ESCRITOS OUTONAIS

4.29.2006

ONDE ESTAVA NO 25 DE ABRIL?



Lembram-se do programa do Baptista Bastos em que ele fazia esta pergunta a todos os convidados? Pois é a essa pergunta que eu me proponho responder . Em homenagem ao 25 de Abril vou dizer onde estava e como foi o meu 25 de Abril. É mais um testemunho a juntar a tantos outros:


O MEU 25 de ABRIL


Ao sair de casa, naquela manhã de quinta-feira, 25 de Abril de 1974 - uma bem
cinzenta e algo enevoada manhã, por sinal - estava bem longe de pensar no fervilhar de emoções que iria experimentar ao longo desse memorável dia.


Quando, por volta das 8.30,vindo de Almada desembarquei no Cais do Sodré, para me dirigir à Faculdade de Letras, onde frequentava, na altura, o 3º ano de curso de Filologia Românica, encontrei a rua do Arsenal, pejada de tanques e de soldados, mas tudo na maior das calmas, como se aguardassem o sinal verde dos semáforos ou alguma ordem superior para se porem em marcha. Passou-me pela cabeça que fossem manobras de prevenção, pois ainda um mês antes tinha havido uma tentativa falhada de golpe militar. Admiti mesmo que pudesse ser um golpe de antecipação dos ultras.


Atravessei a formatura com o ar conformado e os resmungos interiores que estas soldadescas exibições sempre me suscitavam, subi a rua do Alecrim, desci ao Rossio, onde consegui apanhar um autocarro e lá segui para a Faculdade, onde - perante a falta de aulas, devido à não comparência da grande maioria dos alunos e dos professores - me refugiei na biblioteca, tendo ali passado toda a manhã, aproveitando o pouco tempo de que dispunha, como trabalhador estudante, para pôr em dia os meus apontamentos e preparar as frequências que se aproximavam.

Assim, tendo saído de casa sem ouvir o noticiário das 8.00, ao contrário do que era meu hábito, perdi toda uma manhã de gozo, pois quem ouvisse os noticiários da rádio e fosse minimamente politizado facilmente concluía - pelo estilo dos apelos à calma, pelo tipo de canções insistentemente transmitidas e pela personalidade dos locutores - que o golpe, fosse qual fosse o desenlace, era nitidamente de esquerda e anti-governamental.


Só quando, por volta das 12.30 cheguei ao meu emprego, na Calçada do Duque, me dei conta, com a mais louca alegria, do que realmente se estava passando e do gozo que tinha perdido durante toda a manhã encafuado na biblioteca. Claro que na CP não se trabalhou mais nesse dia, até porque o nosso local de trabalho ficava pertinho do quartel do Carmo, onde se tinha refugiado o Chefe do Governo e outras figuras importantes do regime e era nesse momento o ponto nevrálgico e decisivo da revolução.


É óbvio que, depois da manhã falhada, eu não iria perder pitada dos acontecimentos pelos quais esperara a vida inteira e já quase perdera a esperança de ver realizados. Assim, enquanto a grande maioria dos meus colegas aproveitou para ir para casa, aliás como recomendavam os insistentes apelos do M.F.A. (Movimento das Forças Armadas) - sigla que nós ouvíamos pela primeira vez mas rapidamente entrou nos ouvidos e no coração do povo - eu fiquei-me pelas redondezas. Lembro-me que fui almoçar a um restaurante de nome “Faz Frio”, ali para os lados do Príncipe Real, acompanhado de uma colega que também fazia questão de seguir os acontecimentos de perto. A esta distância - tão marcante foi o dia para mim - consigo lembrar-me com toda a nitidez, vejam só, de que o almoço era constituído por carapaus assados com molho à espanhola. Mas lembro-me também que o devorámos num ápice pois o nosso sentido estava todo no que se passava lá fora.


Assim, mal acabámos de comer, exultantes mas algo receosos, nos dirigimos para o quartel do Carmo cercado pelas tropas do capitão Salgueiro Maia. O pior é que para lá chegar foi necessário passar por ruas onde soldados da GNR emboscados em cada esquina e de armas em punho cercavam os cercadores. E lá íamos nós, esparvoados, entalados entre dois fogos que poderiam rebentar a qualquer momento. A nossa sorte e a sorte da revolução foi que o largo do Carmo - contrariando todas as recomendações do comando revolucionário - começava a encher-se de povo, o que inibia as forças da GNR de disparar. De qualquer modo, estou convencido de que só não dispararam por terem tomado consciência de que o movimento era irreversível e não quiseram ficar colocadas em má posição. Em inúmeras outras ocasiões elas tinham disparado sobre as populações, sem que qualquer prurido de consciência lhes travasse o gatilho.


Lá dentro, após varias rajadas de metralhadoras disparadas contra o quartel, negociava-se a rendição dos assustados restos do governo que durante 48 anos, com soberba e prepotência tinham sido os donos de um país amordaçado, mas onde alguns nunca se vergaram. Aproveitei o impasse para, por volta das 15 horas, dar uma saltada a Almada sossegar a minha mulher que deveria estar inquieta sem notícias minhas, num dia tão conturbado.


Mas eu não sossegava. As notícias da rádio, para além de transmitirem apelos à calma e passarem continuadamente canções proibidas até então, não adiantava grande coisa sobre o desenrolar dos acontecimentos. Assim, não tardei a meter-me num cacilheiro e voltar ao “local do crime” - neste caso ao “local da redenção”. Na baixa lisboeta passavam carros cheios de soldados que os populares aplaudiam entusiasticamente e a quem ofereciam cravos vermelhos. Vários deles traziam cravos ao peito, nos tanques e no cano das espingardas. Quando, por volta das 17 horas, cheguei ao Rossio pejado de gente e arrebatando das mãos dos ardinas o jornal “República” que já em grandes parangonas se borrifara para a censura e noticiava o golpe militar na primeira página, entraram na Praça vários carros apitando. Num deles seguia o velho general Spínola com o seu inseparável monóculo, lábios esticados no jeito insolente que o caracterizava, rosto carregado, mas correspondendo com um aceno de mão aos aplausos frenéticos das pessoas que sobre o carro se debruçavam dificultando a sua marcha.


Era para o Quartel do Carmo que se dirigia, pois que Marcelo Caetano, para que a humilhação não fosse tão grande, fazia questão de se render a um oficial de patente superior - exigência que os valorosos capitães estavam em condições de rejeitar, mas a que generosamente acederam. E eu, claro, toca de seguir também para o largo do Carmo.


Foi longa a espera. A multidão que agora enchia por completo o Largo, trepava às árvores, se encarrapitava no chafariz central se amontoava nos carros de combate, misturada com os soldados de cravo ao peito e se escarranchava mesmo nos canos dos canhões, numa moldura humana impressionante, impacientava-se e vaiava ruidosamente os sitiados que tardavam em aparecer.


Foi então que o advogado e antifascista, Francisco Sousa Tavares (pai do jornalista Miguel Sousa Tavares), ajudado por alguns populares subiu para cima de um das guaritas à entrada do quartel e através de um megafone pediu calma à multidão que assim se aquietou um pouco mais. Já a noite começava quando finalmente saiu de dentro do quartel a chaimite que transportava o último chefe do governo do regime que durante 48 longos e penosíssimos anos nos desgovernara. Foi entre vaias e apupos monumentais, mas sem desacatos que seguiu para lugar seguro, De onde embarcou dias depois para a Madeira e mais tarde para o Brasil, tratado com uma generosidade que o regime nunca usara para com os seus opositores.


Entretanto por todas as ruas da cidade o entusiasmo era indescritível. Os cravos vermelhos esgotavam nas ruas de Lisboa e enfeitavam agora as fardas e as armas dos soldados, garotos mais atrevidos partiam as montras de lojas de comestíveis no Chiado e levavam comida e bebida aos jovens militares , que um pouco por todo o lado, sem dormir, e sem comer ocupavam posições estratégicas de acordo com ordens recebidas dos capitães revoltosos. Os jornais da tarde faziam edições sucessivas que rapidamente se esgotavam, face à procura impaciente das multidões que pejavam as ruas e praças da capital, ansiosas por saberem pormenores do que estava acontecendo.


À noite, tudo era diferente no noticiário da RTP - a única estação de televisão existente na altura. Caras que nunca tinham aparecido, rostos sorridentes em vez em vez do ar solene e formal dos habituais noticiaristas. Ainda que o som faltasse nessa ocasião todo o mundo entenderia que algo tinha mudado, mas foi tarde, por volta da uma da manhã do dia 26, que surgiram no pequeno ecrã as figuras dos membros da Junta de Salvação Nacional, composta de oficiais de alta patente e presidida pelo General Spínola - a quem os capitães vitoriosos - num gesto sem precedentes e algo ingénuo, diga-se de passagem - tinham entregado o poder que acabavam de conquistar. Só então os portugueses foram descansar, depois de um dia que parecera não ter fim. Os portugueses, em geral, porque os homens da revolução iam continuar por muito mais horas sem dormir, merecendo por isso, nos órgãos da comunicação social o epíteto de “homens sem sono.


Os dias seguintes foram de euforia e de incredulidade ao mesmo tempo. As pessoas beliscavam-se para ver se estavam realmente acordadas, pois ainda parecia um sonho que o odiado regime fascista que parecia não ter fim, acabasse por se derrubado com aparente facilidade. Custava a acreditar e havia razões para isso, pois no dia seguinte, ao fim da tarde, a PIDE resistia ainda cercada por enorme multidão, na sua sede, na Rua António Maria Cardoso. O medo e a raiva levaram-nos a um último acto de selvajaria: disparando sobre a multidão fizeram as únicas vítimas do movimento triunfante. No chão daquela sinistra rua tombaram sem vida mais seis pessoas inocentes e desarmadas, a acrescentar à longa lista dos assassinatos cometidos ao logo do regime.


Nos dias seguintes a euforia continuou alastrando-se aos poucos por todo o país. Foi como se um dique que, tendo durante anos contido a vaga de anseios de todo um povo, rebentasse de repente e esses sentimentos finalmente libertos extravasassem do seu leito e impetuosamente alagassem o país. As imagens da televisão eram eloquentes. Por todo o lado, as ruas das cidades e vilas e aldeias eram rios de bandeiras e cravos vermelhos desaguando em praças e largos que se enchiam desde as calçadas atè janelas, varandas, terraços e topo dos telhados. Era toda uma nação gritando a uma só voz os mais diversos e estribilhos, saídos da mente criativa e jubilosa do povo, entre os quais sobressaía um que era gritado e repetido e repetido, até à exaustão O povo unido jamais será vencido, O povo unido jamais será vencido.


O meu local de trabalho, a meio da calçada do Duque, situava-se no centro mesmo dos acontecimentos importantes daqueles dias, pertinho como era do Quartel do Carmo e da sede da PIDE. É óbvio que, em tais condições, era difícil ficar sentado à secretária o dia inteiro, sabendo que à volta se viviam acontecimentos históricos irrepetíveis. Eu, por mim, volta não volta, vinha até ao Chiado ver como estavam as coisas.


Lembro-me de, numa dessas sortidas, encontrar o meu colega e amigo, o escultor José Santa-Bárbara eufórico, excitadíssimo, de braços no ar: “Eh pá, quando é me passou pela cabeça ver apanhar Pides à mão. À mão pá, à mão !!!” e frase morria-lhe na garganta, com a voz embargada de comoção, É que de facto, bastava alguém reconhecer um Pide na rua e gritar “agarra que é Pide!”, para que logo a multidão que enchia as ruas lhe deitar a mão e entregá-lo ao soldado mais próximo. E isto sem violências ou desacatos - o que muito deve ter surpreendido os próprios Pides, aterrados e paralisados de medo, como tive várias ocasiões de constatar.

Quando chegou o 1º de Maio, a confiança era completa. E então foi a loucura, o êxtase. De norte a sul, em todas as cidades, mas sobretudo em Lisboa, as populações vieram para a rua em desfiles intermináveis, com cartazes, bandeiras, cravos, fanfarras, gritando o seu entusiasmo, a sua confiança, a sua esperança no futuro que a revolução lhes fazia antever.

Na Praça do Areeiro, onde com a minha mulher, a minha filha (com catorze anos então) e o meu irmão José, assisti ao desfile de toda a imensa multidão da Alameda para o até então designado Estádio 28 de Maio e a partir desse dia baptizado pelo povo como Estádio 1º de Maio, pude apreciar a passagem infindável das mais diversas delegações, cada uma mais engenhosa e mais vibrante na expressão do seu fervor revolucionário, no súbito extravasar do seu sentimento de liberdade tantos anos contido. Os nossos olhos viam e nem queriam acreditar na profusão de bandeiras vermelhas com a foice o martelo, flutuando ao vento, após 50 anos de proibição absoluta. Lá vinha o Mário Soares e o Álvaro Cunhal, regressados do exílio (este ladeado de marinheiros, fazendo lembrar a revolução soviética) e tantos outros vultos da oposição perseguida. Lá vinham os presos libertados pela revolução e tantos outros que a PIDE perseguira e encarcerara.


As pessoas abraçavam-se beijavam-se, choravam de alegria. Pela parte que me toca, nunca chorei tanto na minha vida, como nesses dias inesquecíveis. A cada encontro, a cada abraço, lágrimas de emoção me corriam pelo rosto Confesso que várias vezes tive receio de não resistir a tantas e tão repetidas emoções. Era uma loucura!

Lembro-me da espontaneidade e o afecto com que o jovem advogado Jorge Sampaio, bem longe de pensar que viria um dia a ser Presidente da Republica - abandonou momentaneamente o desfile para vir, muito emocionado, cumprimentar e dar um abraço ao meu irmão José, ainda tão combalido da sua última prisão e da grave doença que esta lhe ocasionara. Aliás o 25 de Abril foi remédio santo para ele. Quando parecia estar definitivamente perdido para a vida activa, a sua mente, como por milagre, saiu do buraco escuro em que mergulhara e voltou à vida e à luta. Luta política no Partido a que pertencia e luta organizativa, na instauração e administração do poder autárquico em que, até à morte, pôs todo o seu empenho e dedicação.

Quanto a mim, a actividade sindical foi o meu campo de luta. Acabada a festa´, era preciso reconstruir o país. A sociedade civil e os trabalhadores em geral tinham, finalmente, uma palavra a dizer e foi isso que fizeram. Com entusiasmo, com dedicação, com estoicismo por vezes. Mereciam melhores resultados. Mereciam ter obtido um Portugal mais igualitário e mais justo. Mereciam eles e merecíamos todos. Não foi bem isso que aconteceu.

A democracia, porém, mantém-se. E é um bem insubstituível.

4.22.2006

BORRACHOS DOS ANOS CINQUENTA


Você conhece Moscavide?
Não se preocupe. Se não conhece não perde nada. Moscavide é um amontoado de prédios incaracterísticos, onde, numa área de 1 Km2, se acotovelam mais de 20 mil pessoas, com muito trânsito, muita poluição, sem nada de interessante para ver, com as características, os defeitos e o cinzentismo de uma zona suburbana que é …..E no entanto teve o condão de deixar em todos os que lá cresceram uma saudade, um afecto, uma aura mítica, enfim um conjunto de sentimentos difíceis de explicar e que não é vulgar serem suscitados por um lugar com estas características

É que nesse tempo, não teria mais de um milhar de pessoas, todos se conheciam, as casas eram baixinhas e poucas, a maior parte dos prédios altos agora edificados era ocupada por quintais e espaços livres e à volta era tudo quintas e caminhos velhos, dos tais que, segundo José Afonso, só se lembra quem anda à noite à aventura

Os habitantes eram quase todos oriundos de diferentes vilas e aldeias dos mais diversos recôndito sítios do país, que aqui criavam e reproduziam o ambiente campesino das suas terras de origem.

Os garotos, quer os já nascidos cá, quer os que vinham de fora, tinham aqui um espaço sem limites para as suas brincadeiras e imaginárias aventuras. A proximidade do Tejo ainda não poluído, onde mergulhavam, apanhavam bivalves, pescavam, faziam trinta por uma linha, estabelecia uma espécie simbiose unificadora entre o campo o mar (era mar que se chamava ao rio) e o subúrbio. Todas esta garotada ali cresceu, ali jogou à bola, ali dançou, ali namorou, ali casou, e – na sua maior parte. dali partiu em busca de outras condições de vida, como é óbvio.

Mas, como o bichinho da terra lá ficou, pouco depois do 25 de Abril, alguns deles, sobretudo regressados das nossas ex-colónias, onde viveram e trabalharam durante muitos anos, teve a ideia de organizar um encontro - um almoço que dura toda a tarde com a rapaziada (rapazes e raparigas) que andavam por volta dos 20 anos na década de cinquenta. Assim se fez, e desde então para cá , quase todos os anos – sempre no mês de Abril _ participam nesse encontro, a que ficou a chamar-se de “Borrachos dos anos cinquenta” à volta de uma centena dos ditos “borrachos” e “borrachas” cuja idade oscila agora entre os setenta e o oitenta e tantos anos. Felizmente que não são só esses, pois ultimamente começam a participar também alguns filhos e netos dos velhos borrachos.

Pois foi num desses encontros que passei a tarde de hoje. Todos os anos costumo fazer, e ler durante o almoço, uma versalhada meio saudosista, meio desbragada que o ego “borrachos” já não dispensava. Este ano, em vez do habitual louvor aos velhos tempos e do estafado”cliché” de que nós éramos e continuávamos a ser “os maiores”, resolvi ser mais realista e foram estes os desbocados versos que declamei:
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MAS QUAIS BORRACHOS?

Que bom, Amigos, que é
Estar aqui mais esta vez...
A esperança não me faltava
Mas um SIM não arriscava
E quando muito um TALVEZ

Na engrenagem da vida
Quanta areia se intromete
Tive amores e desenganos
Já lá vão os vinte anos
E agora… setenta e sete

Fui “borracho” e voei alto
Agora, rentinho ao chão
Pus em mim tanto desvelo…
Já me rareia o cabelo
E que dizer do tesão!

Dos tempos da mocidade
Só a saudade perdura
Já em mim nada se anima
Nem da cintura p’ra cima
Nem p’ra baixo da cintura

Nem sequer minha voz é
Como era, ao fim e ao cabo
Bem me esforço por gritar
Ma não me faço escutar
Pois me foge a voz p’ró rabo

Ah, ah, ah, riem vocês
Mas tenham lá mais recato
Pois o que eu digo de mim
Olhai p’ra vós e é assim
Exacto, o vosso retrato

Chiu, chiu, chiu, esperem lá,
Não vale a pena chorar!
Se o corpo voa mais rente
Só temos de olhar em frente
E pôr a mente a voar

É triste consolação?
Pois será, mas tem que ser
Se a mente estiver activa
E um corpo onde ela viva
Tanta coisa há p’ra fazer!

Um apelo eu faço, Amigos,
Que este encontro não se olvide
E enquanto o corpo deixar
Ele sempre tenha lugar
Neste nosso Moscavide
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Restaurante Safari
Moscavide, 22-04-2006

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O Encontro terminou, como habitualmente, com toda a gente a cantar em coro a canção do adeus, com letra também da minha autoria

CANÇÃO do ADEUS


Borrachos dos anos cinquenta
Cá estivemos novamente
P’ra recordar o passado
Que em nós está tão presente

Adeus até p’ró ano, irmãos
Adeus até p’ró ano
Havemos de voltar, irmãos
Adeus até p’ró ano

Qu’ importa que a vida dura
Mil problemas possa dar
Se a esp’rança em nós perdura
De um dia cá voltar

Adeus até p’ró ano, irmãos
Adeus até p’ró ano
Havemos de voltar, irmãos
Adeus até p’ró ano

Na hora da despedida
Vamos todos dar a mão
E cantar em voz sentida
Esta vibrante canção

Adeus até p’ró ano, irmãos
Adeus até p’ró ano
Havemos de voltar, irmãos
Adeus até p’ró ano
- - -
“Adeus até pró ano”, diz a canção e é essa a esperança. O pior é que todos os anos faltam uns quantos (de ano para ano o número aumenta) que partiram para a viagem sem regresso e não tardará muito que já não haja coro, ou força para dizer até pró ano.

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Quem quiser fazer uma ideia do apego, quase mítico, dos ex-moscavidenses à terra onde cresceram, veja o meu site sobre Moscavide, especialmente a rubrica “Correio dos visitantes”, em
http://pwp.netcabo.pt/0662339101

4.15.2006

ENCONTRO AZARADO

Foi por volta de 1950, tinha eu, portanto, na altura, uns 21 anos. Vinte e um anos no Bilhete de Identidade, pois na verdade, afastado da realidade da vida pelos anos de clausura no seminário, a minha estrutura mental era talvez mais a de um deslumbrado moço de 18 anos.

Tendo entrado para os escritórios da CP em 1948, trabalhava então nos escritórios de Santa Apolónia, onde viria a permanecer até 1956, altura em que fui transferido para os Serviços Centrais, na Calçada do Duque, onde me mantive, não sem alguns acidentes de percurso, até me reformar em Fevereiro de 1989.

Pois por volta de 1950, como ia dizendo, no meu local de trabalho ou onde calhasse, eu, com o entusiasmo irresponsável dos meus verdes anos, não me coibia de manifestar a minha opinião contra o regime salazarista, no qual tive a infelicidade de ter nascido e vivido grande parte da minha existência. Essa minha sanha anti-salazarista era, contudo, relativamente recente, e portanto mais intransigente, como acontece com todos os recém- convertidos. Na verdade, desde os bancos da escola primária e passando pelo seminário, toda a minha formação tinha sido orientada no culto do Estado Novo e na admiração babada pelo “Manholas”, seu sumo pontífice.

Só que, mal me vi livre da teia obscurantista em que vinha sendo enredado, a influência do meu irmão Zé - desde os 14 anos envolvido militantemente na luta contra a ditadura - e do próprio meio social em que vivia, fizeram despertar em mim o espírito de classe de que não me tinha dado conta - o qual tinha forçosamente de me levar a decidir sobre qual era o lado certo do meu campo de luta.

Nas empresas, como nas fábricas, nas oficinas, nas escolas, nas colectividades culturais e de recreio, nos clubes de campismo, nas direcções das bibliotecas e mesmo nos sindicatos fascistas, o Partido tinha sempre alguém, que, muito à socapa e com grandes riscos, divulgasse a sua ideologia, as suas actividades, fizesse chegar a sua literatura clandestina e organizasse (ou tentasse organizar) uma pequena célula partidária. Assim, obviamente, acontecia na CP.

Ora, o meu inflamado e algo ingénuo proselitismo de neófito, cedo foram notados pelos colegas mais antigos – e havia muitos na CP - que igualmente não morriam de amores pelo regime então vigente, e logo um deles, acautelando-se de olhares indiscretos começou a meter-me no bolso, com regularidade, muito bem dobradinhos, os conhecidos panfletos e jornais do Partido, impressos em papel finíssimo, por uma questão de eficácia, e segurança, que permitia até, em casos de aperto, como algumas vezes aconteceu, serem rapidamente engolidos nas barbas da própria polícia, por quem com eles era apanhado.

Encorajado pela minha tácita aceitação dos referidos folhetos e jornais, passou depois a pedir-me que assinasse petições para libertação dos presos políticos, e alguma contribuição monetária para ajuda às famílias dos mesmos - acções a que eu nunca me escusava, pelo que em breve ganhei a confiança e a amizade de um grupo de colegas unidos pelo seu anti-salazarismo militante e, aos poucos, passei a ser um deles

Certo dia, o colega que me contactava foi transferido para o Norte e era preciso encontrar alguém que o substituísse nas suas tarefas políticas. Claro que a escolha recaiu imediatamente no “puto”, que era eu. Porque era fixe, porque era solteiro, porque tinha mais vagar e nenhuma responsabilidade familiar e... sobretudo, porque nessa idade eu era incapaz de dizer não a uma causa generosa. Um factor, porém, que grandemente contribuiu para a imerecida aura política que passei a gozar junto dos outros colegas (agora já chamados de camaradas) foi o facto de ser irmão do Zé Gouveia, esse sim, militantemente “engagé” desde os seus treze ou catorze anos.

Assim, o colega transferido, obtida a minha um tanto inconsciente anuência, indicou-me para lhe suceder, ao seu contacto imediatamente superior, a quem forneceu todas as informações sobre o meu carácter, convicções políticas, e capacidade intelectual e organizativa que, no seu entender (vá lá saber-se porquê) eu possuiria, bem como a forma de contactarem.

Duas ou três semanas depois, recebo um telefonema, no escritório. A voz do outro lado do fio, após se certificar de que estava a falar com a pessoa certa e de se identificar através de uma senha cuja chave me havia sido previamente fornecida, disse-me que vinha da parte de X (o nome do meu colega) e queria encontrar-se comigo. Gaguejei, “bem eu…sim…não sei...” e lá acabei por concordar, tendo o encontro ficado marcado para as 19.15 horas de determinada data, numa rua, cujo nome não me recordo, ali para os lados da Mouraria, junto a um pilarete que encimava umas escadinhas situadas junto à esquadra da PSP, por detrás da capela da Senhora da Saúde.

Perguntei-lhe como nos reconheceríamos. Não te preocupes. Eu conheço-te porque já te vi várias vezes com o teu irmão. E quanto a mim, quando me dirigir a ti vais saber imediatamente que sou eu, porque sou coxo.

No dia aprazado nem fiz nada de jeito no escritório (aliás já nem dormira bem de noite) tão preocupado estava com a responsabilidade do imbróglio em que me ia meter e dos perigos daí decorrentes. O caso não era para menos, pois me lembrava de que, poucos anos antes, em Moscavide, certa manhã em que a rua principal apareceu coalhada de panfletos contra o regime, terem prendido e espancado um sujeito meu conhecido, que nem ler sabia, só pelo facto de se ter baixado e apanhado um desses panfletos, para os quais olhava, como boi para palácio, tentando por mera curiosidade decifrar o seu significado

Nesse tempo, a hora de saída nos escritórios da CP era às 17.30 e como faltava ainda muito tempo para a hora do encontro, vim a pé, desde Santa Apolónia, caminhando sem pressas, olhado distraidamente as montras e com mais atenção as garotas, até ao Rossio. Aí, entrei na Tendinha, à esquina da Rua do Arco Bandeira, comi uma bifana, daquelas que fritavam eternamente numa enorme frigideira negra, cheia de banha, na montra, bem à vista dos transeuntes. Sempre desconfiei que o gorduroso molho da fritura nunca era renovado, mas a verdade é que exalavam um cheirinho tão apetitoso, que faziam crescer água na boca ao mais enfastiado dos mortais.

Ora eu, como bastante mortal que sou (ai de mim!) e nada enfastiado, aproveitei a paragem para me regalar com uma dessas apelativas bifanas, que fiz questão de regar com um bem aviado copo de três, a transbordar daquele carrascão que deixava argolas roxas no mármore encardido do balcão, lembram-se?
Nessa altura a cerveja estava longe de merecer a preferência que hoje, sobretudo os jovens, lhe dispensam, toda a gente preferindo o tintol, muito por culpa do inquilino de São Bento que incentivava o seu consumo com a cínica máxima de que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses.

Mas sigamos em frente, que com esta história de bifanas e tintol ainda acabo por chegar atrasado ao meu encontro. Verdade seja que, muito provavelmente, esta paragem terá sido para disfarçar a cagúnfia que o dito encontro me infundia, pois o meu coração balançava entre o entusiasmo juvenil por uma experiência nova com um vago cheiro a aventura e o inevitável “cagaço” pelos possíveis (mais que certos) riscos que ela comportava.

De qualquer modo, seria imperdoável não fazer uma alusão à famosa e mais que centenária tasca do Rossio - paragem obrigatória nas minhas diárias caminhadas pela cidade, desde Santa Apolónia até à estação ferroviária de Entre Campos – percurso que não andará longe dos seis quilómetros - numa idade em que eu tinha sempre fome (fome de tudo, graças a deus)

Pois é verdade. Por essa mesma altura a que se referem os acontecimento que venho relatando, namorava eu a uma esbelta moça que trabalhava como caixa de um perfumaria ali para os lados do Saldanha. Pois, com a força que a paixão me emprestava (pudera era a minha primeira namorada!) e o vigor dos anos permitia, todos os dias, depois de sair do emprego, fazia a pé o mesmíssimo percurso que acabo de vos descrever, até ao Rossio. – só que este constituía a mais pequenas da etapas do longo périplo que me faltava percorrer.

Forçoso era, pois, revigorar forças na já citada Tendinha (tarefa a que de bom gosto com muita aplicação não deixava de cumprir) para depois, sempre a butes, atravessar os Restauradores, subir a Avenida da Liberdade, contornar o Marquês de Pombal, palmilhar a Fontes Pereira de Melo e chegar finalmente ao Saldanha, a tempo de, por volta das 19.00, ver surgir da perfumaria a figura resplandecente da minha amada.

E partir daí juntos, de mãos dadas ou enlaçados pela cintura (esta era a parte mais gostosa da maratona) percorríamos a pé e sem pressa, claro, toda a avenida da República até à estação de Entrecampos onde tomávamos o comboio para Moscavide, local da nossa residência. Pois acreditam que, pouco tempo depois, comido à pressa o jantar e sendo dia de namoro (sim que havia dias para isso, ou julgam que era à balda?) lá voltava eu, sempre a pé claro, a percorrer toda a rua principal lá do sítio (eu morava numa ponta e ela na ponta oposta, para debruçado no peitoril da sua janela (e esta sim era a parte melhor da história) passarmos um ror de tempo, que nos parecia sempre curto, trocando aquelas sabidas manifestações de amor que, por essa altura, tinha a veleidade de julgar eterno. O enlevo só terminava com a voz imperiosa da mãe, invisível mas atenta guardiã, lá dentro, a dizer que se queria ir deitar – o que significava, em linguagem de namorados, que o paraíso ficava adiado para a próxima sessão do programado dia de namoro. Amor, amor, a quanto obrigas!
* * *
Pois desta vez a amada teve de voltar para casa sozinha, coitada. Coitada dela e coitado de mim, que a essa hora, além de não gozar da sua habitual e desejada companhia, estava a caminho do princípio de uma eventual grande encrenca.

Deixada então para a trás a Tendinha, dirigi-me ao Martim Moniz, bem devagarinho, como que a retardar o esperado e temido encontro, sempre olhando para os lados, sempre receoso que qualquer pessoa que me fixasse mais demoradamente pudesse ser um bufo ou um pide que lesse na minha cara os subversivos desígnios da minha missão. Só quem viveu esses tempos sabe do que estou a falar. O regime nem precisava de agir para trazer todo o mundo em transe, num estado de receio e suspeição permanentes

Subi depois as tais escadinhas por detrás da capelinha da Senhora da Saúde e achei-me no sítio indicado.. Lá estava o pilarete ao cimo das escadas, num larguinho onde, se bem me lembro, (nunca mais ali passei) convergiam duas ou três ruelas – um típico terreiro de aldeia implantado na centro da cidade..

Fiquei postado na embocadura de uma dessa ruas, olhado fixamente o pilarete, sem dele me aproximar, não fosse tratar-se de uma cilada, e aguardando que alguém, coxeando, dele se aproximasse. Pois faltavam três minutos para a hora combinada, quando um fulano, aparentando uns 40 anos e inequivocamente coxo, surgiu de uma das ruelas, parou junto do pilarete, olhou em volta e ali permaneceu, meio encostado, meio sentado, talvez para descansar a perna bamba,

Embora um pouco surpreendido pelo ligeiro avanço em relação à hora fixada, pois uma das normas destes encontros conspirativos era, por motivos de segurança, a observação de uma rigorosa pontualidade, concluí que só podia tratar-se do meu contacto. Saí então do meu posto de observação, dirigi-me a ele, bati-lhe nas costas e com o melhor sorriso e a expressão mais afável que consegui arranjar, saudei: “olá Amigo, sou eu...” Pois em vez do sorridente “olá camarada” que esperava, vi o homem levantar-se, encarar-me de rosto fechado e hostil e invectivando-me de forma grosseira, num tom de voz audível por toda a gente que passava e por algumas velhotas que, debruçadas à janela, apanhavam os últimos raios de sol da tarde que declinava e espreitavam os transeuntes, como é de hábito em bairros populares como aquele. E o que os meus incrédulos ouvidos escutaram foram mimos como: “Que é isso? Temos paneleirice a bordo ou quê? Olha-me este gajo! Põe-te a milhas, pá..Daqui não levas nada.” Corei (como todos os louros sempre corei com muita facilidade) titubeei e só consegui balbuciar “mas eu sou....” “ Quero lá saber quem tu és, pá, desaparece.... paneleiro do c......”

Começou a juntar-se gente, eu engasgado, atarantado, atónito, sem saber que fazer à minha vida, só achei uma solução: desaparecer o mais rapidamente dali para fora, sob os insultos dos circunstantes que, como é habitual (e então naquele tempo !) acharam por bem tomar partido pelo pacato cidadão que eles quiseram acreditar fora molestado pelo indecente “paneleiro” que eu era.

Assim, em jeito de farsa cómica, acabou o meu primeiro encontro conspirativo.
** *
Vim a saber mais tarde que o meu verdadeiro contacto chegou ao local logo a seguir, mas perante o burburinho em que me viu envolvido houve por bem fazer uma imediata retirada estratégica, conforme as normas conspirativas obrigavam.

Mas, como diz o ditado, há mais marés que marinheiros e para bem ou para mal houve ocasião para outros encontros que vieram a causar-me alguns, esperados dissabores, mas dos quais não me arrependo até hoje..

4.08.2006

SONHO ANTIGO



Para si, especialmente, que gosta de vasculhar o meu baú de velharias (e que outra coisa poderá ele conter!) vai encontrar hoje aqui um soneto que fiz há 56 anos. Uma vida.
Faz sentido que ele apareça a seguir o ultimo texto “O mês de Abril” pois tem a ver com a primeira carta de amor a que ele se refere
........

Sonho antigo

Foi por ti que esperei, fada encantada
Que em sonhos de criança idealizei;
Foi a ti que em meus versos arrulhei
Requebros tristes d’alma apaixonada

Foi para ti só que conservei
Esta fúria de amar em mim guardada;
A ti pertence, pois, idolatrada
Realização dos sonhos que sonhei

Deixa-me olhar teus olhos de encantar,

Aconchegar-te ao peito e escutar
A música dos teus lábios divinais,

E deixa que em mil beijos se traduza
Esta paixão ardente, linda musa,
Que em meu peito não pode caber mais!

1950

4.01.2006

O MÊS DE ABRIL


E eis que chegou Abril. O mês da flores, dos campos verdejantes, dos mil perfumes, da nidificação dos pássaros.

No mês de Abril, a Terra como que entra em trabalho geral de parto, abrindo-se generosamente nas mais variadas formas e espécies vegetais. As plantas distendem-se, espreguiçam-se e crescem ante os nossos olhos. É o mês em que, nas orvalhadas manhãs, ao contemplar os campos verdejantes, me dá ganas de me estender de borco e de abraçar a terra, como se de uma amante se tratasse. Algumas vezes o fiz, em jovem, chegando mesmo a cortar com os dentes, encher a boca e mastigar a erva fresca que, sob o meu corpo, generosamente se oferecia – manifestação de sensualidade, talvez, como outra qualquer.

Abril é, na verdade, por tudo isto e porque nele ocorreram alguns dos acontecimentos mais importantes da minha vida, o mês de que eu gosto de uma forma muito particular.

Há coisa mais importante do que um primeiro amor, quando a vida é, em si mesma uma excitante primavera? Quando o sangue corre mais rápido nas veias, quando o coração bate mais forte, quando todo o nosso corpo tal como a natureza se distende, se excede, se reinventa? Pois foi em Abril – como o poderei esquecer – que, num longíquo domingo-de-ramos, recebi a minha primeira carta de amor. Mais precisamente, uma resposta favorável a uma minha carta de amor, pois não seria natural que, nesses tempos, uma rapariga tomasse a iniciativa de se declarar. “…Gosto de si. mas tanto, que me chega a meter raiva, me faz doer até.. esta era uma passagem da minha declaração, que até hoje não mais esqueci e à qual recebia, agora, a ansiada resposta.

À saída da missa dominical (recém saído do seminário ainda não tinha, por essa altura, quebrado os laços que me prendiam à minha educação religiosa) seguida de uma reunião do grupo de escuteiros a que pertencia, no formoso jardim do seminário dos Olivais - Quinta do Cabeço, como então erra conhecido - quando eu menos o esperava, o Álvaro (um dos meus amigos de então (entretanto falecido), puxou-me de lado e discretamente, meteu-me no bolso a carta que a minha amada tinha entregue à sua amiga Raquel, para esta entregar ao seu namorado (o dito Álvaro) para que este, por sua vez, a fizesse chegar às minhas mãos. Tudo isto com um ar muito conspirativo, muito olhando à volta para que os outros não se apercebessem. Era assim que as coisas se passavam, na altura. Com discrição, com suspense, com uma certa aura de mistério. Momentos mágicos, portanto.

Com o coração a bater acelerado, retirei-me para um canto do jardim e, vezes sem conta, li e reli a doce missiva em que a bem-amada, a jovem objecto dos meus sonhos e de um prévio e longo e sofrido cerco, me afirmava finalmente a sua correspondência aos sentimentos que em prosa e em verso e em inequívocas trocas de olhares, inúmeras vezes lhe manifestara. Era como se Deus em pessoa tivesse acabado de me abrir as portas do paraíso, com toda a corte celestial de anjos e arcanjos e querubins, abrindo alas à minha passagem, por entre cânticos e tanger de cítaras e alaúdes. À minha volta, o gorgeio dos pássaros tornou-se, ele também, parte integrante do mesmo coro celestial. As delicadas flores das inúmeras “sempre-noivas” que me rodeavam ficaram mais brancas, o perfume dos loendros e páscoas tornou-se mais fragrante e o rosa pálido das camarinhas ganhou, subitamente, um rubro incandescente que nunca lhes tinha conhecido...e eu senti-me a mais feliz e a mais priviliegiada criatura do universo. Ah, que ninguém me fale em coisas boas se nunca recebeu uma carta de amor. Sobretudo se essa carta for a primeira de um primeiríssimo amor! Será que ainda hoje se escrevem cartas de amor?

Quando, breves dias depois, o nosso namoro se tornou oficial e o nosso amor não mais era segredo para ninguém, comentava um dos meus antigos companheiros da escola primária: Eh pá, anda aqui a malta armada em vivaça, vem este gajo do seminário e abarbata a miúda mais gira cá do sítio! E era

Foi também num mês de Abril que, mais tarde, tive a felicidade de conhecer a que viria ser (e é até hoje) minha mulher, que” num outro, saí da prisão após, quatro meses detido pela pide, a tempo ainda de ver nascer a minha filha; que noutro, que nunca mais chegava, aconteceu a revolução dos cravos, e que, noutro ainda, nasceu o meu único neto.

Tudo experiências da maior importância na minha vida:
Deslumbrada, a da primeira carta de amor; gratificante, a do encontro com a mulher com quem partilho os meus dias e as minhas noites; jubilosa a da saída da cadeia; empolgante, a da revolução que nos restituiu a liberdade; ternurenta, a do nascimento do meu neto…
Mas quantas outras coisas boas o mês de Abril me trouxe!
Bendito mês de Abril!