e correr toda a povoação, com um ror de gente a acompanha-la e ele era dos que nunca faltava, tanto mais que o pai era um dos músicos. Os de Moscavide, tinham a mania de dizer que sempre que a banda dos Olivais saía era chuva certa, mas ele sabia que isso dor de cotovelo por não terem banda nenhuma e que desta vez ia estar, tinha a certeza, um sol radioso – altura ideal para ele se passear com as suas ambicionadas peúgas brancas.

Assim, na véspera da saída da banda, o bom do Raul que há vários dia já tinha todo o plano traçado, antes de se deitar, vai à gaveta da cómoda, tira uma camisola interior da irmã, branquinha, branquinha, daquelas de manga comprida, que ele já tinha debaixo de olho, corta-lhe metade das ditas mangas, pega em cada um dos pedaços cortados, dá uns pontos mal alinhavados na extremidades mais largas, opostas ao canhão, mais apertado dos punhos, e em três tempos ele está com o sonhado par de peúgas na mão. Bom, as meias, como se pode imaginar não seriam especialidade por aí além, mas para o Raul estavam melhor do que boas e foi todo contente esconde-las debaixo do travesseiro para que logo de manhã – que a banda saí cedo – pudesse finalmente sair para a rua de peuguinha branca, “todo à pipi”. Nem dormiu como devia ser, só a pensar na inveja que ia causar a alguns peneirentos lá da rua.

E assim foi. No dia seguinte, de calções lavados, camisa branca, sapatos engraxados (que até a mãe se admirou do seu inusitado esmero no puxar do brilho) e de peuguinha branca, â maneira – o canhão do pulso adaptando-se à perna na perfeição, lá foi o Raul atrás da banda, envolvido pela estridência dos metais e o batuque dos bombos e caixas de rufo, tchim-tátchim-pum, pum-pum-táchim-pum, e o estrelejar de foguetes, fffffffpuum! puuum! catrapum, pum pum!… o ladrar dos cães espavoridos com o chinfrim, a gritaria do rapazio e as palmas e dichotes dos pacóvios que sempre ficam à beira do passeio.

E o nosso Raul todo pimpão, convencido de que toda a gente estava embasbacada com as suas peúgas brancas, quem sabe até se as palmas não lhe eram dirigidas. Infelizmente as coisas nunca são como a gente as imagina e as pessoas só repararam nas peúgas brancas do cachopo quando uma delas, desfeitos os pontos mal alinhavados da improvisada biqueira com o movimento calçada fora, começou a fugir do sapato e a subir pela perna acima, deixando a descoberto e desnudado, um bom palmo da canela, a partir da borda do sapato

Aí foi a risada geral e a assuada por parte da outra garotada cruel, como às vezes sabe ser, em semelhantes circunstâncias. E foi a chorar que nem uma madalena que, humilhado e inconsolável, o nosso Raul entrou em casa, se trancou no quarto e não quis ver mais ninguém, nem tão pouco tomar qualquer alimento, durante o resto do dia.

Também foi remédio santo. A mãe, condoída pela humilhação do filho e vendo tanta tristeza no seu rosto, logo que os afazeres da casa lho permitiram foi-lhe comprar não um, mas dois belíssimos pares de peúgas brancas da melhor qualidade, O prazer dado ao filho valia bem qualquer poupança que o adiamento da compra lhe permitiria.

E no Domingo seguinte, no baile da SFUCO (Sociedade Filarmónica União e Capricho Olivalense), onde o pai também ia tocar, lá estava o Raul, desta vez com umas peúgas brancas a sério, que ele fazia questão de exibir de forma bem ostensiva, sentado, de pernas cruzadas, numa das cadeiras do salão onde os pares rodopiavam. E tão confiante estava do seu sucesso e do seu ar de “pipi”, que se atreveu a ir buscar a tal garota que de longe cortejava. E ela aceitou. E juntos rodopiaram no salão. E ele, imaginado-se o Mickey Rooney volteando com a Judy Garland num dos seus filmes famosos na época, sentiu-se o puto mais feliz em toda a roda da terra. Ai a felicidade que a um garoto de 12 anos - reguila, de mais a mais - podia proporcionar, então, um simples par de peúgas brancas!
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na voz inconfundível de Luís Gaspar
http://www.truca.pt/armazem_som/ant_gouveia_peugas.mp3